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Carlos José Santana Cruz, 26 anos, mais conhecido como Carlos Cruz – nome que adotou em homenagem ao avô -, é um modelo baiano, da Allure Models São Paulo, que já fotografou com grandes nomes, incluindo Mario Testino, e fez inúmeros trabalhos para publicações internacionais. Mora em São Paulo, mas atualmente está em Salvador, sua cidade natal, por conta da pandemia do novo coronavírus.
Em entrevista via Zoom com o Site RG, Cruz contou o que tem feito, seus projetos e dos planos que estão na manga, como uma viagem para a China, onde vai trabalhar por três meses.
Técnico de contabilidade [carreira na qual atuou por sete anos] e radiologia, esse homem negro de 1,87, 75 kg, lindo, começou cedo na carreira como modelo e ator. Bem articulado, ele conversa com naturalidade sobre as dificuldades pelas quais já passou, sobre o apoio da família, o amor que tem pelos avós (Patrícia Maria e Carlos Cruz) que o criaram e fala sobre o racismo, que não passou despercebido mesmo ele sendo uma pessoa conhecida.
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Veja a seguir íntegra da entrevista.
Como você tem passado a quarentena?
Aqui na Bahia está tudo bem, a gente espera que melhore, estamos meio preocupados por causa da pandemia. Mas temos que agradecer por estarmos com vida, com saúde.
Você é baiano de Salvador?
Sim, eu nasci aqui em Salvador e morei aqui a minha vida toda. Há três anos decidi me mudar para São Paulo para ter mais chances na carreira de modelo. Meu pai era policial militar, e ele sempre prezou pelo estudo, então eu sempre me dediquei muito. Porque eu pensava que para seguir com o meu sonho eu tinha que estudar e ter uma base.
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E como a arte surge na sua vida?
Eu sempre fui envolvido com a arte. Desde criança eu gostava de teatro, dos espetáculos que tinham aqui no bairro, então sempre fui envolvido com isso. E um certo dia eu encontrei o Sivaldo Tavares, que tinha um projeto social chamado “Top Model Fama”, e me convidou para participar. Eu fui. Era um trabalho para pessoas que nunca tiveram contato com a moda. Como eu tinha acabado de sair do Exército, eu fiquei meio receoso, mas acreditei que aquilo era algo que me ajudaria a viver da arte. Aí eu fiquei uma ano com ele, aprendi muita coisa, ele me deu uma base de passarela, e logo após eu fui para uma agência, a One Models, de Salvador. Foi quando eu conheci André e Pepê, que têm um concurso muito conhecido aqui que se chama “Beleza Balck”, onde ganhei o prêmio de votação pela internet.
A maioria desses modelos que saem daqui de Salvador já passou por esse concurso. A partir daí eu resolvi me qualificar como modelo, porque não adiantava só eu ser um profissional de passarela, eu queria fotografar.
Após participar de alguns desfiles, eu peguei uma campanha sobre a conscientização da população negra feita pelo governo do estado, porque embora Salvador seja uma cidade predominantemente negra, não era para existir racismo, mas existe. E aí vi meu rosto estampado por todas as partes.
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E como foi se ver em todas as partes?
Um dia eu tinha ido receber a aposentadoria da minha avó e disse para ela: “Mainha, um dia a senhora ainda vai ver minha foto em tudo o que é lugar”. Ela disse que eu sonhava demais. E de repente minha foto estava em todos os lugares, em pontos de ônibus, outdoor, abanadores etc. E eu estava em casa e eu não sabia que a campanha tinha rolado e as pessoas começaram a me ligar. Aí eu peguei o carro e foi rodar a cidade para ver. Minha primeira reação foi chorar.
E como você veio para São Paulo?
Então, essa campanha foi um impulso. As pessoas de São Paulo começaram a procurar saber quem era Carlos Cruz. Porque eu fiz um post e o governo do estado deu um repost, então as coisas foram se espalhando. Eu acabei fazendo uma campanha de TV para o governo. E esse foi o pontapé inicial para eu ir para São Paulo.
Até então eu ainda estava trabalhando com contabilidade, mas a minha agência de Salvador me fez uma proposta, então eu resolvi largar tudo e partir para o meu sonho. A única coisa que me dividia era a minha família, não era o trabalho [em contabilidade].
Eu conversei com a minha avó e ela entendeu. Sabe, de onde eu venho há muitas oportunidades de você ser corrompido, e hoje eu sou um reflexo das pessoas daqui como um exemplo positivo. Hoje eu sou esse espelho das pessoas que venceram. Quando eu passo na rua escuto: “Pô, Carlos, quero ser como você, modelo, como é que eu faço?”. Isso é gratificante.
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E com foi seu início por aqui [em SP]?
Eu fui para compor o casting de uma agência chamada Base MGT, onde fiquei por um ano, e onde aprendi muita coisa. Porque São Paulo é um choque de realidade muito grande, comparado com Salvador. A forma de desfile é diferente, a forma de trabalho é diferente. Porque m Salvador eu estava em casa, e em SP o meu vínculo é profissional. Eu sou muito grato à Base, porque eles me ensinaram muito.
E qual foi seu primeiro grande trabalho por aqui?
Coincidentemente, foi uma campanha muito grande do Banco do Brasil, o mesmo que eu ia com a minha avó para ela receber.
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Queria que você contasse um pouco sobre os trabalhos fotográficos que fez?
Eu fotografei com Matheus Augusto, para revistas internacionais, várias, principalmente na Itália. Fiz trabalhos para a Gmaro Magazine, com produção de Fredson Agudá e Chezvelo, fotos com com Gleeson Paulino (Paris) e Glauber Bassi, fotógrafo brasileiro que mora na Itália, para a “Desnudo Magazine”, de Nova York. Acho que o segredo do trabalho é você se divertir, e com o Bassi foi assim. Ele me disse: “Cara, o que você está fazendo aqui no Brasil ainda? Tem que ir para fora. Você é um cara completo”. E por último eu tive um presente, eu fotografei aqui em Salvador com o Mario Testino. Um pessoal me ligou dizendo que o Testino estava em Salvador e que ele queria me fotografar, eu nem podia acreditar. Para mim ele é um cara que tem um olhar que nunca foi visto por de trás de uma câmera, eu já era fã dele. Ele, para mim, é um fotógrafo que consegue focar na alma das pessoas. E foi muito importante, porque ele postou [no Instagram] e me marcou, eu ganhei muitos seguidores.
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E você pretende ir para fora do Brasil?
Pretendo. Eu estava com uma passagem marcada para ir para a China em fevereiro, pela agência Sherry, onde devo ficar por três meses trabalhando, mas aí vim para Salvador para me despedir da minha família e fazer uma campanha para o Filhos de Gandhy e veio a pandemia. Agora eu tenho que esperar tudo isso passar e as fronteiras se abrirem, porque neste momento eu não posso viajar. Eu posso até ir para outro país antes de partir para a China, mas dependo de as fronteiras se abrirem.
E depois da China?
Então, a ideia é que eu fique três meses por lá, pela Sherry Models, e depois vá para outros países para fazer desfile de passarela, como Milão, Paris, que também é um sonho meu.
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E você já passou algum tipo de preconceito?
Assim, o preconceito a gente já passa há anos. Se eu disser a você que eu não passei, estarei mentindo, porque se os meus iguais passam, eu me coloco no lugar deles. Eu estou lendo um livro muito bom chamado “Peles Negras, Máscaras Brancas”, de Frantz Fanon, sobre a desconstrução do homem negro. Eu acho que o preconceito já está enraizado em tudo. Por exemplo, em São Paulo não é igual a Salvador, embora aqui também haja preconceito, mas eu me lembro que logo que cheguei em São Paulo fui pedir informação a uma mulher e ela atravessou a rua. Mas no trabalho eu sou muito respeitado, por quê? Porque para a sociedade eu tenho um estereótipo de um negro bem-sucedido. Porque hoje você está me vendo aqui todo arrumado, mas amanhã você vai me ver com uma camiseta de time [de futebol] e chinelo, por exemplo, e passo o estereótipo de ladrão. E isso não deve ser assim, você não deve ser julgado pelas suas roupas, aliás, você nem deve ser julgado. Você deve ser visto pelo seu caráter, pelo o que você é. Eu nunca sofri preconceito no trabalho, mas já senti fora dele.
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E depois da carreira de modelo, você tem planos?
Sim, eu já estou fazendo alguns trabalhos como ator e estou gravando um documentário, um curta-metragem, ainda sem nome, mas que conta a minha história. Aqui na periferia onde eu nasci, a gente é ensinado a não sonhar, eu acho que o homem negro em si já sofre com o preconceito nas costas. O peso do mundo já vem muito grande para nós. Muitos amigos que eu perdi para o crime e para as drogas foi por falta de oportunidade. Muitos dos meus amigos não tinham o que comer, então, quando eu penso em julgar um amigo que morreu no crime, nas drogas, eu sinto que isso vai me consumir. Cansei de ver minha avó levando comida para o vizinho que não tinha o que comer. Tem que existir o respeito pela história do outro, e o documentário vai mostrar justamente isso, que está sendo feito pelo poeta e cineasta Giovane Sobrevivente.
Como você cuida do corpo?
Eu corro todos os dias, faça frio ou faça sol, e treino boxe três vezes por semana. O homem negro, de uma forma geral, tem muita facilidade para ganhar massa muscular, e eu tenho que ser um homem magro, sou modelo. Meu esporte é a corrida, e meu maior concorrente sou eu mesmo. Então me cuido.