Há ainda um elemento fundamental a se considerar: o mercado global e a velocidade da comunicação na sociedade contemporânea. Entremeados sociais eletrônicos, criados por computadores, aparelhos telefônicos e afins reproduzem de maneira instantânea quase tudo que ocorre em outra parte. Soma-se a isso o fato de os principais cozinheiros hoje terem se tornado figuras que extrapolam o universo da gastronomia e que habitam o mundo do comportamento e da mídia. Se o chef Ferran Adrià, com seu restaurante El Bulli, transformou-se em um fenômeno análogo aos Beatles (guardadas as devidas proporções), ao romper a barreira de seu próprio mundo e habitar o imaginário de pessoas que pouco ou nada conhecem sobre o universo da alta gastronomia, Rene Redzepi é hoje uma 3 das grandes estrelas da constelação de cozinheiros que habita documentários, programas de televisão, matérias da mídia impressa e todo o mundo virtual.
Ao realizar sua empreitada mexicana, Redzepi lida com o fato de que hoje, por si só, o Noma atrai um turismo gastronômico que viaja o mundo e lota o restaurante por conta de sua comida. É com esse elemento que Redzepi dá o passo mais ousado em sua iniciativa no Noma México: apresentar os elementos regionais como alternativas de resistência ao mercado global e sua lógica de consumo. Nesse sentido, oferece ao comensal comidas pouco conhecidas – ou pouco valorizadas – mundo afora como ingredientes tão luxuosos quanto uma trufa ou um pedaço de foie gras. Em um prato com caviar, por exemplo, é o coco verde e a textura de “gel” de seu interior que é apresentada com surpresa e requinte. Se esta tarefa já vem sendo realizada por cozinheiros como Alex Atala e Virgílio Martinez em seus países, parece fundamental esse segundo passo, no qual um membro do mais alto círculo da gastronomia do velho mundo reconhece e incorpora estes ingredientes respeitando seu processo criativo, sem apelar para o folclore ou para o pitoresco.
Em um mundo onde o consumo desenfreado molda a cidadania, e os artigos globais de luxo – sejam as grandes marcas, sejam os ingredientes famosos de um restaurante – moldam um ideal a ser perseguido por toda a população, identificar valor em outras formas, em outras coisas, é uma atitude de resistência. Resistência contra a crescente produção de lixo e de desperdício, resistência contra as emissões de gás carbônico e resistência contra o uso predatório de nosso meio ambiente: não há a real possibilida de de todo o mundo consumir as mesmas coisas sem que com isso ele se destrua – seja com a extração irresponsável ou seja com as culturas vegetais e animais que utilizam de químicos e processados que arrasam o meio ambiente. Além disso, há que se resistir a esse modelo social piramidal, no qual os indivíduos se dividem em todo o mundo pela sua renda e capacidade de consumir artigos de maior ou menor luxo em uma sociedade de classes. Nesse sentido, encontrar o valor das coisas em suas expressões regionais é uma brava tentativa de expandir as fronteiras da cultura contemporânea.
Há também de se ressaltar, em um mundo que se divide cada vez mais entre um modelo homogeneizante e impositivo do mercado global e os focos de resistência regionais, culturais e étnicos, a importância da possibilidade de uma resistência cultural intercruzada. Ou seja, embora haja uma grande importância nos movimentos culturais afirmativos, de expressão regional, étnica e racial, que buscam lugares de fala e de existência em um mundo que os sufoca; deve haver também a possibilidade de que grupos culturais distintos se protejam e se valorizem em uma operação cultural sinérgica, compondo novas redes de diálogos, trocas culturais e mesmo econômicas. Uma direção terceira que se situe entre o isolacionismo combativo e o cosmopolitismo homogeneizante. Vale lembrar que a humanidade se construiu do modo como se conhece hoje através de grandes movimentos de intercâmbio cultural: as línguas, a ciência, as comidas e mesmo a filosofia circularam pelas mais diversas mãos ao longo dos séculos: desde o Extremo Oriente, passando pelo Oriente Médio, Europa e Américas, compondo um emaranhado complexo e multidirecional, cujos produtos são infinitos. O escritor Marcel Proust recorda essa relação, ao lembrar que “as palavras francesas que temos tanto orgulho em pronunciar corretamente não passam por sua vez de erros cometidos por bocas gaules as que pronunciavam atravessado o latim ou o saxônio, não passando a nossa língua da pronunciação defeituosa de algumas outras” 4.