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Coluna Ricky Hiraoka: Projeto trasmídia recria clássico de Shakeaspeare com Julieta como mulher trans

Por Ricky Hiraoka, colunista de RG

Por essa, nem Shakeaspeare esperava. O dramaturgo mais famoso do mundo, que foi fonte de criação para inúmeros filmes, peças de teatro e novelas, inspirou um projeto inovador e provocador: @julietacapuleto, em que o épico amor proibido entre Romeu e Julieta é vivido por um homem cis e uma mulher trans. @julietacapuleto aconteceu em diversas plataformas digitais, como Facebook e Instagram. Ademir Silveira, um dos idealizadores do projeto, falou com a coluna.

Ricky Hiraoka – Como surgiu a ideia de fazer uma adaptação transmídia de Romeu e Julieta com a protagonista transexual?
Ademir Silveira – Surgiu em um encontro de alunos de pós-graduação em comunicação da Anhembi Morumbi. A faculdade estava começando um laboratório de pesquisa em mídia e resolvemos fazer o primeiro projeto. Discutimos a possibilidade de novas narrativas no audiovisual e pensamos em adaptar uma peça para uma narrativa não convencional. Ela seria transmitida principalmente pelo Facebook, mas também no Instagram.

Como a ideia era construir as cenas ao longo dos dias, acreditamos que uma peça conhecida podia facilitar o acesso do público à adaptação e também a interação dele. Ao longo do caminho, nos deparamos com os eventos de comemoração dos 400 anos da morte de William Shakespeare. Como as peças dele, em geral, são bastante conhecidas, pensamos em ‘Romeu e Julieta’. Veio a questão: de que forma usar este texto e trazer para o agora? A história deles, um primeiro amor adolescente que ultrapassou a rivalidade entre as famílias, parecia ingênua – mesmo não sendo – para este momento extremo que vivemos. Pensamos, então, no que poderia impedir um relacionamento hoje com esta mesma força.

Aí pipocaram na imprensa notícias de violência contra transexuais. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais. Achamos que abordar um relacionamento cis-trans podia fazer sentido, ou melhor, trazer um novo sentido. Além de levantar uma bandeira de inclusão e amor (eu sei, parece romântico, mas alguém precisava fazer isso).

RH – Como foram desenvolvidos os personagens trans da peça?
AS – Atualmente, se discute muito local de fala e conquista de espaço – sentimos então a necessidade de trazer ao grupo – que acabou virando um coletivo de arte e tecnologia – atores-criadores que nos ajudariam desde o argumento. A primeira conversa com a Glamour Garcia – nossa Julieta – abriu os caminhos para entrarmos com ela no universo trans. A Leona Jhovs (que chegou num segundo momento) também foi fundamental na construção do roteiro.

A partir delas, da trajetória artística que elas já tinham e dos relatos que dividimos todos juntos, criamos a Julieta e a Amanda (a ama da peça) como mulheres trans, de diferentes idades e com questões diversas. Julieta ficaria com a (im)possibilidade que a sociedade impunha para o amor dela com o Romeu, homem cis, e Amanda discutiria o preconceito em outro âmbito, como nos ambientes de trabalho.

Na história da nossa ama, ela é uma professora de música que foi dispensada da faculdade onde dava aula porque dois alunos, o próprio Romeu e Mercutio, fizeram uma ‘brincadeira’ transfóbica que causou sua demissão. Estávamos, então, construindo um local de afeto com estas mulheres maravilhosas porque a realidade que nos deparamos era a de ódio gratuito e falaríamos disso.

RH – Fala-se muito da dificuldade de projetos que envolvem o universo LGBT conseguirem patrocínio…
AS – Tivemos um apoio financeiro da FUNDAC e um apoio tecnológico da LG que emprestou todos os celulares das personagens.

RH – Por que vocês sentiram a necessidade de fazer um projeto assim?
AS – Queríamos dialogar com o hoje e com o que estava sendo feito atualmente no teatro e no cinema, por exemplo. A gente deixou um pouco de ver TV aberta e as novas telas representam esta nova televisão, né? Eu fico bastante tempo no app do Youtube resgatando vídeos engraçados, matérias informativas, clipes, coisas antiguinhas. E tudo isso na hora que eu quero, não na hora em que a programação vai ao ar.

Pensamos que as pessoas podiam curtir ver esta adaptação a qualquer momento, em diferentes redes, acompanhando as personagens. Romeu, Julieta, Amanda, Mercutio, Benvólio, Teobaldo e Rosalina têm perfis ativos no Face e a história deles foi transmitida toda por ali – com vídeos gravados, lives, posts, fotos, gifs, memes, conversas entre eles. A festa em que Romeu e Julieta se conheceram, por exemplo, foi a Gambiarra – os vídeos foram quase todos ao vivo e as fotos postadas na hora também. A gente ensaiou lá, dançou, jogou as personagens na pista.

RH – O que vocês esperam com o projeto?
AS – Bom, a gente espera que as pessoas entendam que o preconceito precisa ser combatido. Todas aquelas brincadeiras que vemos diariamente e que parecem inofensivas, na verdade, machucam alguém – são agressões reais. Para se afirmar, a gente precisa virar um monstro? Não, né? Por que a gente fica destilando raiva num mundo raivoso? Parece meloso, mas é Romeu e Julieta.

RH – Como foi a resposta do público nas apresentações que vocês fizeram?
AS – O público foi bastante engajado. Alguns só perceberam que era uma encenação no final. O Mercutio, por exemplo, que representava um jovem branco, cis, rico e preconceituoso, sofreu represália de homens e mulheres. Os vídeos deles são bem radicais. Ele não teve filtro no que disse e as pessoas não tiveram filtro com ele. Mercutio representava o vilão que fazia toda a parte boa ficar bem mais forte.

RH – Podemos esperar materiais inéditos nas redes sociais?
AS – O projeto acabou com um chamamento. Durante o processo, ouvimos também histórias reais de homens trans e, ao final, chamamos as pessoas para postar um depoimento na hashtag #sofroporquesou. Já temos dois vídeos de dois jovens trans. E isto ainda pode e deve continuar porque o projeto abriu um canal para falar do assunto. A Ama tem uma frase, que surgiu improvisada pela Leona Jhovs, que é muito significativa e explica este ódio todo sofrido pela comunidade trans. Ela fala: “A cada 26 horas, uma mulher como eu, morre. Simplesmente porque a gente é aquilo que a gente sente que a gente é””. E isto é muito absurdo – as pessoas sofrem e morrem por existir.

RH – Pensam em levar o projeto para uma temporada em algum teatro?
AS – Agora que as transmissões acabaram, pensamos em organizar em um formato audiovisual – uma websérie ou um doc ficcional – ou fazer algum tipo de performance com o material para não esfriar as discussões todas.

RH – Até quando ele acontece?
AS – Até o amor vencer!


*Ricky Hiraoka foi titular do Terraço Paulistano, coluna social de VEJA SP, por três anos. Hoje, trabalha como roteirista e escreveu programas para E! Entertainment, Multishow e SBT. Quando não está escrevendo, está na noite de SP caçando histórias curiosas e gente interessante.

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