João Grinspum Ferraz chega a Lisboa! O cientista político, historiador e proprietário da Casa do Carbonara relata para RG, abaixo, mais uma de suas aventuras gastronômicas. Desta vez, entre as estrelas, o famoso Pastel de Belém. Confira!
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Por João Grinspum Ferraz
Por toda a parte na Fábrica de Pastéis de Belém, em Lisboa, estampa-se: desde 1837. Conta a lenda que, após a Revolução Liberal de 1820, Portugal fechou os conventos e, em 1834, expulsou o clero do país. A partir daí, alguém do Mosteiro dos Jerônimos teria levado à refinaria de açúcar que se encontrava ao lado a receita dos pequenos pastéis de nata que pertencera ao mosteiro e, no ano de 1837, iniciou o fabrico e a venda dos pastéis nos fundos da refinaria, local onde até hoje está a fábrica.
Embora fosse afastada do centro de Lisboa à época, a fábrica se converteu em conhecido ponto de visitação e os seus pastéis em uma das mais famosas iguarias da cidade. A receita, dizem, permanece a mesma desde então, e o doce segue quase sem rivais no imaginário da cidade. Como lembrou Gilberto Freyre no seu prefácio para o livro Açúcar: “Numa velha receita de doce ou de bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas nem capitulando, senão em pormenores, ante as inovações, que faltam às receitas de outros gêneros”.
A fábrica de pastéis, que hoje se converteu num labirinto de corredores formados pela aglomeração de vários imóveis, situa-se a poucos metros do grande conjunto histórico e cultural de Belém. Ali, de frente para o rio Tejo, o rei Dom Manuel, nos anos após a descoberta do Brasil, construiu dois edifícios que hoje definem Lisboa: a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerônimos. Conta o historiador Jaime Cortesão em seu livro sobre o descobrimento do Brasil, que enquanto se celebrava a missa que saudava a partida de Pedro Álvares Cabral na expedição que chegaria ao Brasil, em 8 de março de 1500, na Ermida do Restelo “começava a erguer-se dos fundamentos entre os andaimes alterosos, o futuro mosteiro de Jerónimos”.
Era dali de Belém, cuja localização confunde-se com Restelo – o Restelo é uma porção maior de terra que abarca Belém – que saiam as caravelas rumo a ultramar. Poucos anos antes, em 1497, havia partido dali Vasco da Gama em direção às Índias, em sua viagem que consagrou a rota marítima que conectava o comércio da Europa ocidental à Índia, evitando os caminhos terrestres, as fronteiras e as eventuais guerras. E foi no relato do embarcar de Vasco da Gama que Luís Vaz de Camões criou a figura do Velho do Restelo em Os Lusíadas, cujo discurso representava o questionamento sobre a aventura ultramarina. Escreveu Camões:
— “Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
Na época ainda não havia toda a urbanização que se seguiu às grandes construções de D. Manuel. Os barcos de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral saíram dali, em uma paisagem descrita por Jaime Cortesão da seguinte maneira: “Naquele tempo o Tejo era mais largo em frente do Restelo; e as praias, que, hoje só mais abaixo principiam, alastravam da ermida até ás águas, num declive de areais lavados. Nos tesos dos outeiros mais próximos, por cujas remançosas faldas viçavam hortos e pomares, girava com lenta majestade o velame trigueiro dos moinhos. Na outra banda, as ásperas colinas de abruptos barrancos humilhavam-se ali, ás entradas do mar, e iam morrer em praia, á Caparica”.
O mar principiava ali, na foz do Tejo. E do mar vinha o apelo irresistível, “aliciante e misterioso” no dizer de Cortesão. O apelo do mar cercara Lisboa desde os primeiros tempos. Celtas, gregos e fenícios haviam desembarcado na cidade, que fora primeiro batizada “Olisipo”, em homenagem ao personagem épico Ulisses, que durante sua Odisseia teria estado na cidade.
Portugal se forjou virado para o mar, como uma nação de navegadores que, tendo a Espanha às suas costas, encontrou a possibilidade de sobrevivência na sua expansão marítima para o ocidente. Como escreveu Fernando Pessoa em Mensagem:
“Fita com olhar sfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.”
Hoje, junto ao Mosteiro dos Jerônimos e a Torre de Belém, um conjunto muito mais amplo de aparelhos culturais, museus e monumentos – entre os quais o que celebra as navegações – se estendem pela orla do Tejo. Inserida nessa cartografia urbana está a Fabrica de Pastéis de Belém, lugar de culto de toda a sorte de turistas. Os pequenos pastéis de massa folhada são recheados com creme de nata e saem do forno em enormes assadeiras em intervalos de minutos. Ao visitante sugere-se que polvilhe canela e açúcar em pó sobre o quitute.
Os azulejos portugueses e os azulejos de inspiração moura misturam-se nas paredes da fábrica, como que prestando homenagem à origem da própria doçaria portuguesa ou, no dizer de Gilberto Freyre: “Os doces de freiras foram um dos maiores encantos da velha civilização portuguesa, que antes aprendera com os mouros a fabricar açúcar e a fazer mel, doce e bolo”. O uso do açúcar em Portugal sintetiza a própria história do país: de origem moura, o açúcar, e o gosto pelo açúcar, viabilizou-se através da empresa ultramarina, em especial no Brasil. Foi a cultura da cana de açúcar que moldou a doçaria portuguesa. Sendo Portugal o grande produtor de cana nos trezentos anos de vínculo colonial com o Brasil, o açúcar era mais abundante e barato ali do que em qualquer outro país europeu. Essa herança se transmitiu para a colônia: a doçaria tradicional brasileira é herdeira direta da portuguesa, assim como a tolerância ao açúcar e a sabores de doçura acentuada também, como pontuou Gilberto Freyre.
Naquele domingo de março de 1500, a população se aglomerou para ver a partida das 13 naus sob o comando de Pedro Álvares Cabral. Era um dia de festa e, como qual, Lisboa se enfeitou, as pessoas deixaram suas casas e foram até as praias do Restelo assistir e saudar os navegantes. A partida se daria após a missa que se celebrou na Ermida do Restelo. A descrição da cena fica a cargo de Jaime Cortesão: “A capela da ermida, armada com panos de côrte e rútilas, regorgitava da gente nobre, de capitães e navegantes. (…) Sobre o altar, esteve arvorada a bandeira da cruz da ordem de Cristo. Um cheiro espesso a cera e incenso entontecia. (…) Na orla da água, o Rei, à despedida, recomendou uma última vez, com palavras amigas, a Cabral, a armada e os tripulantes. (…). As colchas dos barcos, as bandeiras, estandartes e librés cobriam de côres o Tejo, que, no dizer de João de Barros, ‘não parecia mar, mas um campo de flôres, com a prol daquele mancebia juvenil, que embarcava’. Nos bateis, que acompanhavam os que iam para o mar, sopravam, gemiam, batucavam, retiniam, num alarido bárbaro e atroaste, as trombetas, os atabaques, os sestros, as frautas, os tambores.”
Hoje, a Ermida do Restelo se esconde à sombra da fama dos grandes monumentos manuelinos. Embora esteja a alguns metros do mosteiro e da fábrica de pastéis, pouco se ouve a seu respeito. De suas portas se observa ao longe a Torre de Belém e guarda-se a vista do Tejo, a Ermida “tem aos pés o mar novo e as mortas eras”, da aventura portuguesa arquitetada pelo Infante Dom Henrique que, segundo Fernando Pessoa, teve “o globo do mundo em sua mão”. Em 1500 a sorte estava lançada – parafraseando Le Goff. A história portuguesa teve como centro não a colina, mas o Restelo, Belém: desta vez, um homem – D. Manuel – fixou o destino de uma cidade… E de um país.