A próxima parada da viagem cultural/gastronômica de João Grinspum Ferraz é a Catalunha. O historiador, cientista político e proprietário da Casa do Carbonara viajou pelo País Basco, Valência, Catalunha e Paris em busca das delícias gastronômicas que estimulassem muito mais do que o paladar, e vem colaborando com textos especiais para RG – esse já é o quarto. Confira!
Resplendor Catalão
João Grinspum Ferraz
Do projeto original da Catedral de Girona restaram apenas uma torre e o claustro. A nova arquitetura, que tomou conta de grande parte da Europa, terminou por se impor durante a obra. Antes disso, entretanto, a Catalunha se tornou a porta de entrada da península Ibérica por excelência. Era por ali que chegavam príncipes, cavaleiros e clérigos advindos de toda a cristandade para a aventura da Guerra de Reconquista. Concomitante às Cruzadas – a grande aventura cristã às portas do Oriente –, no front ocidental estava na ordem do dia expulsar os mouros da península Ibérica, tarefa alcançada definitivamente em 1492 d.C. Por ali passou, por exemplo, Henrique de Borgonha, sobrinho do abade Hugo de Cluny, com a missão de defender Barcelona dos ataques mouros. Casou-se com Sibila de Barcelona, e seu filho, também Henrique, recebeu o condado de Portucale que veio a se tornar Portugal.
Era o tempo de Cluny. Localizada na região da Borgonha, esta abadia beneditina se tornou entre os séculos X e XII o principal centro intelectual do mundo cristão. Ainda no século X, os clérigos de Cluny encabeçaram reformas no interior da Igreja, modernizando-a e abrindo espaço para as artes, o pensamento e os trabalhos sociais. Adotaram um modelo expansionista e se converteram em uma congregação: estimulavam os seus monges a fundar novas abadias pela Europa vinculadas à sede em Cluny, difundindo assim seu conhecimento, sua visão de mundo e suas artes. Foi através dos clérigos de Cluny que a arquitetura e a arte românica chegaram a toda a península Ibérica.
A arte românica que Cluny difundiu tinha como características o resgate de preceitos construtivos romanos e bizantinos. Se apropriaram dos arcos e abóbodas como maneira de criar grandes construções para edifícios religiosos; da memória de Bizâncio resgataram a ornamentação com figuras mais coloridas e opulentas. A grande abóboda da Basílica de Santa Sofia, construída pelo Império Bizantino em Constantinopla (Istambul), era a principal referência nas construções românicas.
A Catalunha recebeu muitas dessas influências, desenvolvendo um estilo românico particular, onde se destacaram a arquitetura, a pintura e a ourivesaria. Como ponto de passagem, a região tornou-se um importante entreposto de arte, cultura e religiosidade. Foi através da Catalunha que Pedro, o Venerável, abade de Cluny entre 1122 e 1156 d.C., trouxe os moçárabes – cristãos ibéricos que viviam nas regiões dominadas pelos mouros – para formar a junta de sábios que realizou a primeira tradução do Alcorão. Em uma operação cultural fundadora, o abade de Cluny acreditava que para enfrentar os mouros era primeiro preciso compreende-los.
Foi nessa época que se iniciou a construção da Catedral de Girona, originalmente projetada em estilo românico. Com os anos de obra, uma nova arquitetura gótica acabou por se impor na construção, restando do românico o claustro e uma torre. Os arcos, por exemplo, se tornaram pontiagudos, num estilismo que contraria sua logica construtiva original. Também em Barcelona a nova arquitetura gótica se impôs, hoje um bairro lá é batizado como “bairro gótico”. A ascensão do gótico como estilo preponderante na Europa está também relacionada ao enfraquecimento da abadia de Cluny face a força crescente da abadia de Cister – também na Borgonha. Cister foi fundada por monges saídos de Cluny, e ganhou força com seu modelo austero para a arte e a religiosidade, representado na figura de São Bernardo de Clairvaux. Por outro lado, foram os monges de Cister que refinaram a viticultura, aperfeiçoando o vinho na direção que até hoje se cultiva. Não por acaso, hoje a Catalunha tem cinco regiões demarcadas para a produção de vinho.
A dois quilômetros do claustro românico da catedral de Girona, está hoje o claustro do mais famoso restaurante da região. Com seu formato triangular, remete aos três irmãos: Joan, Josep (Pitu) e Jordi Roca que, em 1986, criaram o Celler de Can Roca, originalmente como anexo do restaurante dos pais, o Can Roca. Baseado na cozinha catalã, o restaurante se estabeleceu como um espaço que procura dar a mesma importância para o ofício dos três irmãos, Joan cuida da cozinha, Jordi das sobremesas e Pitu da fabulosa adega. Com o tempo, o restaurante passou a ocupar uma posição de vanguarda no cenário da cozinha espanhola, desenvolveu sua identidade combinando elementos tradicionais e a simplicidade da cozinha local com um repertório de técnica apurada – marca da cozinha de vanguarda da Catalunha.
Embora cada um dos irmãos Roca se dedique a um oficio específico no restaurante, há uma característica comum no trabalho dos três. A diligência com que se dedicam em seu fazer torna cada etapa da refeição um momento que conjuga beleza, emoção e uma aparência de simplicidade – que pode esconder um trabalho técnico extenso e complexo. O espaço para o estranho é reduzido na comida dos irmãos Roca, o virtuosismo também não é sobrevalorizado: a busca é pelo esplendor – o sublime, o belo e o transcendente. Durante sua estada ali, o visitante percorre simbolicamente a história dos próprio Roca e da comida e tradições catalãs – antigas e modernas, como é o caso de ‘gol de Messi’, uma sobremesa que se tornou notória.
Este esplendor está presente em cada uma das etapas por que passa o visitante. Cada prato que chega à mesa preparado pelo cozinheiro Joan Roca traz em si um delicado trabalho. Assim como nas pinturas românicas, onde nota-se cores planas e vivas, uma geometrização das formas e um cuidado marcado na justaposição das cores, nota-se nos pratos o mesmo trabalho – o mesmo entendimento e a mesma forma de encarar a natureza. A beleza dos pratos de Joan combina-se também com sabores delicadamente justapostos. O besugo, peixe semelhante ao pargo, chega à mesa recoberto por um fino ‘tapete’ colorido e geometrizado: cada pinta de cor desse tapete é um dos ingredientes da samfaina, um preparado típico catalão que pode conter, abobrinha, berinjela, cebola, tomate, alho e pimentão. Da mesma maneira, nota-se o trabalho laborioso na composição cromática de uma sopa de pistache que contem pepino, melão, queijo de cabra e romã; ou então em um leitão ibérico assado, servido rodeado de pequenas e saborosas gotas de um creme feito com diversas preparações de alho.
Ao passar para as sobremesas, área de domínio do irmão mais novo Jordi, nota-se um trabalho de composição estética ainda mais cuidadoso e complexo. Como um ourives românico, Jordi usa os ingredientes e seus sabores como pigmentos e pedras preciosas. Monta sobremesas exuberantes, como o Retropical, uma esfera gelada transparente recheada de flores e pequeníssimas esferas com sabores distintos. Da mesma maneira vem à mesa o Perfume turco, uma sobremesa cujos sabores pronunciados fazem clara referência ao Oriente Médio: creme de limão, gelatina de canela, rosas e sorvete de maracujá combinam-se numa intrincada composição servida em um prato de vidro com fundo dourado, numa estética luxuosa que nos remete a arte bizantina – assim como faziam os artistas e artesãos do século XII.
A parte terceira da tríade que caracteriza o restaurante é o serviço de vinhos, que pode começar em uma visita à adega junto com Pitu Roca. Ali ele passeia entre as garrafas por cinco nichos distintos, representando seus cinco vinhos preferidos: Champagne, Riesling, Borgonha, Priorato e Jerez. Em cada um dos nichos ele faz um emocionada explanação sobre as principais características de cada uma das regiões e o que nelas o interessa mais. O serviço de vinhos durante a refeição se pautará por essa orientação. Como um goliardo – os errantes intelectuais dos séculos XI e XII, cujas trovas e a vida boêmia consistiam em uma experiência quase religiosa – fica evidente, através de sua explicação, que suas preferencias privilegiam vinhos vivos, seus aspectos regionais e naturais – em contraposição a uma lógica globalizante e homogeneizante que tomou conta da grande produção vitivinícola. A poesia goliarda diz:
“Quero morrer na taverna
Onde os vinhos estejam próximos da boca do moribundo,
Depois os coros dos Anjos descerão cantando:
‘Deus seja clemente com esse bom bebedor’”
Esse arsenal multifacetado combina-se nas mesas dispostas em torno do claustro triangular, mas, ainda assim, nada é dito. Prevalece a beleza e a simplicidade. Através da comida, da bebida e do serviço é que se tem contato com a verdadeira matéria servida no restaurante. É o esplendor – palavra moldada pelos clérigos de Cluny na tarefa de combinar o belo e o transcendente numa experiência religiosa – que carrega o visitante para aquele lugar que Proust chamou de fora do tempo.