Um filme dirigido pelo estreante Renne França, professor de um curso de cinema do Instituto Federal de Goiás, e com um orçamento pra lá de enxuto (6 mil reais) causou frisson na última edição do Festival de Tiradentes, o terror Terra e Luz.
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Atualmente em cartaz na mostra O Amor, A Morte e As Paixões, em Goiânia, o longa foi definido pelo Estadão como “um exercício poético e político do sobrenatural” e “um raro casamento entre fantasia e realidade social”. Terra e Luz foi filmado com luz natural e com não atores e terá uma exibição especial em São Paulo no fim de março. Renne França falou com a coluna.
Como surgiu a ideia de Terra e Luz?
Em 2015 estava em uma viagem de ônibus entre a cidade de Goiás, onde moro como professor de Cinema do Instituto Federal de Goiás, e Goiânia, quando vi pela janela uma casa antiga cercada por um mato alto. Pensei em uma menina de vestido vermelho correndo para essa casa. Não por acaso esta se tornou a cena que abre o filme. Todo o resto veio a partir daí. Aos poucos foi surgindo um mundo, no futuro, inspirado pela paisagem do cerrado goiano. Uma realidade pós-apocalíptica. Tinha visto recentemente Mad Max: Estrada da Fúria, estava fazendo maratona de The Walking Dead… As coisas foram se misturando, apareceu na minha cabeça um homem alto, magro, sujo, de chapéu. Ele está perseguindo a menina… Mas e se ele não for o vilão? Mas o que pode ser pior do que um homem segurando um facão perseguindo uma menina inocente? Vampiros! E ali, olhando o cerrado pensei nesse homem seco como a terra, mas que como o próprio cerrado tem a chance de florescer de novo, apesar de sua aparente devastação. E ele precisa fazer o que for preciso para sobreviver nesse mundo em que a noite é mortal, habitada por criaturas aparentemente piores do que ele. Mas e se essas criaturas noturnas também só estiverem tentando sobreviver? Aí a coisa foi ficando interessante, e essa história foi ganhando uma força, surgiu uma necessidade enorme para mim de conta-la através de som e imagem.
O filme foi super bem recebido em Tiradentes. Você esperava que a recepção fosse tão positiva?
Quando o filme finalmente ficou pronto, fiquei satisfeito com o resultado, apesar de toda a falta de dinheiro. Então confiava no filme, mas sem nenhum distanciamento para saber como as outras pessoas o receberiam. Esperava que gostassem, mas as primeiras críticas que começaram a sair, tão positivas, foram uma surpresa. Por mais confiante, ninguém espera tantos elogios.
Você é um roteirista e cineasta estreante. Por que escolheu o terror para iniciar sua carreira?
É curioso que o terror não é meu gênero favorito. Mas a história que eu criei era uma história que funcionava melhor como terror. Não só por ter vampiros, mas porque eu estava agoniado na época com toda a turbulência sócio-política do país. Havia um clima de fim dos tempos, de desconfiança, de individualismo, de amizades desfeitas. E fiquei pensando nisso da vampirização: somos pressionados no trabalho, nas relações pessoais, e em resposta o que fazemos? Pressionamos outras pessoas que por sua vez pressionam outros… Uma cadeia infinita de vampiros, um sugando o sangue do outro até não restar mais nada. Esse clima de desesperança em cima do qual a história se construiu era um clima de terror. Além disso, enquanto gênero, o terror possui algumas características bem estabelecidas e clichês que ajudariam um diretor estreante a pensar nos planos, na organização dos quadros e no uso do som. Era mais fácil para mim partir de um gênero bem consolidado para contar uma história que, por vezes, podia ir além desse mesmo gênero.
Que referências você usou para construir o enredo de Terra e Luz?
Além de Mad Max e The Walking Dead, que foram importantes para a ideia desse mundo, como roteirista me inspirei no mangá O Lobo Solitário e no filme O Profissional, além de vários westerns e da situação social atual do país. Como diretor, me referenciei muito em trabalhos bem distintos como os filmes do Hitchcock, Kurosawa, Tarkovski, Sergio Leone e George Romero. Queria uma história muito clara, que pudesse ser compreendida com o mínimo de diálogo possível. Uma base forte para que pudesse jogar algumas metáforas nela, mas que quem não pegasse os simbolismos aproveitasse a história do mesmo jeito.
Qual a importância de um filme feito fora do eixo Rio Sao Paulo, sem grandes estrelas e com orçamento restrito estar sendo bem recebido pela crítica?
Este filme é inacreditável. Não apenas é fora do eixo Rio-São Paulo, é do interior de Goiás, de uma cidade de pouco mais de 20 mil habitantes. É sem financiamento, todo mundo trabalhando de graça, abraçando uma ideia louca de vampiros no cerrado. E não é só sem grandes estrelas. É com pessoas que nunca tinham atuado na vida. O destaque que ele vem recebendo é uma honra e é também uma forma de resistência, de marcar um lugar: estamos aqui, o cinema goiano está presente e nosso curso de Cinema do IFG está dando frutos! E isso é importante especialmente no momento que vivemos hoje de desmantelamento da educação e da cultura pelos governos. Nós somos uma escola, e nós fazemos cultura. É importante pra sobrevivência da educação e da cultura como possibilidade de transformar vidas. É importante para a manutenção do curso. Terra e Luz é uma afirmação do tipo: fizemos isso em um curso de Cinema no interior de Goiás, sem apoio externo, sem recursos. O que faríamos com grandes investimentos?
Quanto custou o filme?
Não fizemos uma tabela de orçamento claro, bem planejada. Fomos gravando e gastando à medida que as necessidades apareciam: cartão de memória, gasolina para os carros, lanche pra equipe, figurinos, essas coisas. Nossa estimava é de que o filme custou cerca de seis mil reais.
*Ricky Hiraoka foi titular do Terraço Paulistano, coluna social de VEJA SP, por três anos. Hoje, trabalha como roteirista e escreveu programas para E! Entertainment, Multishow e SBT. Quando não está escrevendo, está na noite de SP caçando histórias curiosas e gente interessante.