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Pequeno dicionário metafórico-futebolístico aplicado à dependência química J-M

J

Jogar duro: jogar firme, de acordo e sem relativizar nem um pouco as regras; inflexível; severo.  Conforme já foi dito em diversos verbetes, especialmente nos primeiros tempos, o cérebro do dependente não é capaz de dizer “não” aos automatismos interessados na próxima dose de álcool ou qualquer outra droga.  Essa capacidade “perturbada” é normalmente exercida por uma região cerebral denominada córtex pré-frontal.  Geralmente, para a maior parte dos casos, a tendência é que ele volte a assumir essa “função inibitória” sobre a vontade de consumir drogas, mas, infelizmente, casos mais graves e de uso prolongado podem ter uma recuperação mais arrastada e incompleta (vide o artigo Só um chopinho de vez em quando, pode?). | Desse modo, enquanto o córtex pré-frontal não volta a se reorganizar frente a interrupção do consumo e manutenção da abstinência, alguém tem que fazer o seu papel – para isso, a elaboração do contrato terapêutico e da estratégia de tratamento são fundamentais. Ambos contemplam dois aspectos que funcionam tal e qual um “autocontrole artificial”, que organizam a pessoal e possibilitam a mesma retomar sua vida com menor chance de recaída: o monitoramento e as atividades substitutivas (“agenda”) (vide Monitorar). | Acontece que inicialmente, mesmo para os pacientes mais motivados, o desejo de consumir é súbito e oportunista.  Por isso, é preciso jogar duro – é importante para o psiquismo do usuário saber que nenhum desvio será tolerado sem consequência, bem como que as estratégias de monitoramento instituídas não serão relativizadas em hipótese alguma – “posso ficar sem acompanhante terapêutico no meu aniversário?”. | Com nosso adversário não se brinca (vide também A regra é clara).

M

Malhar em ferro frio: insistir em uma ideia contraproducente; investir em algo que não vai se modificar; esforço em vão. Uma expressão idiomática não necessariamente relacionada ao futebol, mas que traz para a clínica da dependência química a questão, por vezes subjetiva e limítrofe, acerca da validade e do limite terapêutico de uma intervenção. | Dois aspectos precisam ser considerados: o estágio motivacional do paciente e em que extensão o mesmo se encontra psiquicamente preservado para compreender o que se passa com ele naquele momento, quais os objetivos do tratamento e o seu papel para a consecução dos mesmos. | PRIMEIRO ASPECTO * ESTÁGIOS MOTIVACIONAIS: O processo de mudança envolve a progressão através de cinco estágios motivacionais: na fase de PRÉ-CONTEMPLAÇÃO, a mudança não é considerada algo importante – o consumo é visto pelo paciente como adequado, sob controle e isento de complicações, um mero exagero por parte de seus familiares. | Em geral, as pessoas nesse estágio são os iniciantes muito jovens ou os que já se encontram gravemente dependentes (vide “erosão da discriminação normal”, em Medo de tomar o vermelho). |  Não há abertura para propostas de tratamento. | A conduta clínica na pré-contemplação dependerá da gravidade da dependência:  para casos moderados, é possível escolher temas paralelos – por exemplo, avaliar o histórico do uso, os relacionamentos do paciente ou os motivos que o trouxeram até o tratamento – e trabalhar com a família uma postura mais assertiva em relação ao comportamento de uso do paciente (vide Jogar duro).   Casos graves, com critica prejudicada, que expõem o usuário a riscos inaceitáveis (vide Medo de tomar o cartão vermelho) requerem condutas mais interventivas, incluindo a internação involuntária. | Durante a CONTEMPLAÇÃO a pessoa considera a mudança, mas ainda não se vê sem a substância psicoativa – “o cigarro ainda vai me matar, mas tomar um chopinho fumando é tudo de bom”.  | O comprometimento parcial do paciente deve ser encarado com naturalidade, como um momento de reflexão, em busca de uma solução conciliadora.  Do contrário, qualquer proposta confrontativa ou desafiadora, com imposição de ideias ou de condutas, apenas afastará o paciente, aumentando assim sua certeza acerca da impossibilidade de se abster. | O terapeuta, por sua vez, nunca deve desistir de ser a “personificação do desejo de abstinência do paciente”, evitando, assim, condutas meramente permissivas, tolerantes e despreocupadas em relação ao consumo, que esvaziam a razão de ser do tratamento. | A percepção de que o consumo de substâncias psicoativas saiu do controle e da governabilidade do paciente, caracteriza o estágio da DETERMINAÇÃO. Esse estágio pode ser o resultado de um longo processo de amadurecimento contemplativo ou emergir subitamente –  “sempre ironizei a pressão de meus filhos para que parasse de beber, até que um certo dia, há cerca de dez anos, meu neto, então com cinco anos, comentou alegre e naturalmente durante um jantar que “o vovô vive bêbado”; me assustei profundamente: aquilo que julgava sob meu controle, fora percebido por alguém dotado da mais pura inocência – que me admirava e dava sentido a minha vida; procurei ajuda e nunca mais bebi desde então”. | Apesar de efêmero, o estágio de determinação é um momento de grandes oportunidades terapêuticas: livre do sentimento de ambivalência, o paciente mostra-se disponível às solicitações e propostas da equipe de tratamento. Tal empolgação pode ser usada pelos profissionais visando a aumentar o comprometimento do paciente, bem como para implementar medidas protetoras – organização de uma agenda de atividades, estabelecimento de cuidadores, construção de estratégias de enfrentamento, rotinas de tratamento, além de outros. | Um processo de corrosão, porém, quase sempre se segue a esse estágio, no qual a ambivalência volta a exercer sua influência, enfraquecendo a determinação do paciente.  Nesse momento, as estratégias de enfrentamento instituídas são fundamentais para manutenção da motivação para a mudança. | A interrupção do consumo caracteriza o estágio da AÇÃO, marco inicial da caminhada do paciente rumo a um modo de vida livre de substâncias psicoativas.  Esse estágio é uma condição fronteiriça, situada entre a intenção de parar (determinação) e a execução de um plano de abstinência consistente.  Tal plano encontra no cerne do último estágio:  a MANUTENÇÃO.  Eis um estágio de grande duração e pleno de percalços, no qual prontidão e resistência à mudança – diga-se ambivalência – alternam-se constantemente, resultando quase sempre em RECAÍDAS. | A manutenção é o estágio da aprendizagem, construído por meio da introdução de estratégias de enfrentamento para não sucumbir à fissura e aos desejos autoindulgentes de consumo e pelo desenvolvimento de habilidades e dinâmicas assertivas, livres da mediação psicoativa das substâncias e capazes de melhor adaptar e conectar o paciente e seu jeito de ser e agir aos seus anseios individuais e interpessoais.  Um processo com prazo de duração de uma vida. | SEGUNDO ASPECTO * SAÚDE MENTAL DO PACIENTE | Além de cada tipo de abordagem considerar estágio motivacional vigente, é importante também avaliar a capacidade do paciente de entender o processo de tratamento de forma ampla – não é incomum encontrar pacientes “extremamente motivados”, porém, na prática totalmente ambivalentes e dissociados – um paciente com antecedente de dois surtos psicóticos há 5 anos, evoluindo desde então com piora do desempenho cognitivo e do pragmatismo – já passou em 3 faculdades, mas nunca cursou mais do que 2 semestres qualquer uma delas – parou de usar cocaína há três meses e deseja “parar para todo o sempre”, inclusive com a ajuda de testes toxicológicos.  No entanto, já no primeiro final de semana em casa, na companhia da avó, não saiu do banheiro a noite toda.  Ao ser indagado sobre aquele comportamento inusitado, o mesmo ficou visivelmente ofendido e irritado.  Quando o seu psiquiatra sugeriu a realização de teste toxicológico na urina, topou apenas a partir da semana que vem. | O caso descrito apresenta um paciente, cujo campo vivencial estreitado – provavelmente em decorrência das complicações psiquiátricas pregressas – o impedia de compreender a extensão do acordo que firmara, apesar de sua postura (dissociada) altamente determinada em parar de usar.  Na realidade, o seu estágio motivacional ainda estava pleno de ambivalências, muitas das quais, o paciente sequer era capaz de tomar ciência. | Nesses casos, é preciso entender os limites do paciente para que o mesmo “não espane” e abandone o tratamento, por sentir-se confrontado e perseguido. | Abordar sem considerar o estágio motivacional e o alcance psíquico do paciente, é “malhar em ferro frio”.

Medo de tomar o vermelho: Receio de ser expulso de campo de árbitro; medo de assumir a responsabilidade pela falta cometida.  Há algumas substâncias, alimentos e comportamentos capazes de estabelecer fortes vínculos de apego com os seres humanos, que reduzem em seguida sua capacidade de moderá-los.  É o caso do consumo de álcool e drogas, da ingestão excessiva de alimentos, bem como dos comportamentos de relacionados ao jogo, ao sexo e às compras – todas situações onde o estímulo inicial de prazer leva à perda total do controle sobre esse (vide os artigos A dependência química é um GPS e Só um chopinho de vem em quando, pode?).  | Tais “apetites excessivos” fazem surgir novos padrões emocionais e cognitivos de comportamento, com o intuito de diminuir a importância (“minimizar”, “negar”) dos danos causados pelos primeiros – tais como a perda de recursos financeiros, o surgimentos de sintomas de abstinência matinais, o consumo em locais, horários e quantidades inadequados, etc. | Também não é incomum o aparecimento de motivos de natureza oposta ao efeito desejado, que valorizam ainda mais a necessidade do consumo: “passei a fumar maconha todas as noites, porque passei a ter muita insônia”, “passei a beber na hora do álcool para relaxar, minha rotina matinal estava a ponto de me enfartar”.  Aos poucos, vai havendo uma “erosão da discriminação normal”, ou seja, dos fatores de proteção que moderavam aquele apetite – subitamente, beber na hora do almoço passou de um comportamento arriscado e ligado à dependência, a uma coisa ótima! | Isso vale também para as regras de convivência, para os padrões culturais, para as normas e leis em geral.  Claro que o usuário não perdeu a noção das mesmas, mas certamente, passou a minimizá-las em algum grau, de acordo com o estabelecimento e o avançar da sua dependência, que cada vez mais ganha espaço privilegiado na sua vida. | Eis o momento em que o jogador, por mais craque que seja, num momento de tensão no jogo ou de nervosismo pessoal extremo – algumas poucas vezes, infelizmente, por falha de caráter –, aplica um carrinho por trás e machuca o adversário.  O autor da atrocidade ainda se encontra no chão.  O juiz correu e se posicionou ao seu lado.  O jogador sabe que tomará no mínimo um cartão amarelo, se não tomar um vermelho.  Ele também sabe que enquanto estiver deitado, não poderá ser penalizado.  Dessa forma, permanece inerte, no chão, mais alguns segundos, na expectativa de seus colegas também se aproximem do juiz, façam pressão, enfim, minimizem o ocorrido e tentem demovê-lo da expulsão.  Até que uma hora, ele se levanta e assume as consequências do seu ato, o qual, algumas vezes, pode levar o jogador, para além de expulsão de campo, a uma penalidade maior, como uma multa ou afastamento por vários jogos. | No tratamento da dependência química, por outros motivos, o dependente, dentro de sua distorção cognitiva de minimizar falhas, tende a ocultar recaídas, a não revelar as quebras de contrato terapêutico, bem como as faltas aos compromissos assumidos – escola, faculdade, trabalho, terapia, cursos. | Acontece que em decorrência da mesma “erosão discriminatória”, que privilegia a próxima  oportunidade de consumo, em detrimento dos “contratos firmados com realidade”, o mesmo tende o ignorar o impacto daquilo que ocultou sobre a vida das outras pessoas envolvidas com a sua – por exemplo, não ir a faculdade para ficar usando com amigos e repetir por falta geralmente desperta um misto de preocupação e revolta nos pais, que se sentem impelidos a intervir – e que o mesmo segredo, é geralmente desprovido de consistência e tem vida curta – repetir por falta é um segredo que o dependente consegue guardar por poucos meses. | Nesses casos, é preciso que um conjunto de regras terapêuticas seja combinado entre todas as partes, que transmita confiança mútua e preveja consequências factíveis de aplicação, caso necessário.  Juntamente com essas regras, estratégias de monitoramento – tais como testes de drogas, acompanhamento terapêutico em diversos graus de intensidade, controles de frequência, etc. – devem ser instituídos, não para ‘vigiar e punir’, mas para oferecer uma oportunidade fidedigna ao dependente de contar o que de fato está acontecendo, dizer a “verdade-nua-e-crua”, já que o monitoramento vai mostra-la de qualquer jeito (vide Monitorar).  | Assim, além do exercício da conduta ética e do manejo adequado das consequências dos seus atos, ele aprende que os desfechos ruins e desagradáveis acontecem justamente quando um segredo protelado é descoberto por aqueles que o ajudavam, abalando frontalmente sua credibilidade | E, de quebra, ele também toma consciência de que, diferente do futebol, quando se diz a verdade e se trata a todos considerando preceitos éticos, apesar de uma falta, ninguém termina expulso de campo.  Um verdadeiro marcador de melhora e de recuperação bem-sucedida.

Monitorar [o jogo ou o jogador]: verificar, visando a um determinado fim; acompanhar o decurso.  O monitoramento é o décimo-segundo jogador em campo no futebol.  Saber como os seus jogadores estão desempenhando dentro do jogo e ao longo do campeonato traz não apenas a possibilidade de melhorar seu condicionamento e técnicas durante os treinamentos, como igualmente de utilizá-lo da melhor maneira dentro de campo.  Os preceitos do monitoramento já foram descritos (vide Estratégia de jogo) e a forma como serão colocados em prática dependerá do contrato estabelecido entre o paciente e seus familiares (vide Contratação). | A função maior do monitoramento é ajudar o paciente a dizer “não” para o consumo e “sim” para a abstinência (vide o artigo Ulisses, o canto da sereia e as amarras da abstinência). Especialmente nos primeiros tempos de tratamento, o paciente não tem estrutura cortical para inibir os arroubos do sistema de recompensa, sempre interessado na próxima dose (vide o artigo Dependência química é um GPS e  Só um chopinho de vez em quando pode?).  Desse modo, enquanto o cérebro busca se neuroadaptar à necessidade de se abster, uma “blindagem”, um “aparato inibitório externo” é organizado a partir de técnicas de monitoramento. | Além dos mais conhecidos, tais como o uso de testes toxicológicos para detecção de drogas, bafômetro, uso de medicamentos aversivos e acompanhamento terapêutico, há uma série de aplicativos que ajudam no automonitoramento ou no monitoramento à distância, por parte dos pais, por exemplo. | Vale sempre lembrar que o monitoramento nunca pode implementado com o objetivo de ‘vigiar e punir’, mas sim com o intuito de fortalecer um propósito que já existe dentro do usuário, mas que, por ainda se encontrar em estágio embrionário, sofre todo o tipo de interferência do desejo de consumir. | Sem monitoramento as chances de sucesso do tratamento diminuem consideravelmente.

Morrer na praia: Despender tempo e esforço para alcançar um objetivo, desistindo ou abandonando tal propósito na reta final; gastar esforço em vão.  Assim como no futebol, o tratamento da dependência química requer disciplina, dedicação e, por que não dizer, treinamento, pois estar abstinente é acima de tudo um aprendizado e um aprimoramento, lapidado nas rotinas do dia-a-dia, dentro das quais as recaídas são um incidente sempre possível.  A recaída é uma situação de crise, que pode tanto botar tudo a perder, quanto se transformar em uma oportunidade de superação.  Eis aqui o lado “morrer na praia do tratamento da dependência”, pois o dependente de substâncias psicoativas está o tempo todo às voltas com o tudo-ou-nada:  deixou de consumir há seis meses, voltou a trabalhar, começou a recuperar a confiança da família, mas de repente… desapareceu por 3 dias consumindo cocaína, foi demitido e a esposa decidiu definitivamente se separar dele.  Tudo muito difícil, trabalhoso e meticuloso de se reconstruir, tudo muito fácil, simples e grosseiro de se acabar.  Meses, anos podem ‘jogados fora’ em segundos:  esse eterno perigo que ronda a recuperação.  Assim como no futebol, não existe meia vitória ou meio campeonato, todos os aficionados pelo futebol conhecem times que estiveram na ponta da tabela de classificação durante todo o campeonato, mas que, por descuido, empáfia ou excesso de autoconfiança, acabaram perdendo jogos que não podiam e cederam a frente a para o adversário, na reta final.  Morreram na praia.  No tratamento da dependência química, assim como nos campeonatos futebolísticos, não existe time bom o suficiente para estar livre desse tipo de situação.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned). 

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