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Artigo – A dependência química é um GPS

Há mais de quinhentos milhões de anos, boa parte dos seres vivos estava organizada ao redor dos recifes de corais. Apesar de algumas dessas formações atingirem proporções gigantescas – a Grande Barreira de Corais da Austrália pode ser vista a olho nu, do espaço –, muitos peixinhos, ouriços, moluscos marinhos e suas gerações despendiam toda a sua vida ao redor de pequenas porções de recifes, se alimentando ou servindo de alimento dentro de alguma dentre as inúmeras cadeias alimentares que compõem esse delicado e complexo ecossistema submarino, absolutamente alheios da incomensurável vastidão do planeta ao seu redor.

Eis que num dado momento, talvez por volta de 250 milhões de anos atrás, alguns peixes se tornaram capazes de “mapear” objetos, locais, fenômenos e situações relacionados com a manutenção da vida e da espécie, inclusive a sua natureza cíclica. Isso permitiu aos peixes a possibilidade de visitar corais vizinhos sem perder o caminho de casa, bem como de relacionar o aumento da temperatura da água ou a incidência da luz solar, com o período reprodutivo dos corais e esponjas, cujos gametas, lançados ao mar em profusão, serviam de alimento para muitas outras espécies concorrentes. Desse modo, quem estivesse lá primeiro, ou fosse capaz de sincronizar o nascimento de suas crias exatamente naquela hora, sairia ganhando. Conforme se tornavam mais robustos e complexos, peixes como os salmões estabeleceram fluxos migratórios para regiões longínquas, em busca de alimentos mais interessantes e fartos, voltando ao ponto de partida para uma nova fase de acasalamento e reprodução. Milhões de anos mais tarde, esse fluxo, desenvolvido para retirar da natureza o máximo que ela tinha a oferecer aos salmões, seria compreendido pelos ursos, que com a chegada do degelo, passaram a esperá-los nas margens dos rios e a captura-los no ar, quando esses subiam saltitantes, contracorrente, para desovar rio acima.

Tais comportamentos se estruturaram graças ao surgimento, durante a evolução, de uma refinada e poderosa circuitaria cerebral e de um aparato endocrinológico, os quais, devido a sua capacidade de aumentar a competitividade entre os seres vivos, foram mantidos e aprimorados conforme os vertebrados iam se diferenciando em anfíbios, répteis, aves, mamíferos, primatas, em nós seres humanos. Esse sistema capaz de mapear os estímulos ambientais e de atribuir-lhes importância, com o intuito de gerar a melhor reposta comportamental para alcançá-lo, é chamado de sistema mesolímbico-mesocortical ou sistema de recompensa.

Desse modo, quando procuramos entender como as aves vencem longas distâncias sem se perder ou como os mamíferos delimitam seus imensos territórios, estamos falando desse extraordinário GPS biológico chamado sistema de recompensa, cuja função primordial é mapear tudo aquilo que interessa à manutenção da vida e da espécie, ou seja, tudo aquilo nos motiva a continuar vivos. Também é incumbência desse sistema – conforme já foi dito – encontrar a melhor resposta para garantir a manutenção da vida e da espécie; daí o espanto do dono com o seu sempre dócil cãozinho quando esse subitamente lhe mostra os dentes em tom de ameaça, no momento em que o mestre subtraía repentinamente do amigo, o seu suculento osso.

O ser humano contemporâneo, ao longo da sua existência, adquire incontáveis motivações, de diferentes durações e objetivos, cujo conjunto confere sentido para sua vida. Ao longo dessa trajetória, recompensas de diferentes naturezas e períodos de incubação vão sendo colhidas – da mera lembrança da pausa rotineira para o cafezinho, no meio da manhã, o aguardado jantar com os amigos no fim de semana, passando pela conquista amorosa após semanas de insistência, uma transa casual, as merecidas férias no lugar almejado durante meses, a tão sonhada graduação universitária, o namoro, o nascimento da filha, a casa na praia, até a aposentadoria – conquistada após anos de poupança e investimentos – são todos resultados de motivações suscitadas e de planejamentos instituídos, ambos ininterruptamente ‘recordados’ de modo automático por essa estrutura anatômica de centenas de milhões de anos.

Ao longo da evolução, algumas substâncias psicoativas, fabricadas por algumas plantas em baixíssimas concentrações, foram sendo “marcadas” pelo sistema de recompensa como sinal da presença de alimentos altamente nutritivos e desejados. Por exemplo, o álcool, presente nas frutas maduras em concentrações ao redor de 0,3%, há milhões de anos, tinha a função de “lembrar” aos vertebrados que árvores carregadas de frutos estavam disponíveis naquele momento e eram desejadas por muitos. Relações semelhantes já foram descritas para substâncias como a cafeína e a cocaína, ambas presentes na natureza em concentrações raramente superiores a 0,5%.

Até que, num dado instante, há poucos milhares anos, os seres humanos e suas engenhocas conseguiram concentrar essas substâncias. Por sua vez, o sistema de recompensa – há milhões e milhões de anos naturalmente sensível a quantidades diminutas dessas – se viu, em alguns casos, “sequestrado” por seus efeitos de reforço e prazer, que de meros sinalizadores, passaram a ser o seu “objetivo-fim”. Para esses casos, o GPS do sistema de recompensa passou a mapear o mundo em função da busca e do consumo daquela substância, em detrimento de repertórios já adquiridos ou da aquisição de novos.

É extremamente perturbador conduzir um veículo quando se decide alterar o destino final, sem mudar o GPS.   A campainha anunciando a constante reprogramação da rota e a narração de voz sugerindo uma reorientação para o destino inicialmente selecionado são extremamente perturbadoras para quem está ao volante. A diferença é que nesse caso, a consciência do condutor, apesar das interferências em contrário, permanece no controle; já nas situações em que o sistema de recompensa mapeou o mundo em função do consumo de substâncias psicoativas, a consciência – dissociada e como que desprovida de crítica – passa a funcionar no sentido de garantir a próxima dose, mesmo sabendo dos prejuízos relacionados a essa atitude, mesmo à custa do desconforto ao seu senso de ética pessoal, ainda que marcadamente em dissonância com o seu discurso de “não quero mais usar” ou “vou diminuir”. A partir desse instante, a consciência nesse cérebro perdeu protagonismo e passou a ser apenas a sua passageira. Eis o surgimento da dependência química. 

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).    

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