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Só um chopinho de vez em quando pode? – ou a alegoria da encosta deslizada

O desejo de voltar a beber, de fumar “um cigarrinho” ou de usar drogas de vez em quando, de modo controlado, é o “sonho de consumo” de muitos dos que procuram ajuda para lidar com as dificuldades relacionadas à dependência química. Tal anseio parece se aproximar do possível quando o tempo de abstinência se associa à retomada bem-sucedida do trabalho, da autoestima e dos relacionamentos.  Nesse contexto vitorioso, qual seria o problema de voltar tomar um chopinho com os amigos ou de fumar um baseadinho, sei lá, muito raramente?

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A principal questão a se considerar é que após o desenvolvimento da dependência, o tecido cerebral não voltará a ser o mesmo. Cada um nasce com predisposições genéticas únicas para lidar com a influência de estressores ambientais. Tal e qual uma montanha, existem pessoas de estrutura rochosa vulcânica, recoberta por um solo denso e profundo, sobre o qual se enraizou uma exuberante floresta; já, outras, se apresentam como um terreno menos coeso e arenoso – ou argiloso – com estrutura rochosa sedimentar e enraizamento mais frágil e instável.  Quanto ao equilíbrio, algumas possuem encostas suavemente inclinadas, enquanto outras, são perigosamente escarpadas e vulneráveis à ação da gravidade.  Esse é o nosso patrimônio genético.

Esse patrimônio sofre a ação o tempo e dos próprios seres humanos – o estresse ambiental propriamente dito. Fenômenos como a negligência, abusos e maus-tratos durante a infância, o bullying, a violência urbana, a dieta desregrada, a agenda lotada, a falta de convívio e os padrões problemáticos de consumo de álcool, tabaco e outras drogas encontram-se nesse grupo.  Eles podem ter uma ação extremamente erosiva e cáustica, mesmo sobre as estruturas genéticas mais sólidas e estáveis. Uma parte significativa daqueles que procuram tratamento para dependência química possui algum tipo de trauma infantil grave.

Não existe um consumo de drogas considerado “normal”, “fisiológico” ou “isento de riscos”.  Cada episódio de consumo é uma ‘chuva não programada’, mas como foi dito, cada cérebro vem de fábrica com uma reserva funcional para absorver esse ‘imprevisto’. No entanto, não é incomum alguns usuários, a partir do desenvolvimento de um padrão consumo regular, ficarem expostos a “chuvas acima do índice pluviométrico suportável”. Tal excesso poderá provocar alterações paulatinas nos tecidos neuronais em diferentes níveis de gravidade, de acordo com a constituição de cada um.  É como se a montanha, por milhares de anos habituada a um determinado regime  pluviométrico, tivesse que suportar por anos a fio, um volume de água imensamente superior, dentro de um período de tempo concentrado. Certamente, ao término dessa descarga desproporcional, o solo estará muito mais alagado, o seu enraizamento mais frágil e comprometido, sua configuração mineral alterada, o húmus terá sido levado e a microfauna que o habitava seriamente comprometida.

Como resultado desses “alagamentos psicoativos”, processos inflamatórios vão lesando os tecidos e as conexões neuronais vão se desarticulando. Consequentemente, os comportamentos de consumo vão ganhando autonomia, sendo desencadeados cada vez mais de modo automático, descontrolado e conflituoso, ao sabor de gatilhos ambientais ou de situações de estresse aparentemente irrelevantes.  Dessa forma, acredita-se atualmente que para aqueles para os quais a chuva caiu além da média prevista pelo seu “serviço-meteorológico-genético”, uma doença de natureza progressiva, denominada dependência química, instala-se no seu sistema nervoso central de modo mais ou menos estável.

Boa parte passará por essa enxurrada bioquímica de grandes proporções e após algum tempo, se reestruturará psicossocialmente sem sentir nenhum tipo de sequela neurobiológica.  Mas certamente, suas células nervosas ficarão para sempre “mais sensíveis” à ação de gatilhos relacionados com uso compulsivo de substâncias psicoativas ou à busca de recompensa imediata perante a presença de estresse.  Alguns terão de administrar sequelas cognitivas sutis de atenção e memória, enquanto outros terão que conviver por  algum tempo com sintomas psiquiátricos ou neurológicos, isolados ou combinados.

Uma parte considerável, porém, sofrerá “erosões” e “desastres naturais” provocados pelo “excesso de chuvas”, levando ao surgimento de sintomas de abstinência pronunciados, bem como de sintomas psiquiátricos, de alterações cognitivas e neurológicas secundários graves.  Casos assim sugerem a presença de alterações estruturais do cérebro ou, muitas vezes, de lesões neuronais irreversíveis.  Seria como pensar, nesses casos extremos, que a encosta dessa montanha, cuja configuração já se encontrava alterada previamente em decorrência dos anos de consumo e da dependência, acabou deslizando por completo.

Assim, ficou claro, que após o surgimento da dependência, todo tipo de exposição ao uso de substâncias psicoativas é extremamente arriscado, pois mesmo onde se observa uma melhora significativa, o “solo cerebral” se tornou, no mínimo, menos absorvente e resistente à ação das “chuvas psicoativas”.  Assim, um chopinho, ao invés de um chuvisco, pode equivaler a uma chuva de gotas largas e propiciadora de sérios alagamentos; em caso de “erosões” e “deslizamentos”, quando danos cognitivos e transtornos psiquiátricos se desenvolveram a partir do uso crônicos de substâncias psicoativas, qualquer tipo de chuvisco pode facilmente provocar novos incidentes e deslizamentos – nesses casos recomenda-se que o que restou de “cobertura florestal”, seja irrigado e alimentado apenas pelas “águas de chuva” de neurotransmissores produzidos naturalmente pelo sistema nervoso, os quais, muitas vezes com o apoio de medicamentos psiquiátricos e de técnicas de tratamento e de psicoterapia específicos, no decorrer do processo de retomada da abstinência, vão estruturar um novo equilíbrio possível para o sistema nervoso central daquela pessoa.  Segue a vida.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned). 

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