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Ulisses, o canto das sereias e as amarras da abstinência

” – Posso vencer a cocaína sozinho, não preciso de um acompanhante terapêutico vinte e quatro horas por dia para isso.” “– Tomar medicação que faz passar mal se recair para eu parar beber? Estar aqui já não é o bastante para você entender que isso é o que eu mais quero nesse momento?”  “– Me recuso a ser testado no xixi, não tenho que provar nada para ninguém!”.

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O genial, poderoso e invencível general Ulisses de Ítaca, pensava diferente: após sair vitorioso na Guerra de Tróia, voltava para o seu reino, onde o aguardavam a rainha Penélope e o seu filho, Telêmaco, quando o bravo Odisseu – como também era conhecido – quis ouvir o canto das sereias. Ele sabia que era impossível resistir à melodia voluptuosa daquelas musas marítimas ardilosas, que buscavam atrair os marinheiros, valendo-se da natureza frágil, pretensiosa e meritória do estado de suas consciências autoindulgentes, ainda mais depois de longos períodos em alto-mar –, momento em que eram subjugados, destruídos e devorados sem piedade.

Ulisses, ciente de sua limitação cognitiva, ordenou que os ouvidos de toda a tripulação fossem vedados com cera e que ele, o poderoso general, fosse amarrado ao mastro do seu próprio navio. Quando as sereias surgiram, rapidamente convenceram-no de que estava tudo bem e que ele poderia se aproximar. Crédulo e cada vez mais desesperado por sua soltura, começou a ordenar à tripulação que o desamarrasse, para que pudesse se juntar às musas – jamais em condições habituais um general poderia tolerar ser contrariado por sua tripulação, a não ser que essa estivesse impedida de ouvi-lo. O navio foi ganhando distância, as vozes sedutoras, amainando. O general recobrou sua consciência plena e percebeu o quanto a atitude de se amarrar fora realmente a mais acertada e salvadora.

A história de Ulisses é bastante elucidativa para o tratamento da dependência química: a vontade de parar de usar álcool, tabaco ou qualquer outro tipo de substância psicoativa não é o bastante. O general sabia que a razão tinha autonomia limitada perante alguns impulsos do desejo e por isso, resolveu coibi-los preventivamente. Assim, quando ela foi “tomada de assalto” e colocada a serviço de um desejo imediatista e destrutivo ele estava, literalmente, de “mãos atadas”. Só lhe restou, então, deixar o tempo passar até o canto silenciar e sua consciência voltar à segurança. Naquele momento, escolher abrir mão do poder decisório foi a atitude mais acertada – de outra forma, teria jogado o seu barco e toda sua tripulação contra as rochas.

Esse é um dilema inicial à espreita dos dependentes que decidem deixar o consumo: nos primeiros tempos, o seu córtex pré-frontal, morada da razão, perdeu capacidade inibitória e funciona basicamente para executar os automatismos disparados pelo sistema de recompensa cerebral. Simples assim. Pode prometer o que quiser – “vou parar”, “juro que essa foi a última vez”, “droga se fosse boa, não se chamava droga”, sabemos que o usuário acredita no que diz e tem propósitos nobres. Só que lá fundo, seu cérebro sabe que a história final vai ser outra, que as sereias vão cantar e é na direção oposta que ele vai acabar indo, num momento de estresse, depois de uma discussão ou simplesmente, porque ‘do nada’ um gatilho disparou e ele não resistiu.

Nesse sentido, é importante entender e partir do pressuposto de que o usuário de substâncias psicoativas se transformou em um refém das oportunidades de uso e será praticamente impossível ele dizer não a tais apelos – ainda mais seguidamente – sem sucumbir.   Desse modo, no começo, é preciso blindar a pessoa, evitar exposição às situações de risco e, principalmente, criar com ela e com a ajuda da família uma estratégia de monitoramento, não com o intuito de vigiá-la, mas, assim como fez Ulisses, para salvaguardar o seu desejo de permanecer fiel ao propósito da abstinência.

Por isso, segundo os estudos, especialmente os primeiros cem dias,– os quais devem se estender com menor intensidade de cuidados pelos próximos dois anos –, são dias de travessia por mares revoltos e cantos de sereia sedutores, nos quais é preciso construir uma estratégia para lidar as armadilhas da razão, desenvolvendo-se para isso um plano de evitação de estímulos. Eis os motivos pelos quais faz diferença, muitas vezes, tomar medicamentos aversivos: frente à perspectiva de beber e passar mal, as oportunidades de beber perdem sentido e a vontade, consequentemente diminui consideravelmente. Da mesma forma, estar sob monitoramento vinte e quatro horas ou sob testagem semanal deixam a pessoa mais tranquila, pois ela tem agora argumentos concretos que a “prendem” objetivamente ao seu desejo inicial que ela mesma tem de parar, não ficando mais “bombardeada” pelo desejo de usar.

Desse modo – graças aos métodos de monitoramento – conforme as semanas vão passando, aquela energia melódica e sedutora, antes investida no planejamento, aquisição e consumo das substâncias, vai perdendo força, permitindo agora que a mesma seja reinvestida em outros campos da vida do indivíduo, especialmente na retomada de atividades pessoais, profissionais e relacionais. Quanto mais o indivíduo tem estrutura para levar isso adiante, ou seja, quanto maior as suas possibilidades de recuperação, mais rápida essa travessia, que no início é muito mais uma atitude do que um ato de vontade. Atitude essa que, ao final, mantem a pessoa no comando da embarcação.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned). 

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