Pequeno dicionário metafórico-futebolístico aplicado à dependência química | A – C
A partir deste domingo, e depois nos próximos cinco últimos domingos de cada mês, esse “pequeno dicionário” será publicado nesta coluna. O conteúdo do mesmo, de maneira clara, acessível e despretensiosa, tem como intuito aproximar o leitor de aspectos técnicos relacionados ao desenvolvimento, ao cuidado e ao manejo da dependência química, utilizando-se para tal a linguagem e o imaginário do futebol.
A
A regra é clara: algo não passível de ser interpretado ou relativizado. Habitualmente, o dependente de substâncias psicoativas tem grande dificuldade em lidar com regras – podendo tal dificuldade ser ainda maior na vigência de transtornos de personalidade ou de transtornos psiquiátricos prévios. Em primeiro lugar – mas não necessariamente nessa ordem – as experiências positivas de uso e o subsequente consumo continuado levam o cérebro de algumas pessoas a mapear o cotidiano em função da droga, em detrimento de outros campos de vida, que outrora lhe eram caros, tais como família, trabalho, lazer, autocuidado (vide o artigo “A dependência química é um GPS”). Na esteira do aumento da relevância da droga para o psiquismo, ocorre uma “erosão da discriminação normal” (vide o verbete Medo de tomar o vermelho), ou seja, uma distorção cognitiva que tende a não valorizar o impacto do consumo sobre as outras pessoas, bem como não tomar consciência dos subterfúgios utilizados para adquirir as substâncias preferidas e dos desvios de ordem ética cometidos, mantendo-os em segredo, como se tal comportamento fosse natural ou um direito do paciente. Veja-se, por exemplo, o caso de uma usuária que roubou um carro e retirou-lhe as peças para a venda e compra de drogas, deixando a “carcaça” escondida na fazenda dos pais, até a polícia encontrar os restos do veículo e surpreender o pai com um mandado de prisão para ele; ao ser indagada, a filha afirmou que deixara o carro na fazenda apenas provisoriamente e que não tinha culpa se, por puro azar do destino, a polícia fora chamada pelo vizinho, devido a uma briga entre colonos.
Desse modo, a presença de transtornos mentais primários ao uso de substâncias psicoativas, de transtornos secundários, ou de ambos fazem com que o usuário de drogas, com frequência, não se reconheça como o violador das regras, ou condicione tal quebra à influência de terceiros, os quais são alçados por ele ao posto de reais responsáveis.
Considerando essa dificuldade, uma das etapas primordiais do tratamento da dependência química é o estabelecimento de um contrato terapêutico, no qual um conjunto de regras é instituído de comum acordo – paciente, familiares e profissionais envolvidos – e passa a regulamentar o andamento do cuidado (vide o verbete Contratação). A função do contrato não é “coibir”, mas sim, “organizar” o paciente, uma vez que, sabendo que suas atitudes terão consequência, tenderá a se organizar mais – ou procurar ajuda para tal – visando a evitar quebrar regras desnecessariamente. Além disso, dentro de um ambiente acolhedor, a quebra da regra poderá ser discutida com a devida reflexão, em conjunto com a equipe e a família, dando a oportunidade ao paciente de perceber que encarar os fatos é mais produtivo do que tentar ocultá-los.
É imprescindível que o paciente tenha a plena noção de que “a regra é clara”, ou seja, não passível de interpretações e relativizações; e que aquele que viola ou descumpre a regra arcará com as consequências previstas no contrato, independentemente dos motivos ou da influência das pessoas que o levaram a fazê-lo. | E ponto final.
Administrar a vantagem: Dispender menos energia defensiva e de ataque em relação ao adversário, por se sentir em vantagem perante ele. O momento de administrar a vantagem é um dos mais difíceis no tratamento da dependência química: em geral, os profissionais tendem a ser mais conservadores, são, em geral, adeptos da manutenção prolongada das medidas de monitoramento (vide o verbete Monitorar), tais como consultas semanais, uso de testes toxicológicos e medicamentos aversivos (como o dissulfiram), especialmente quando o dependente se ressocializa a passos largos, retoma do trabalho, a faculdade, se aproxima com os filhos, etc. Para o dependente, no entanto, o sucesso e o retorno à normalidade são vistos, muitas vezes, como um sinal de que as medidas de monitoramento não são mais necessárias e por isso, podem ser diminuídas ou removidas.
Desse modo, a primeira estruturação do tratamento é um momento bastante delicado, pois poucos entendem que essa primeira sensação de melhora é justamente a fase em que a pessoa está ficando um pouco mais autônoma para se defender – ou seja, para evitar estímulos e situações de risco – mas ainda está muito longe de saber enfrentar situações de fissura sozinha e manejar o estresse cotidiano.
De forma que a melhor maneira de se administrar a vantagem dos primeiros tempos de abstinência é considerar, em primeiro lugar, que essa vantagem é responsabilidade do técnico – ou seja da equipe de saúde – , não dos jogadores. Em segundo lugar, é necessário admitir que o “departamento do autocontrole” do paciente deve ser gerido de forma compartilhada com os profissionais – e com a família, sempre que possível – e que isso não é nenhum demérito. Muito pelo contrário, trata-se de um privilégio ter profissionais interessados em cuidar da saúde mental de alguém, incluindo a sua gestão pessoal – nenhuma vantagem é eterna ou intransponível e o adversário é de respeito (vide o verbete Respeitar o adversário).
Agenda de jogos: compromissos assumidos pelo time. A estratégia de tratamento da dependência química é composta por quatro elementos, resumidos sob a sigla MAPE: monitoramento da abstinência e das atividades previamente acordadas (M), agenda de atividades substitutivas (A), pessoas e ambientes de não-uso (P) e manejo das situações de estresse (E) (vide o verbete Estratégia de jogo, para ler a descrição de cada uma delas).
Mais do que manter o paciente ocupado, em atividade, a “agenda de atividades substitutivas” deve ocupar o espaço outrora dedicado à busca ou ao consumo da substância psicoativa de preferência, ao mesmo tempo em que motiva e facilita ao usuário encontrar um novo estilo de vida.
Nos dias hoje, as grandes equipes de futebol chegam a participar de três, quatro campeonatos, simultaneamente. Para isso, contam com um elenco de craques duas vezes maior do que o necessário para se formar um time, têm preparadores físicos de ponta e, ainda assim, entram em campo várias vezes com o time reserva.
O dependente químico, por falhas iniciais na sua capacidade cognitiva de avaliação da realidade (vide o verbete Medo de tomar o vermelho), pelo desejo afoito de “correr atrás do prejuízo” e retomar a vida (vide verbete homônimo) ou simplesmente porque muitas vezes “entra em campo de salto alto” (vide verbete homônimo) assume vários compromissos para os quais ainda não estava pronto, tanto pela demanda cognitiva individual de cada um deles, quanto pelo conjunto das atribuições, gerando estresse e aumentando as chances de recaída. O excesso de atribuições também aumenta as chances de baixo desempenho, de fracasso e de frustração, que culminam no abandono da maioria dessas atribuições, reforçando o sentido de insegurança, menos valia e incompetência que frequentemente persegue esses indivíduos.
Desse modo, como parte da estratégia de tratamento, cabe à equipe de saúde orientar o paciente e seus familiares para que a agenda de compromissos sirva como ponto de apoio, equilíbrio, estruturação e proteção do paciente e não como fonte de estresse, frustrações e fracassos, que culminam invariavelmente em recaídas e abandono de tratamento.
Ajustar os ponteiros: entrar em entendimento, resolver as diferenças. O tratamento da dependência química é um longo processo, composto por vários outros, de menor duração e, sendo assim, está em constante transformação. As demandas e a postura do paciente e de sua família tendem a mudar com a passagem do tempo. Inicialmente, pode ser que a internação para desintoxicação seja a melhor saída, considerando o estado de inquietação e de incapacidade do paciente em se abster, ao lado da postura permissiva e distante da família. Trinta dias depois, a situação já pode ser outra: os sintomas diminuíram, um vínculo com a equipe foi estabelecido e um contrato terapêutico pode ser desenvolvido. Durante o tratamento, apesar da manutenção da abstinência, questões familiares antigas – por exemplo, situações pregressas de violência no lar – podem acirrar os ânimos entre o paciente e seus pais, necessitando reformulações para que a equipe possa trabalhar esse problema mais objetivamente.
Além das constantes transformações pelo lado do paciente, a equipe de saúde também passa por modificações, conforme vai se tornando mais experiente – caso a caso – ou vai se familiarizando com o caso específico daquele paciente. Além disso, a saída ou a contratação de novos componentes, ou mudanças momentâneas na rotina ou na atitude de um de seus membros pode ter impacto sobre o paciente e seus familiares, especialmente no começo, quando o vínculo terapêutico é frágil e o psiquismo do paciente, desorganizado. Veja-se como exemplo um psiquiatra que tinha na assiduidade uma de suas maiores qualidades profissionais; durante um mês com excesso de pacientes, somado a uma doença grave e inesperada, diagnosticada em seu filho pequeno, o mesmo tornou-se menos disponível do que o habitual. Como deixou de responder às mensagens de texto prontamente e chegou atrasado duas vezes, por conta da cirurgia do filho pequeno, um de seus pacientes – fragilizado pelo início do tratamento e com transtorno de personalidade emocionalmente instável – sentiu-se desconsiderado. A família dele, ciente, mas incapaz de empatizar com a situação do médico, procurou-o queixosa, querendo tirar satisfações pelo seu “desleixo”.
O tratamento, conforme se vê, precisa ser constantemente ajustado e as falhas ou intercorrências, abordadas e trabalhadas sempre que surgirem. | Quanto mais as coisas seguirem desajustadas, pior ficará o “clima do atendimento” (vide o verbete Equipe sintonizada) e maiores as chances de fracasso.
Arrumar a casa, [sinom., botar a casa em ordem]: Recompor a equipe após uma forte investida do adversário. A recaída pode ser definida como o colapso de uma estratégia instituída, na tentativa de se manter abstinente. Apesar do sentimento inicial de fracasso, a recaída não significa o término do tratamento, mas apenas de uma tentativa de realizá-lo.
A primeira medida a ser tomada é “botar a casa em ordem”, recompor a equipe, reavaliando vínculos e responsabilidades. A estratégia precisa ser revista (vide o verbete Estratégia de jogo). Muitas vezes, a casa precisa ser arrumada de modo preventivo, pois os profissionais se desentrosaram, aspectos importantes do tratamento estão sendo levados em banho-maria – negligenciados –, comportamentos outrora superados voltaram a aparecer, etc. Arrumar a casa é fazer autocrítica construtiva.
B
Bola fora: cometer uma gafe; errar; dar com os burros n’água. Intercorrências e maus momentos fazem parte da vida – e o jogo segue. Assim como outras situações indesejadas – tais como “pisar na bola” e “bola nas costas” (vide verbetes homônimos) – fracassos na condução do tratamento e na retomada da autonomia são sempre fonte potencial de estresse e recaída. Nessas horas, “arrumar a casa” e “ajustar os ponteiros” (vide verbetes homônimos) são atitudes altamente terapêuticas, pois ajudam no adequado reestabelecimento do “clima do tratamento” (vide o verbete Clima do jogo) e podem ser o ponto de partida para que a estratégia de tratamento e o contrato terapêutico sejam reajustados da melhor maneira possível (vide os verbetes Estratégia do jogo e Contratação).
Bola nas costas: passe ou lançamento mal elaborado, que deixa o zagueiro perdido e concede toda vantagem ao atacante; imperícia. Assim como “pisar na bola” e “bola fora” (vide verbetes homônimos), os erros de planejamento precisam ser encarados como possibilidades, preferencialmente num ambiente de união, livre de julgamentos, mas ao mesmo tempo, sem que haja esquivamento de responsabilidade (vide comentários sobre segredo, no verbete Medo de levar o vermelho). Erros grosseiros, como “bola nas costas”, “perda do pênalti” ou do “gol cara-a-cara” devem suscitar aproximação entre os membros do time e não o afastamento rancoroso e fomentador de ressentimento e estresse, que desagrega vínculos terapêuticos e fortalece funcionamentos voltados para o consumo.
Bola para frente: persistir; nunca desistir. Essa é definitivamente uma das máximas mais importantes do mundo futebolístico aplicado ao tratamento da dependência química. Só melhora quem não desiste, quem permanece em tratamento, por mais óbvio que isso possa parecer. Quem sucumbiu diante de alguma “pedra no caminho”, de alguma intercorrência ou diante de algum fracasso na estratégia de tratamento instituída (vide o verbete Estratégia de jogo) e parou de jogar, com absoluta certeza está pior do quem está dentro de campo, tentando.
Claro que, para a “bola ir para frente” com efetividade é necessária uma exposição adequada ao tratamento, ou seja, uma “dose terapêutica” adequada – regar um vaso três vezes por semana, durante um período de estiagem, é melhor do que nada, mas as plantas experimentariam o seu máximo vigor se esse procedimento acontecesse diariamente; sob essas mesmas condições, regá-lo mensalmente por ser o mesmo que nada – nesse sentido, um paciente usando cocaína diariamente, mas afirmando estar abstinente e recusando-se a qualquer tipo de monitoramento, tendo o antecedente de dois surtos psicóticos tratados e não aceitando nenhum tipo de orientação por parte dos pais, não se beneficiará de abordagens ambulatoriais espaçadas, cujo contrato dependa exclusivamente de sua anuência e de sua força de vontade.
De toda a forma, sempre que um “embate terapêutico” entre a equipe de saúde – mais a família – e o paciente, a intenção derradeira deste nunca é a de “expulsar o paciente de campo” (vide verbete homônimo), mas sim, “botar a bola para frente”, persistir no jogo… até a vitória.
C
Cair a cabeça do técnico: Demissão do técnico e de sua equipe de trabalho. A demissão do técnico de futebol é um momento delicado dentro do mundo da bola. Em geral, deixa transparecer a todos tanto um momento de crise vigente, quanto a necessidade de reformulação para suplantá-la. Assim como os times de futebol, os pacientes com transtorno mental têm um histórico de passagem por vários psiquiatras, psicólogos ou programas de tratamento. Muitas vezes, um determinado técnico e sua equipe foram essenciais para enfrentar uma situação de dificuldade e superação pela qual o clube passava, não atendendo mais às necessidades atuais ou vindouras. Outras vezes, o técnico não soube manejar uma situação de crise, a mesma se ampliou, todos ao redor se desorganizaram e uma nova figura de natureza estruturante se fez necessária para colocar o time novamente “nos trilhos”.
Há sempre um profissional mais capacitado na condução do tratamento – mais frequentemente, o psiquiatra assume essa posição, mas muitas vezes a família está mais próxima do psicoterapeuta, do clínico-geral, do geriatra que acompanham o paciente com maior regularidade, fazem as principais reuniões e assumem as atitudes mais estratégicas, nas quais o psiquiatra também se insere. | O que é importante considerar é que a estabilidade do “técnico-mental” só terá sustentação se a presença dele no posto de condutor daquele caso for consenso entre todos – paciente, familiares e demais profissionais – qualquer vacilo por parte da família para confirma-lo no comando, acordos escusos entre as partes longe do seu consultório, críticas ou “conselhos paralelos” por parte dos outros profissionais que compõem o grupo de cuidadores podem ser altamente danosos e abrir precedentes para que a doença do paciente, até aqui sob controle, volte a encontrar brechas para atuar, romper contratos e inviabilizar a proposta terapêutica em andamento. | Essa é a hora em que a cabeça do técnico cai (vide também o verbete Ajustar os ponteiros).
Caixa de surpresas: sede de todas as possibilidades; imprevisível. “Cada caso é um caso”, para fazer uso do jargão da saúde mental. O profissional da saúde também não pode se dar ao luxo de entrar no tratamento “de salto alto”, achando que já viu e tem resposta para tudo. Ele também está no campo do tratamento, em parte, para aprender, ou melhor, para se surpreender. Desse modo, o trabalho em equipe e o gerenciamento de caso são estratégias essenciais para se lidar com casos que envolvem tamanha complexidade, como acontece na dependência química.
Chamar a responsabilidade do jogo: Assumir protagonismo. Quem já assistiu ao videoteipe da final da Copa do Mundo da Suécia (1958), entre Brasil e a seleção da casa, certamente se recorda da antológica caminhada do meio-campista Didi – o “Senhor Futebol”, o “Príncipe Etíope”, segundo Nelson Rodrigues – , até o arco brasileiro, para retirar a bola do primeiro gol sueco do fundo das redes e levá-la com a mesma tranquilidade, humildade e elegância de volta ao meio do campo. Ele era um dos mais experientes do time, tinha quase 30 anos – Pelé tinha apenas 17. A caminho do círculo central foi abordado pelos outros jogadores brasileiros, que o respeitavam piamente, e pediu a união de todos em prol da vitória. Não se tratava apenas de estimular os mais novos, obviamente pressionados pelo estádio lotado, em terras distantes e por um gol aos 4 minutos do primeiro tempo: esta era a segunda final brasileira, sendo que na primeira, no Maracanã, em 1950, os brasileiros foram derrotados pelo Uruguai precisando apenas de um empate; fora traumático, uma ferida na autoestima da nação-pátria-de-chuteiras que, naquele momento, parecia que ao invés de cicatrizar, se abriria ainda mais, de forma dolorosa e lancinante. Didi exaltou as qualidades da seleção brasileira e lembrou que o Botafogo (RJ) vencera pouco tempo antes o time sueco que era a base da seleção azul-amarela. O segundo tempo da partida terminou com o memorável placar de 5×2 para o Brasil.
Didi chamou a si a responsabilidade do jogo, ao perceber que o momento pedia a intervenção de uma figura experiente – desse modo, ao invés de se revoltar, vociferar, se vitimizar aos prantos, distribuir recriminações e culpar os mais novos ou a arbitragem, independentemente de quem estivesse certo – preferiu assumir o protagonismo perante o time e conduzi-lo à vitória. Certamente, Didi participou de centenas de outros pleitos onde o clima mais aguerrido pedia o protagonismo de um jogador que combinasse força com tranquilidade; já em outras circunstâncias, quando se necessita da vitória a todo custo, faltando 5 minutos para o fim, o homem-gol do time precisa mostrar a que veio; o técnico é o diferencial nas partidas cheias de guerras de nervos, que precisam de uma condução “racional” fora das quatro linhas; a torcida, a alma do time, também exerce um papel marcante, transbordando emoção, religiosidade e evocando o compromisso com a vitória, especialmente nos momentos decisivos.
No tratamento da dependência química, o paciente é a estrela do time – há um protagonismo natural e implícito que só ele pode exercer: aceitar monitoramentos, aderir às atividades propostas, confiar na equipe, se afastar das situações de risco e não guardar segredos de natureza ético-pessoal são alguns desses desafios (vide o verbete Medo de tomar o vermelho). No entanto, aquela visita-surpresa dos pais à república do filho, após um telefonema em que sentiram “uma irritação diferente” em sua voz, aquele telefonema do médico para saber como vão indo as coisas durante uma semana difícil, o olhar atento e preventivo do acompanhante terapêutico, uma troca de impressões entre médico e psicoterapeuta, após uma sessão intrigante, são atitudes muitas vezes inusitadas, porém diferenciais, pois fortalecem vínculos, reforçam propósitos e comunicam cuidado e afeto. Vitória na certa.
Clima do jogo: atmosfera, ambiente; disposição de ânimo. Conforme descrito no verbete Equipe entrosada, o “clima organizacional”, ou seja, a resultante entre as características do paciente e sua família e das qualidades da equipe de tratamento (vide o referido verbete), é uma espécie de “propiciação” do sucesso do tratamento.
No futebol, o “clima do jogo” também é uma resultante de vários fatores: um jogo da Copa Libertadores tende a ser mais “catimbado”, por vezes até duro e violento – ainda mais se nos dias que o antecedem há algum tipo de guerra-de-nervos midiática, declarações de técnicos nervosinhos e a presença de torcidas-organizadas beligerantes. Já partidas beneficentes ou de despedida de craques, além de alegres, festivas e emocionantes, desfilam gentilezas e jogadas elegantes.
O clima do tratamento deve ser continuamente observado e, na presença de alterações negativas, deve ser problematizado e abordado objetivamente, de preferência com a participação de todos os envolvidos. Clima ruim dentro de campo acaba se espalhando para fora dele.
Colocar o coração no bico da chuteira: jogar com determinação, garra, vontade e emoção. A recuperação não é um processo passível de ser obtido de modo estritamente racional e “burocrático”. Apesar da importância inquestionável da estratégia de tratamento (vide o verbete Estratégia de jogo), a partir do contrato terapêutico (vide o verbete Contratação), a consecução desta depende igualmente de dedicação, entrega e união perene de todos os membros do time, tanto nos bons, quanto nos maus momentos, sempre em prol do sucesso do tratamento.
Trata-se do domínio das “emoções positivas”. De acordo com George Vaillant, as “emoções positivas – compaixão, perdão, amor, esperança, alegria, fé/confiança, reverência e gratidão – resultam da nossa capacidade inata de mamíferos de praticar o amor parental desinteressado”. São elas as detentoras da capacidade de “libertar o eu de si”, ou seja, de possibilitar ao indivíduo uma vivência maior do que aquela relacionada a sua própria existência – um amálgama que nos une aos outros seres humanos com um sentido maior de vida. Ainda segundo Vaillant, “as emoções positivas têm sido demonstradas experimentalmente como capazes de ajudar os seres humanos a se comportarem melhor e de forma mais criativa na coletividade e aprenderem com maior rapidez”.
Desse modo, emoções positivas, ao invés de dogmas ou misticismo, são, na realidade, uma atividade cerebral inata de todos os seres humanos. | Não poderiam, assim, ser consideradas cidadãs de segunda classe dentro do processo de recuperação.
Comer grama: dar a vida por algo. Não basta querer estar bem, é preciso fazer sua parte (vide o verbete Fazer o dever de casa), dedicar-se ao tratamento, confiar na equipe de saúde; não basta criticar o paciente, apenas por conhecê-lo desde a mais tenra idade; é preciso assumir os cuidados para realizar as ações que a doença dele o impede de fazer nesse momento; não basta medicar ou proferir orientações lidas em outras línguas, é preciso se envolver visceralmente na construção do monitoramento, na instituição de atividades substitutivas, na criação de ambientes livres de consumo e no manejo do estresse desse paciente. Todos juntos, trabalhando harmonicamente em prol da autonomia do paciente, entendendo que este deve protagonizar as ações ao máximo e sempre que possível.
Contratação: acordo entre duas ou mais pessoas, que se comprometem com um combinado, sob determinadas condições. O combinado não é caro. Isso é muito nítido no tratamento da dependência química. O que é previamente estabelecido organiza o paciente, deixa-o mais forte para dizer “não” àquilo que é preciso negar, ainda que incialmente ele se sinta pressionado ou coagido.
Às vezes a proposta de “contratar” incomoda a família, que reclama que essa tentativa já fora feita antes, em vão. Acontece que, na maior parte das vezes, o combinados entre as partes eram simplesmente feitos e quebrados, sem que o paciente sofresse as consequências dessa quebra, estabelecidas pelo mesmo contrato – por exemplo: atrasos na faculdade ou o não-comparecimento às sessões implicando na marcação de uma reunião geral com os pais para a redefinição da estratégia de tratamento; a recaída sendo passível de internação, e assim por diante.
Não é incomum a família “rasgar” o acordo e formular um novo, sob a promessa do paciente de que esta foi “a última vez” e essa dinâmica se torna crônica. Por isso, salvo quando a situação já é inadministrável – e por isso requer uma intervenção imediata, uma internação –, sempre se deve partir da elaboração de um contrato entre o paciente, sua família e a equipe que cuidará dele.
contratos podem – e devem – ser alterados periodicamente, pois como já foi dito, o tratamento da dependência é dinâmico e suas demandas se modificam ao longo do tempo (vide o verbete Ajustar os ponteiros). No entanto, a mudança deve acontecer apenas dentro do consultório, a partir de uma reunião, com a presença de todos os envolvidos – nada de alterações por telefone ou entre o paciente e seus pais. Do contrário, haverá margem para que a doença atue no sentido de desorganizar a estrutura terapêutica montada.
Correr atrás do prejuízo: Sanar os danos decorrentes de uma jogada ou de uma estratégia malsucedida. Toda estratégia – seja de curto ou longo prazo – está sujeita a intercorrências: desde um pênalti perdido num momento delicado do jogo, passando por uma substituição ruim, até uma irregularidade durante uma contratação, que passou despercebida, mas que, ao ser constatada pelo tribunal desportivo, culminou na perda de pontos para o time. Além disso, muitas vezes, um time pode apresentar várias deficiências a priori, as quais necessitam ser sanadas ao longo do campeonato.
No primeiro caso, os erros de estratégia e condução devem ser encarados sempre considerando o espírito de união que rege aquele trabalho, evitando-se julgamentos e rompantes de raiva, com demonstrações de indignação e acusações entre as partes, ou, caso haja a necessidade de “brigas” – a velha “conversa de vestiário”, mais dura – que o seja para resolver, para deixar o grupo mais fortalecido e coeso, no final. O papel moderador do profissional da saúde que estiver na condução do caso é fundamental nessa hora.
No segundo caso, dos prejuízos decorrentes da exposição ao consumo que o paciente já traz consigo – atraso escolar, um surto psicótico na adolescência parcialmente remitido, desemprego, perda de credibilidade junto aos seus grupos de convívio, lesões neuronais, hepatite alcoólica ou neuropatia periférica (vide o artigo “Só um chopinho de vez em quando, pode?”) – os mesmos devem ser dimensionados pela equipe técnica e considerados no momento da elaboração do plano terapêutico.
Muitas vezes, a família não identifica tais déficits ou simplesmente não nos considera parte do problema, mas sim, uma mera “desculpa” do dependente para não cumprir com sua parte do contrato. Não existe um critério claro e objetivo, capaz de resolver esse impasse, mas a experiência vai mostrando que um bom termo, que considere as limitações do paciente ao mesmo tempo que não o autorize a permanecer inerte por conta delas – ao contrário, que o desafie a superá-las – deve ser encontrado.
Nada pode impedir o time de entrar em campo e dar o seu melhor, até o último segundo, independentemente do resultado no placar: o tratamento da dependência química muitas vezes é um processo longo, que se resolverá não apenas em um jogo, mas após vários campeonatos, os quais transformarão, o “menino”, o “moleque” em um jogador experiente e preparado para os desafios da vida esportiva.
Correr para o abraço: comemorar um feito relevante. A recuperação também é feita de momentos festivos. Todo o ser humano que se preze tem o direito de “ver a banda passar, cantando coisas de amor”, especialmente quando um feito relevante precedeu a chegada da mesma. É importante que nessa hora haja algum freio para não se correr o risco de “liberar geral”, de “virar balada”. No entanto, é igualmente fundamental que a família consiga “abraçar” essa vitória do paciente. Não é incomum uma conquista virar motivo de ressentimento entre alguns membros da família do paciente – “como assim, já está alegre? Mal se desculpou por todo o mal que causou à mãe e aos irmãos e já fica se regozijando por ter sido escolhido o melhor voluntário da casa de idosos do bairro?” Nesse sentido, a família se coloca na posição de credora pela ajuda prestada no passado, e o paciente é visto como devedor – tendo que liquidar as faturas abrindo mão de sua felicidade no presente, que conquistou ao se tornar livre do uso de substâncias psicoativas – algo, no mínimo, paradoxal e contraproducente.
Pequeno dicionário metafórico-futebolístico aplicado à dependência química D
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).
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