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Marisa Orth: “Eu tinha um desprezo pela comédia”

Marisa Orth

Marisa Orth volta para os palcos com seu primeiro monólogo “Bárbara”, inspirado no livro autobiográfico da jornalista Barbara Gancia – Foto: Marcos Mesquita

Ao completar quatro décadas de carreira, Marisa Orth ainda quer passar por muitos desafios que a profissão de atriz tem a oferecer. “Me sinto no meio. Eu dizia que estava começando, mas não tenho mais saco para fazer um monte de coisas que eu já fiz, então é mentira que eu estou começando, mas no meio eu me sinto. Acho que ainda falta muita coisa. Impressionante como eu continuo gostando”, comenta.

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Ainda que goste, ela nega que seja o caso de celebrar 40 anos de estrada. “Nunca comemorei nem dez, nem 20, nem 30 nem 40. Eu não ligo muito para isso porque os Beatles só tiveram 6 anos de carreira. Amy Winehouse teve cinco anos. Olha o tamanho da obra. E tem gente que tem 90 anos de carreira e você nunca ouviu falar”.

Apesar da explicação carregar um forte senso de humildade, ela própria tem uma lista extensa de realizações na carreira, deixando marcos no imaginário popular e na arte brasileira. Com uma emblemática trajetória nos palcos, ela ganhou o País quando entrou para “Sai de Baixo”, em 1996. Entre 2007 e 2009, foi a inesquecível Rita de “Toma Lá Dá Cá”, que lhe rendeu o Prêmio Qualidade Brasil de Melhor Atriz de Comédia.

Marisa Orth – Foto: Marcos Mesquita

Responsável por arrancar lágrimas de tanto rir em boa parte dos brasileiros, ela admite: “Eu tinha um desprezo pela comédia”. Com formação em artes dramáticas, ela “achava que o teatro era só tragédia”. Foi a partir da influência de artistas e comediantes cariocas como Miguel Falabella que sua visão mudou. Ainda bem.

Atualmente, ela mistura humor e drama no monólogo “Bárbara”, seu primeiro. A peça tem texto de Michelle Ferreira, uma adaptação do livro autobiográfico da jornalista Barbara Gancia, intitulado “A Saideira: uma dose de esperança depois de anos lutando contra a dependência”. A obra é um relato sincero de sua jornada convivendo com o alcoolismo, e tem muito a ensinar sobre o cerne da espécie humana, com seus altos e baixos.

“Essa coisa da compulsão, a vontade de ser feliz a qualquer custo, a inquietude. Esse desespero. Você pode nunca ter bebido, mas você vai se identificar com esse desassossego. Une as pessoas, é bonito de ver”, resume Marisa sobre a versão para os palcos, que ganha nova temporada depois de um ano, em cartaz de 4 de novembro a 11 de dezembro, no Teatro Renaissance, em São Paulo.

Leia abaixo a entrevista completa ao RG:

RG – Como foi trazer para o palco uma história real de outra pessoa?

É um livro muito legal, muito fluido, gostoso de ler. Tá muito bem escrito. Aí tem a dramaturga Michelle Ferreira que fez esse trabalho de tirar do livro e transformar em peça, e esse trabalho foi feito junto com a gente ensaiando.

É um monólogo, mas são muitas texturas, eu falo direto com a plateia direto, conto um causo da minha vida, conto uma coisa que é uma ficção, volto para uma história da Bárbara, volto para o público. Nesse sentido, a estrutura é moderna, perfeitamente compreensível, nada cult. O medo era ficar chato, uma pessoa falando sozinha. Acho que o maior desafio do monólogo é como não ficar chato. E acho que a gente conseguiu.

RG – Você acha que aí entra a sua veia inegável da comédia?

Super. A Bárbara é muito engraçada, no livro dela tem esse tom, eu sou engraçada. Tem vários momentos engraçados. E isso faz parte do truque, porque o álcool, a substância tóxica qualquer que seja, sempre começa com graça, sempre começa com alegria, com festa, diversão. E isso é fundamental que tenha. Se fosse uma peça para falar sobre os malefícios do álcool ninguém iria, não é assim que isso entra na nossa vida. Isso entra na zoação, brincadeira, no hilário. Só que vai ficando mais triste. Porque é triste também. Agora, é uma peça com final feliz. Porque ela superou a dependência. Não existe cura. Mas ela já está há 14 anos sóbria. E isso é uma baita vitória.

RG – E essa não é a primeira montagem da peça, certo?

Durante a pandemia, a gente estreou na FAAP, ainda tinha restrição de público, todo mundo de máscara. Foi uma das primeiras peças que a gente conseguiu fazer, que se fez no  Brasil. Fizemos dois meses e agora voltamos.

RG – Como é para você voltar agora? Muda alguma coisa?

Essa peça está muito bem falada. Modéstia à parte, sabe aquela coisa que você faz super despretensiosamente, desespero de pandemia, e são as melhores coisas que você faz?

Marisa Orth – Foto: Marcos Mesquita

RG – O que te atraiu a contar essa história?

Nunca tinha feito um monólogo? É uma coisa que eu desejo há muito tempo, acho que uma atriz tem que ter na carreira, é um desafio. Quem disser que monólogo é fácil é porque nunca fez um. É difícil. Ainda bem que eu sou experiente, porque consigo fazer.

Depois esse desespero da pandemia. Depois porque é um tema que a gente fala muito pouco no Brasil. Eu sou formada em psicologia também e tinha uma época em que a gente visitava obrigatoriamente as casas públicas de saúde mental no Brasil. E eu soube que 70% das doenças mentais nas casas de saúde públicas do Brasil são causadas por álcool, dependência alcóolica. Você pode ter milhões de sequelas, você lesa o seu cérebro. E a gente bebe muito no Brasil. A bebida é muito acessível. É uma calamidade pública, é tipo um genocídio. Se o Brasil está saindo de uma “infância”, que é o que eu sinto em todo o nosso processo político, vamos sair dessa infância também.

O livro dela merece, foi muito generoso ela ter feito esse livro, mostrar as vergonhas, porque ninguém quer falar. Enquanto você está vivo você pode se tornar alcoólatra. E fala da dependência, que no caso é álcool, mas pode ser comida, relacionamentos tóxicos, dessa compulsão que a gente tem por se destruir.

RG – O que você acha que aprendeu com essa experiência?

Melhorei como atriz inevitavelmente porque é um baita exercício. Cada vez que eu faço a peça aprendo uma coisa nova, não é da boca para fora. Você vê a energia subir, cair, descer. Está tudo na sua mão. “Aqui ficou uma pausa muito grande, ali ficou mais rápido, aqui ficou rápido demais, aqui não está claro, posso ficar um tempo nessa emoção, segura.” Você fica todo dia organizando. Toda sessão é diferente da outra. E aprendi uma série de coisas sobre alcoolismo. Por exemplo, não pode falar a palavra vício, que implica num julgamento moral, tem uma maldade. É dependência. Não é engraçado falar, “ai fiquei louca, vendo bicho na parede”. Porque existem graus de alcoolismo que, sim, a pessoa vê bicho na parede. Aí eu conto meu primeiro porre, tinha uns 13, 14 anos, fui descobrir que isso tem nome, binge drinking, é uma prática muito comum, especialmente entre as adolescentes mulheres.

RG – Como tem sido a reação do público?

Emocionante. Tem gente que ri mais, tem gente que chora mais, dependendo da vida de cada um. E tem gente que vê a coisa da compulsão, a vontade de ser feliz a qualquer custo, a inquietude. Esse desespero. Você pode nunca ter bebido, mas você vai se identificar com esse desassossego. Então une as pessoas, é bonito de ver. E é uma peça rápida, tem por volta de uma hora, vai muito rápido.

Marisa Orth – Foto: Marcos Mesquita

RG – Você está comemorando quatro décadas de carreira, né?

Não foi uma comemoração. Nunca comemorei nem dez, nem 20, nem 30, nem 40. Eu não ligo muito para isso porque os Beatles só tiveram 6 anos de carreira. A Amy Winehouse teve 5 anos. Olha o tamanho da obra. E tem gente que tem 90 anos de carreira e você nunca ouviu falar. Não tenho nada contra, não estou renegando, mas não é exatamente uma peça que foi feita em homenagem a isso.

RG –  Mas qual a retrospectiva que você faz pensando em tudo que você já fez e olhando daqui para frente também?

Me sinto no meio. Eu dizia que estava começando, mas não tenho mais saco para fazer um monte de coisas que eu já fiz, então é mentira que eu estou começando, mas no meio eu me sinto. Acho que ainda falta muita coisa, quero fazer mais cinema, mais teatro. Um monte de papel, quero trabalhar velha, fazer esses papeis. Impressionante como eu continuo gostando da minha profissão, inacreditável, porque não tem sido fácil.

RG – Pois é, como você vê o momento atual da arte no Brasil?

Lascada. Nunca imaginei que fosse ver isso. Quando estudei na escola, Brecht tem peças extremamente políticas, de combate ao fascismo, regimes totalitários. Eu achava que era coisa de museu. Não achei que eu fosse ver isso de novo. Nunca imaginei que uma população pudesse atacar os próprios artistas, achei que era coisa de livro.

RG – Como você acha que isso vai se refletir no seu trabalho?

Vou ficar mais atenta, mais combativa. Os artistas ficaram todos mais combativos. Nós fomos muito atacados, muito ofendidos injustamente. Acusados de vagabundos. E aí você tem a vontade de repetir na hora “é mentira, eu trabalho”, mas não tem que dar satisfação. É muita injustiça. E ao mesmo tempo feliz porque a gente incomoda, também aprendi isso. Fiquei mais consciente do poder que a gente tem na mão. A gente tem força, senão não atacariam tanto. Não orquestrariam a população contra os artistas. Fiquei muito impressionada. Outro dia defendi a Anitta e estou apagando gente até agora.

RG – Eu li uma entrevista em que você dizia que o mais difícil era convencer a si mesma de que é atriz quando está começando. E fiquei pensando se você teve que se convencer de que é engraçada.

Não, eu tive que admitir que sou engraçada. Como eu sempre fui, eu não dava valor. Eu achava que teatro era só o drama, só a tragédia. Tinha aula de voz, aula de sotaque, eu fazia uma pecinha, e era hilário, juntava gente da outra sala para me ver. Eu achava meio chulo, tinha um desprezo pela comédia. Nesse ponto entrou Miguel Falabella, os comediantes cariocas, para dar um tapa nesse meu orgulho babaca, vontade de estar em um filme do Bergman. Porque a minha formação é cult paulista. Tive que me livrar disso e admitir que eu vou uma baita comediante, que o Brasil gosta de mim. Foi um admitir que sou popular. Hoje tenho muito orgulho disso.

RG – E daqui pra frente o que você tem vontade de fazer, quais seriam os novos desafios?

Queria fazer textos clássicos que nunca fiz, aquelas peçonas com um monte de gente em cena, papeis diferentes, um homem, uma vilã na televisão. Mais cinema. Queria que me usassem mais.

RG – Com certeza vão surgir mais oportunidades daqui para frente.

É muito importante isso num país, não é perfumaria, isso abre as cabeças. Os depoimentos que eu tenho das pessoas, coisa mais linda. Você não sabe o que é chegar no interior do Paraná ver uma mulher bem pobre dizer que estava com 4 tumores, que ia morrer e que não deprimiu porque ficava rindo da sua cara quando você aparecia na televisão. “Então eu estou aqui para te dizer que eu tenho um pedaço de você dentro de mim”, ela disse. Só de falar me dá vontade de chorar. E ela me disse isso cinco minutos antes de eu entrar no palco para fazer uma comédia (risos).

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