A maioria que consome drogas o faz esporadicamente e de modo transitório. Por outro lado, uma minoria significativa utiliza-as de forma intensa e por longos períodos de tempo. Esses últimos quase sempre necessitam de algum tipo de apoio formal do Estado: de intervenções breves a abordagens intensivas e especializadas, de caráter ambulatorial ou de internação, seja essa voluntária, involuntária ou compulsória. Nesse contexto de grande diversidade e complexidade, políticas públicas de qualidade devem ser capazes de atender tanto às necessidades desse grupo heterogêneo de usuários, quanto à sociedade de maneira geral, que sente direta ou indiretamente o impacto do uso de drogas (lícitas e ilícitas) de seus cidadãos.
Os níveis de abrangência dessas políticas podem ser comparadas a uma pirâmide: na base, estão as ações gerais de saúde pública: medidas de bem-estar social, de prevenção ao uso de drogas e o binômio proibição/legalização encontram-se posicionados nesse nível. Na porção intermediária, estão as ações destinadas ao usuário de alto-risco, de grande valia para ele e para o seu entorno social. É o caso tanto das políticas de redução de danos, como troca de seringas, quanto as abordagens de caráter interventivo, como os testes de drogas e a justiça terapêutica. Por fim, no topo da pirâmide, encontra-se o tratamento propriamente dito, destinado a essa minoria de usuários com problemas e em geral afinado com o conceito de recuperação.
Nos últimos tempos, movimentos favoráveis à descriminalização do porte e do comércio de drogas ilícitas têm proposto reformas estruturais na pirâmide de políticas de drogas, com o intuito de remover dali todas as fundações e blocos assentados outrora pelo modelo proibicionista, por considerá-lo arbitrário, oneroso e fomentador de máfias e de violência.
Não se trata de discutir aqui a consistência teórica, muito menos o ônus e o bônus de ambas; além disso, as recentes experiências de regulamentação da produção e do comércio de canábis no Uruguai, no Canadá e em alguns estados americanos não demorarão em transformar especulações em evidências científicas. No entanto, o calor das discussões acerca desse tema, quase sempre deixa de fora dois aspectos de natureza estrutural e conceitual essenciais para esse debate.
Os tijolos assentados pela ‘onda proibicionista’ dos séculos XIX e XX – mesmo considerando seus arroubos de ingenuidade, suas radicalizações e fracassos -, foram a primeira tentativa secularizada e macroestrutural de normatizar e lidar com o consumo massificado de substâncias psicoativas, as quais, por volta de 1850, haviam sido convertidas pelo modo produção capitalista em commodities e produtos manufaturados cada vez mais concentrados, baratos e facilmente acessíveis.
O proibicionismo – em diferentes graus de intensidade – foi a ferramenta escolhida pela maior parte das nações ocidentais para enfrentar esse “laissez-faire psicoativo”, cuja demanda era regulada apenas pela “lógica do mercado” e pela “demanda espontânea” dos usuários; essa última, no entanto, ao menos em algumas situações, era influenciada pela aritmética do “vício”, pela “álgebra da necessidade”, como bem definiu escritor beatnik William Burroughts (1914-1997): “o comerciante de droga não vende seu produto ao consumidor, vende o consumidor ao seu produto. Ele não aperfeiçoa nem simplifica sua mercadoria. Ele degrada e simplifica o cliente” – uma resultante amplamente desfavorável ao usuário.
Nesse sentido, imbuída acima de tudo pela legitimidade, os movimentos proibicionistas europeus e americanos caminharam ao lado de outros movimentos sociais que adquiriam relevância naquele momento, tais como o sufragismo feminino e outros movimentos de afirmação política e social das mulheres e os movimentos antitruste, na transição para o século XX.
Tais tentativas se materializariam, no final desde mesmo século, nas políticas públicas baseadas no controle da oferta e da demanda, tais como a taxação das bebidas alcoólicas e do tabaco, o controle da densidade dos pontos de venda de álcool, a restrição à venda de bebidas para menores de idade e a proibição da propaganda; medidas que definitivamente amenizaram o impacto negativo relacionado ao consumo dessas substâncias para a sociedade.
Além disso, boa parte das medidas regulatórias, culturalmente moldadas e amadurecidas a partir do embate com o proibicionismo radical, são evocadas na atualidade como uma espécie de “garantia” de que a regulamentação do consumo de drogas pode ser um processo seguro e socialmente benéfico – o seu ‘cinto de segurança’ contra colisões repentinas e indesejadas.
A atividade de tratamento não é uma forma de controle ou de punição, mas sim um plano estratégico, estruturado e voltado para a reinserção psicossocial dos usuários de substâncias psicoativas que desenvolveram um transtorno denominado “dependência química”, de origem multidimensional e quase sempre associado a outros transtornos e fatores de risco de natureza biopsicossocial.
Conforme se afirmou anteriormente, o “tratamento” ocupa o topo da pirâmide das políticas públicas e está focado mais no indivíduo-usuário-de-drogas do que na sociedade como um todo. Ele está interessado “no processo de adoecimento”, independentemente do status legal da substância em questão. A legitimidade de seus métodos e a eficácia de suas ações se aplicam aos fenômenos encontrados no topo da pirâmide.
Nesse sentido, a tentativa de apresentar o tratamento como a solução para acabar com as mazelas e as feridas abertas da injustiça social ou como a chave para eliminar a demanda por drogas no planeta quase sempre são contrapostas por reações de descrédito, desconfiança e desconforto por diferentes setores da sociedade. Da mesma maneira, achar que a adoção de medidas macroestruturais (legalização ou proibição) ou destinadas aos usuários de alto risco (das ações de baixo risco às abordagens interventivas) seriam capazes de reestabelecer a saúde daqueles gravemente acometidos pela dependência química que buscam tratamento é igualmente romântico e perigoso.
Mesmo levando em consideração as especificidades expostas até aqui, uma porção significativa da sociedade ainda considera os princípios estruturantes do tratamento da dependência química uma maneira de reprimir ou silenciar o usuário de substâncias, apartando-o de sua verdadeira identidade.
A combinação de rotinas, os protocolos medicamentosos, os contratos terapêuticos e a internação para desintoxicação são encarados por muitos como uma tentativa de subjugar ou mesmo de torturar o usuário de drogas, tido como um outsider que desejaria e poderia muito bem continuar usando drogas de vez em quando, não fosse a opressão impiedosa dos douto-pregadores-da-abstinência-como-meta.
Esse cenário confuso, polarizado e apaixonado faz com que muitos profissionais da saúde e pesquisadores saiam em busca de evidências em locais errados, utilizando ferramentas inapropriadas e discursos dissonantes – já imaginou levar rede para pescar em córrego que bate no calcanhar ou vara de bambu para pescar em alto-mar?
Nesse contexto, o usuário gravemente dependente é tomado pura e essencialmente como uma pessoa marginalizada, injustiçada socialmente e oprimida, que está sendo forçado a parar, sem perceber que na maior parte das vezes foi ele próprio quem buscou ajuda e tratamento específicos.
Assim, ao invés de reconhecer o sofrimento decorrente do processo patológico em curso, preferem “libertar” o usuário com argumentos do gênero “você não está tão mal como dizem”, ou ainda, mais genericamente, “as drogas também podem ser uma forma de lazer, basta utilizá-las com esse propósito”, “a maior parte das pessoas que usa drogas não se torna dependente” – esquecendo-se, no entanto, que seus interlocutores são justamente a “minoria que se tornou dependente”.
Outras pessoas argumentam que o tratamento não possui eficácia suficiente para ser considerado a ação de primeira escolha, sugerindo a utilização de estratégias de baixa exigência em seu lugar. Acontece que da mesma maneira que não se deve “prescrever tratamento” para questões de ordem social, não se pode relativizar o desejo de alguém se tratar, muito menos vedar a esse o acesso a modelos e técnicas reconhecidamente eficazes para reduzir ou interromper o consumo, partindo-se apenas do pressuposto de que ele funciona para poucos – afirmação altamente falaciosa, diga-se de passagem.
Muitos tratamentos têm um grau eficácia menor do que os destinados à dependência – no caso de alguns tipos de câncer ou de doenças autoimunes; deveríamos então concentrar esforços em reduzir seus efeitos deletérios sobre a saúde, em detrimento do desejo de recuperação manifesto?
Vale mais uma vez ressaltar, que o campo da dependência é capaz de acomodar de forma complementar discursos aparentemente antagônicos e irreconciliáveis. Para isso, basta compreender que sua “área geográfica” é dotada de inúmeros contextos, decorrentes do seu relevo biológico, da trama social que o recobre e da maneira como ambos interagem culturalmente com seus “habitantes” – sejam eles “abstêmios”, usuários de baixo risco, dependentes com diferentes níveis de gravidade ou “neo-abstinentes” em recuperação.
Nesses contextos, impor tratamento como medida geral e indiscriminada ou encará-lo como adversário – um mero instrumento de repressão e de condicionamento social – são dois lados de uma mesma moeda habitualmente aceita e valorizada apenas onde vigoram a ignorância e a desinformação.
Quando aplicado considerando o seu contexto e indicações formais, o tratamento da dependência química, posicionado no topo da pirâmide das políticas de drogas fica bem distante da ideia de “lenitivo social” ou do conceito de guerra às drogas; assim como a meta da abstinência não guarda relação alguma com a utopia de um mundo livre de drogas.
Do contrário, ambos são uma carta de intenções e princípios que norteiam um processo humano de mudança cheio de entreveros, fracassos e reformulações de planos, cujo intuito é de transformar positivamente o relacionamento do usuário consigo e com mundo onde vive, dentro do qual deseja se reinserir na condição de cidadão efetivo. Creio que essa, sim, seja a utopia a ser perseguida.
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