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Tratamento, questões sociais e guerra às drogas: cada coisa no seu devido lugar

Foto: Divulgação

A maioria que consome drogas o faz esporadicamente e de modo transitório. Por outro lado, uma minoria significativa utiliza-as de forma intensa e por longos períodos de tempo. Esses últimos quase sempre necessitam de algum tipo de apoio formal do Estado: de intervenções breves a abordagens intensivas e especializadas, de caráter ambulatorial ou de internação, seja essa voluntária, involuntária ou compulsória. Nesse contexto de grande diversidade e complexidade, políticas públicas de qualidade devem ser capazes de atender tanto às necessidades desse grupo heterogêneo de usuários, quanto à sociedade de maneira geral, que sente direta ou indiretamente o impacto do uso de drogas (lícitas e ilícitas) de seus cidadãos.

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Os níveis de abrangência dessas políticas podem ser comparadas a uma pirâmide: na base, estão as ações gerais de saúde pública: medidas de bem-estar social, de prevenção ao uso de drogas e o binômio proibição/legalização encontram-se posicionados nesse nível. Na porção intermediária, estão as ações destinadas ao usuário de alto-risco, de grande valia para ele e para o seu entorno social. É o caso tanto das políticas de redução de danos, como troca de seringas, quanto as abordagens de caráter interventivo, como os testes de drogas e a justiça terapêutica. Por fim, no topo da pirâmide, encontra-se o tratamento propriamente dito, destinado a essa minoria de usuários com problemas e em geral afinado com o conceito de recuperação.

Foto: Divulgação

Os modelos probicionistas, a legalização e as políticas macroestruturais

Nos últimos tempos, movimentos favoráveis à descriminalização do porte e do comércio de drogas ilícitas têm proposto reformas estruturais na pirâmide de políticas de drogas, com o intuito de remover dali todas as fundações e blocos assentados outrora pelo modelo proibicionista, por considerá-lo arbitrário, oneroso e fomentador de máfias e de violência.

Não se trata de discutir aqui a consistência teórica, muito menos o ônus e o bônus de ambas; além disso, as recentes experiências de regulamentação da produção e do comércio de canábis no Uruguai, no Canadá e em alguns estados americanos não demorarão em transformar especulações em evidências científicas.  No entanto, o calor das discussões acerca desse tema, quase sempre deixa de fora dois aspectos de natureza estrutural e conceitual essenciais para esse debate.

The opium smoker’s dream (1918) – Foto: Divulgação

#1 | o contexto histórico do proibicionismo

Os tijolos assentados pela ‘onda proibicionista’  dos séculos XIX e XX – mesmo considerando seus arroubos de ingenuidade, suas radicalizações e fracassos -, foram a primeira tentativa  secularizada e macroestrutural de normatizar e lidar com o consumo massificado de substâncias psicoativas, as quais, por volta de 1850, haviam sido convertidas pelo modo produção capitalista em commodities e produtos manufaturados cada vez mais concentrados, baratos e facilmente acessíveis.

O proibicionismo – em diferentes graus de intensidade – foi a ferramenta escolhida pela maior parte das nações ocidentais para enfrentar esse “laissez-faire psicoativo”, cuja demanda era regulada apenas pela “lógica do mercado” e pela “demanda espontânea” dos usuários;  essa última, no entanto, ao menos em algumas situações,   era influenciada pela aritmética do “vício”, pela “álgebra da necessidade”, como bem definiu escritor beatnik William Burroughts (1914-1997): “o comerciante de droga não vende seu produto ao consumidor, vende o consumidor ao seu produto.  Ele não aperfeiçoa nem simplifica sua mercadoria.  Ele degrada e simplifica o cliente” – uma resultante amplamente desfavorável ao usuário.

Nesse sentido, imbuída acima de tudo pela legitimidade, os movimentos proibicionistas europeus e americanos caminharam ao lado de outros movimentos sociais que adquiriam relevância naquele momento, tais como o sufragismo feminino e outros movimentos de afirmação política e social das mulheres e os movimentos antitruste, na transição para o século XX.

Tais tentativas se materializariam, no final desde mesmo século, nas políticas públicas baseadas no controle da oferta e da demanda, tais como a taxação das bebidas alcoólicas e do tabaco, o controle da densidade dos pontos de venda de álcool, a restrição à venda de bebidas para menores de idade e a proibição da propaganda; medidas que definitivamente amenizaram o impacto negativo relacionado ao consumo dessas substâncias para a sociedade.

Além disso, boa parte das medidas regulatórias, culturalmente moldadas e amadurecidas a partir do embate com o proibicionismo radical, são evocadas na atualidade como uma espécie de “garantia” de que a regulamentação do consumo de drogas pode ser um processo seguro e socialmente benéfico – o seu ‘cinto de segurança’ contra colisões repentinas e indesejadas.

O beco do gim (1748) – Foto: Divulgação

#2 | O tratamento não é uma forma de repressão social

A atividade de tratamento não é uma forma de controle ou de punição, mas sim um plano estratégico, estruturado e voltado para a reinserção psicossocial dos usuários de substâncias psicoativas que desenvolveram um transtorno denominado “dependência química”, de origem multidimensional e quase sempre associado a outros transtornos e fatores de risco de natureza biopsicossocial.

Conforme se afirmou anteriormente, o “tratamento” ocupa o topo da pirâmide das políticas públicas e está focado mais no indivíduo-usuário-de-drogas do que na sociedade como um todo.  Ele está interessado “no processo de adoecimento”, independentemente do status legal da substância em questão.  A legitimidade de seus métodos e  a eficácia de suas ações se aplicam aos fenômenos encontrados no topo da pirâmide.

Nesse sentido, a tentativa de apresentar o tratamento como  a solução para acabar com as mazelas e as feridas abertas da injustiça social ou como a chave para eliminar a demanda por drogas no planeta quase sempre são contrapostas por reações de descrédito, desconfiança e desconforto por diferentes setores da sociedade.  Da mesma maneira, achar que a adoção de medidas macroestruturais (legalização ou proibição) ou destinadas aos usuários de alto risco (das ações de baixo risco às abordagens interventivas) seriam capazes de reestabelecer a saúde daqueles gravemente acometidos pela dependência química que buscam tratamento é igualmente romântico e perigoso.

Maconheiros franceses de salpetriere (1890) – Foto: Divulgação

Maniqueísmos

Mesmo levando em consideração as especificidades expostas até aqui, uma porção significativa da sociedade ainda considera os princípios estruturantes do tratamento da dependência química uma maneira de reprimir ou silenciar o usuário de substâncias, apartando-o de sua verdadeira identidade.

A combinação de rotinas, os  protocolos medicamentosos, os contratos terapêuticos e a internação para desintoxicação são encarados por muitos como uma tentativa de subjugar ou mesmo de torturar o usuário de drogas, tido como um outsider que desejaria e poderia muito bem continuar usando drogas de vez em quando, não fosse a opressão impiedosa dos douto-pregadores-da-abstinência-como-meta.

Esse cenário confuso, polarizado e apaixonado faz com que muitos profissionais da saúde e pesquisadores saiam em busca de evidências em locais errados, utilizando ferramentas inapropriadas e discursos dissonantes – já imaginou levar rede para pescar em córrego que bate no calcanhar ou vara de bambu para pescar em alto-mar?

Nesse contexto, o usuário gravemente dependente é tomado pura e essencialmente como uma pessoa marginalizada, injustiçada socialmente e oprimida, que está sendo forçado a parar, sem perceber que na maior parte das vezes foi ele próprio quem buscou ajuda e tratamento específicos.

Assim, ao invés de reconhecer o sofrimento decorrente do processo patológico em curso, preferem “libertar” o usuário com argumentos do gênero “você não está tão mal como dizem”, ou ainda, mais genericamente, “as drogas também podem ser uma forma de lazer, basta utilizá-las com esse propósito”, “a maior parte das pessoas que usa drogas não se torna dependente” – esquecendo-se, no entanto, que seus interlocutores são justamente a “minoria que se tornou dependente”.

Outras pessoas argumentam que o tratamento não possui eficácia suficiente para ser considerado a ação de primeira escolha, sugerindo a utilização de estratégias de baixa exigência em seu lugar.  Acontece que da mesma maneira que não se deve “prescrever tratamento” para questões de ordem social, não se pode relativizar o desejo de alguém se tratar, muito menos vedar a esse o acesso a modelos e técnicas reconhecidamente eficazes para reduzir ou interromper o consumo, partindo-se apenas do pressuposto de que ele funciona para poucos – afirmação altamente falaciosa, diga-se de passagem.

Muitos tratamentos têm um grau eficácia menor do que os destinados à dependência – no caso de alguns tipos de câncer ou de doenças autoimunes; deveríamos então concentrar esforços em reduzir seus efeitos deletérios sobre a saúde, em detrimento do desejo de recuperação manifesto?

Campanha antialcoolica francesa (1904) – Foto: Divulgação

Ecletismo

Vale mais uma vez ressaltar, que o campo da dependência é capaz de acomodar de forma complementar discursos aparentemente antagônicos e irreconciliáveis.  Para isso, basta compreender que sua “área geográfica” é dotada de inúmeros contextos, decorrentes do seu relevo biológico, da trama social que o recobre e da maneira como ambos interagem culturalmente com seus “habitantes” – sejam eles “abstêmios”, usuários de baixo risco, dependentes com diferentes níveis de gravidade ou “neo-abstinentes” em recuperação.

Nesses contextos, impor tratamento como medida geral e indiscriminada ou encará-lo como adversário – um mero instrumento de repressão e de condicionamento social – são dois lados de uma mesma moeda habitualmente aceita e valorizada apenas onde vigoram a ignorância e a desinformação.

Quando aplicado considerando o seu contexto e indicações formais, o tratamento da dependência química, posicionado no topo da pirâmide das políticas de drogas fica bem distante da ideia de “lenitivo social” ou do conceito de guerra às drogas; assim como a meta da abstinência não guarda relação alguma com a utopia de um mundo livre de drogas.

Do contrário, ambos são uma carta de intenções e princípios que norteiam um processo humano de mudança cheio de entreveros, fracassos e reformulações de planos, cujo intuito é de transformar positivamente o relacionamento do usuário consigo e com mundo onde vive, dentro do qual deseja se reinserir na condição de cidadão efetivo.  Creio que essa, sim, seja a utopia a ser perseguida.

Morador de rua “heroinômano” (EUA, 1910) – Foto: Divulgação

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