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Gatilhos, lembretes do querer

A ideia de que o desejo de se consumir uma substância psicoativa acontece a partir de um “gatilho” pode soar um tanto artificial numa primeira aproximação, parecer apenas parte da história, quando não, uma mera desculpa.  Acontece que eles existem e funcionam como o aviso de “reme! reme! reme!”, em direção a próxima dose e apesar dos prejuízos que esse comportamento já pode estar causando à vida da pessoa.

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O sistema de recompensa – ou sistema mesolímbico-mesocortical – secreta dopamina, sempre quando é estimulado por situações relacionadas à manutenção da vida ou da espécie, tais como alimentação, sexo e acolhimento (Vide o artigo “A Dependência química é um GPS”).  A função do sistema de mesolímbico-mesocortical é sinalizar a recompensa, ao invés de produzi-la – a recompensa, per se, reside na conclusão no que se deseja alcançar propriamente.

Desse modo, uma parte das funções do sistema de recompensa é detectar essas situações e “marcá-las”, “salientá-las” para que possam ser prontamente identificadas pela pessoa.  Nesse sentido, podemos considerar que navegamos por um “mar de gatilhos” de uma maneira tão natural que nem sentimos sua presença.  Sua presença começa a ficar mais clara – daí o fato de muitos acharem essa história de gatilho “artificial”, quando tentamos conscientemente nos antecipar e nos esquivar dos sinais transmitidos por eles.

Uma vez criados, gatilhos passam a tem vida própria.  São como “sinalizadores”, “recadinhos”, “postites” que vamos espalhando pelo mundo e depois esquecemos até trombarmos com eles novamente por aí.  Imaginem vocês se tivéssemos que desenvolver um “software mental” para saber em tempo real onde todos os nossos gatilhos estão e quais são eles.  Imaginem se tivéssemos que identifica-los conscientemente todas as vezes!  O trabalho de Atlas seria mais leve.

Imaginem uma reunião de dez boiadeiros, cada um com suas dez mil cabeças de gado, reunidas no mesmo curral.  Como vão separar suas queridas vaquinhas, boizinhos e bezerrinhos depois? Suponhamos que o método fosse o arquivo fotográfico.  Afora aqueles que possuem marcas características – um chifre quebrado, uma cicatriz curiosa – seriam necessárias semanas, meses talvez para que o pareamento perfeito entre imagem e animal fosse obtido e as reses, separadas adequadamente.  Muito mais prático do que isso é “salientar” o gado com um brinco – com cores distintas, considerando cada boiadeiro.  Eis o espírito da formação de gatilhos pelo sistema de recompensa.

E o que acontece quando nos deparamos com gatilhos? Ao contrário do que a maioria das pessoas imagina, gatilhos não são conceitos subjetivos de “vontade”, muito menos de “anseios hedonistas” – “sei lá, deu vontade de pegar uma harpa, fumar um baseado e compor uma poesia”.  Gatilhos não têm a ver com gostar, mas sim, com “querer”.  Você pode parar numa vitrine olhar um camisa, um terno ou vestido por horas, reparar nos cortes, nas linhas, costuras, no tom das cores e vincos e, ao final, enquanto se afasta da vitrine, concluir que gostou muito daquela peça.  Mas se o impulso, inebriado pelo cheirinho de “loja-de-gente-chique” (gatilho) for “eu preciso desse terno” – ainda que para atender a esse desejo imediatista, se vá comprometer as economias da viagem de final de ano – estamos falando de “querer”, antes de “gostar”.

Logo, agora chegando na dependência química, gatilhos são dispositivos de memória poderosos, de natureza automática, resultado de aprendizados associativos, que ao serem detectados outra vez pelo indivíduo desencadeiam fissura e comportamento de busca, em graus variados de intensidade, dependendo sempre do contexto interno e externo da pessoa.

Mas por que alguns indivíduos se tornam refém dos seus próprios gatilhos? Certamente, ninguém é um robô biológico, em busca da próxima recompensa.  Numa situação ideal, “gatilhos” são lembretes que se prestam a auxiliar a melhor tomada de decisão.  Nesse sentido, o sistema de recompensa também possui uma instância cortical, consciente, capaz de avaliar e tomar decisões complexas.  No entanto, de alguma forma, ao longo da vida, por diferentes razões, a função cortical decisória se torna menos assertiva na definição e na aquisição das coisas que realmente fazem sentido para a pessoa, na vigência do estresse, ainda mais quando esse se apresenta de forma perene, nas diferentes formas de negligência e maus-tratos, nos abusos, no bullying ou no cotidiano competitivo, opressor e excludente das sociedades contemporâneas – e “quando o futuro é perigoso ou incerto, a melhor estratégia é diminuir seu valor”, o imediato é mais atrativo.  São explicações gerais, “esqueletos sem o recheio da história de cada um”, que nos ajudam a pensar estratégias individualizadas a posteriori.

Gatilhos – apesar de essenciais para a manutenção da vida – quando se colocam a serviço da dependência, no exato momento em que se decide abandonar o uso – se convertem em verdadeiros campos minados, cuja explosão de fissura e comportamentos de busca quase sempre é detectada “tarde demais”, depois da “pisada em falso”.  Eis aí a enorme importância, num primeiro momento, de se evitar estímulos, permanecer entre pessoas e ambientes livres de consumo e procurar se deparar com as situações estressantes de modo planejado, amparado por pessoas capazes de oferecer o devido apoio – do vizinho-amigo ao profissional-da-saúde-mega-especialista, passando pelo colegas de recuperação, pela espiritualidade, pelos orientadores escolares, sempre de modo organizado e adequado aos referenciais socioculturais de cada um.

Por fim, é importante considerar que o dependente químico não possui, nos primeiros tempos da recuperação, uma instância cortical capaz de tomar decisões assertivas com relação ao uso de drogas – por mais que queira dizer “sim” para a abstinência, permanece um refém das oportunidades de uso, dos “gatilhos”.  Por isso, precisa se blindar, inicialmente, com estratégias de evitação e de monitoramento – entre as quais a elaboração de contratos terapêuticos, o uso de medicamentos aversivos, testagem de drogas na urina, a contratação de acompanhantes terapêuticos, não com o objetivo de “vigiar e punir”, mas, sim, com o intuito de oferecer ao dependente mapeado e ainda inábil a dizer “não” assertivamente – mesmo sendo esse o seu maior desejo –, argumentos concretos capazes de fortalecer o seu propósito de detectar gatilhos, sem querer apertá-los depois.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).  

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