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Contra impulsos não há argumentos

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Os comportamentos relacionados à dependência se tornam arraigados e difíceis de deter porque sua instalação e consolidação nos circuitos cerebrais acontecem de maneira insidiosa e silenciosa, sem que a pessoa perceba o que está acontecendo, quase sempre longe do seu consentimento racional.   Além disso, a imensa estabilidade e protagonismo que ganham e passam a exercem sobre as preferências da pessoa estão alicerçados na capacidade dessas substâncias psicoativas de interferirem no funcionamento dos circuitos neuronais do sistema de recompensa cerebral – o sistema mesolímbico-mesocortical – a ponto de “sequestrá-lo”, em detrimento de outros comportamentos relacionados à sobrevivência e à reprodução – vide o artigo “Dependência química é um GPS”).

Tais circuitos cerebrais também são chamados de “circuitos de tomada de decisão social”, dada sua importância estratégica para as escolhas de sobrevivência, dentro dos processos competitivos que compõem inúmeras interações entre os seres vivos.  Eles estão presentes no cérebro dos vertebrados há mais de 450 milhões anos.  Como parte desse sistema decisório, ao lado de uma complexa rede hormonal e de esteroides sexuais – reguladores de comportamentos como reprodução, agressividade e cuidados parentais –, cabe ao sistema de recompensa avaliar a importância de um estímulo ambiental e como reagir a ele da melhor forma possível.

Didaticamente, pode-se afirmar que sistema de recompensa age em três etapas:  mapeando os estímulos relacionados à sobrevivência, atribuindo um valor àquele estímulo e escolhendo a melhor forma ou ocasião para consegui-lo.  O mapeamento acontece de modo totalmente automático, inconsciente, longe do conhecimento ou da anuência da pessoa.  A atribuição de valor ocupa um lugar intermediário, enquanto a execução é eminentemente cortical, ou seja, consciente.

Toda vez que o sistema de recompensa avalia e considera alguma coisa, lugar ou situação favorável à manutenção da vida ou da espécie, ele libera uma quantidade de dopamina, que banha todas as estruturas do sistema, gerando sensação de prazer.  Como resultado disso, o sistema mesolímbico mapeia os “fatores preditores de recompensa” relacionados ao evento de interesse, os quais passam, a partir de então, a disparar automaticamente tal como “pistas” ou “gatilhos”, com o intuito de lembrar o usuário que aquele comportamento deve ser repetido sempre que possível – reforço.

Isso parece muito útil – vital mesmo – quando funciona para extrair o que há de melhor da natureza e das relações sociais em prol do desenvolvimento pessoal e do bem-maior.  No entanto, quando passa a funcionar – parcial ou totalmente – em função da dependência de substâncias psicoativas, o sistema de recompensa, mapeia o mundo considerando essencialmente o próximo episódio de consumo, em detrimento dos anseios que outrora norteavam a vida daquele indivíduo, gerando, no mínimo uma perda de vitalidade e de motivação naquilo que antes o cativava ou inspirava o seu modo de ser e agir, podendo até mesmo levar ao estreitamento do seu repertório social e ao abandono completo de seus interesses pessoais e sociais para viver em função do consumo da substância.

Essa impulsividade provocada pelo avanço da dependência ganha contornos ainda mais graves quando a pessoa já traz consigo fatores de risco importantes, tais como transtornos metais primários – ansiedade, transtornos de humor, déficit de atenção e hiperatividade –, situações de vida marcadas pela exposição à violência, às diversas formas de abuso e ao estresse, especialmente quando acontecem ao longo da infância e da adolescência, além das predisposições genéticas, cada vez mais reconhecidas.

Tudo isso deixa claro que impulsos não se modificam por um simples ato de vontade ou de uma ideia qualquer, mas sim em decorrência do estabelecimento de novas atitudes e posturas, organizadas dentro de propostas terapêuticas bem planejadas e instituídas.  Nesse sentido, os anseios de mudança que adquirem sobrevida, estabilidade e estrutura são justamente aqueles resultantes desse segundo tipo movimento.  Do contrário, o desejo de mudança tenderá sempre a ser efêmero, nunca passando de ímpetos heroicos ou de promessas de conveniência, emergindo e submergindo no campo da consciência tal como ilhas no mar revolto dos impulsos – detentor de marés famintas, de altíssima amplitude – permanentemente disposto a engolir e destruir qualquer tipo de estrutura conscientemente construída ali.

Desse modo, a lição que se deve tirar é que estratégias baseadas em preceitos estritamente racionais, tais como “beba com moderação”, “sai dessa, você é tão legal” ou “pare de usar drogas, meu filho, assim você acaba com sua mãe” podem ser boas como estratégia de marketing ou como uma forma de demonstração de afeto ou desabafo, mas não atingem o âmago da dependência, cuja natureza é essencialmente instintiva e, dessa forma, irracional.  Contra impulsos não há argumentos.  A dependência química deve ser abordada por uma linha de cuidados que além de proteger o dependente, institui estratégias motivacionais e expectativas de recuperação baseadas em metas e normas de conduta, com consequências para além da vontade unilateral dos participantes – paciente, seus grupos de convívio e equipe de saúde –, passando a funcionar, assim, como o espírito da proposta terapêutica.

A partir desse instante, independentemente da capacidade psicofarmacológica da substância em causar um quadro de dependência marcadamente compulsivo ou da incapacidade do usuário, num primeiro momento, de evocar e exercer restrição e controle de modo assertivo, um aparato de proteção psicossocial tornará o ambiente mais previsível e favorável ao processo de recuperação.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).    

Foto: Divulgação

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