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Sigilo e segredo

Segredo: aquilo que não pode ser revelado; que se oculta à vista ao conhecimento.  Sigilo profissional: Dever ético que impede a revelação de assuntos confidenciais ligados à profissão; segredo profissional. Dicionário Novo Aurélio.  Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira; 1999.

A dependência química é uma doença na qual o segredo tem importância central, tanto como fator perpetrador daquela condição, quanto como sinalizador de sua cura.  Conforme o prazer das experiências iniciais de consumo vai suscitando em alguns um vigoroso apetite, há o desenvolvimento de um fortíssimo vínculo de apego, que torna o usuário incapaz de moderar o seu modo de uso.

A partir desse momento, “os automatismos” da dependência começam a assumir o comando.  Isso vai acontecendo aos poucos, de forma progressiva.  São aqueles “apelos” que parecem “guiar” a pessoa em direção a hábitos de consumo adquiridos, os quais vão se consolidando, se intensificando, para finalmente se ampliarem para outros campos da vida do indivíduo.  No começo, tais “hábitos” podem estar enquadrados dentro do culturalmente aceitável – por mais subjetivo e impreciso que isso seja.  Conforme a ampliação do consumo vai ganhando proporções, começa a tomar o lugar de outros hábitos e relacionamentos que anteriormente eram priorizados e prestigiados pela pessoa.  Tal ampliação só se torna possível na medida em que o conjunto de “regras de controle social” estabelecidas pelo seu ambiente sociocultural passa a ser relativizado pela cabeça do usuário – sempre de modo automático, inconsciente, é claro.

Nesse contexto, o segredo é a estratégia de escolha do “mundo automático”, “instintivo”, por meio do qual o vínculo de apego da dependência se instaura e se aprofunda de modo seguro e intocado.  Ele é muito mais do que beber ou usar escondido.  Ele é o estabelecimento de um funcionamento paralelo, que visa a atender demandas internas, as quais, progressivamente, vão se assenhorando de todo o aparato psíquico, por mais que muitos consigam se manter confortavelmente em autoengano proferindo a famosa frase “sei qual é o momento de reduzir ou parar”.  Algumas vezes, o entorno mais próximo do usuário – como os grupos de convívio mais íntimos – tem conhecimento do seu hábito.  É o momento em que uma série de concessões às regras de convívio antes consideradas invioláveis são feitas, em nome de “um valor familiar maior”, muitas vezes chegando a acordos que beiram o bizarro.

Essas pessoas chegam em graus distintos e oscilantes de motivação para o tratamento… e cheias de segredos.  Muitas têm como estratégia não os revelar a ninguém – preferem mantê-los o passado e continuar agindo de modo escondido.  Outras tratam os segredos ligados aos hábitos de uso como “meras mercadorias”, cuja circulação é protegida pelo dever de sigilo.  Há uma armadilha psicopatológica aí que precisa ser revelada.

Em linhas gerais, o objetivo de qualquer processo de tratamento em saúde mental é a busca por uma nova ética pessoal, um novo código de conduta, que respeite e dê vazão aos anseios individuais mais genuínos – bem longe dos moralismos do coletivo – sem deixar de considerar o outro e de se colocar no seu lugar.  Na sua fase mais aguda e sintomática, o comportamento de consumo encontra-se viabilizado justamente por intermédio da instituição do segredo, cujo poder de expressão será tanto maior quanto mais o próprio usuário e sua família, mesmo identificando-o,  forem capazes de relativizá-lo e aceitá-lo disfuncionalmente, fazendo-lhe concessões, em desacordo com  suas crenças pessoais.

Desse modo, quando o médico ou terapeuta “aceita”, “combina” não revelar algo cuja repercussão envolve e vai além dos atos do seu paciente, simplesmente porque ambos se encontram comprometidos por dever de sigilo – ainda que esteja correto do ponto de vista ético-legal – corre um enorme risco de ser negligente, imperito ou imprudente, pois ao reforçar o funcionamento do paciente ligado à dependência oculta, se afastou do seu papel de “profissional da saúde”, para se converter – ainda que “estratégica ou conscientemente” – em “aliado momentâneo”, lançando-se com ele numa empreitada sem precedentes, excluindo outros atores envolvidos no tratamento – em geral a família –, com todos os riscos futuros que essa escolha pode representar.

O mais adequado é trazer a “impossibilidade do segredo” para o âmbito do tratamento, para que o mesmo possa ser – muitas vezes pela primeira vez na vida e na dinâmica familiar do paciente – encarado como um desafio à superação e ao amadurecimento individual do paciente, revelando o seu passado pessoal, familiar e sociocultural, repactuando o possível, deixando de fazer de sua “alma”, nas palavras do filósofo, “uma traficante de mercadorias avariadas”.

Para isso, é preciso envolver a todos desde o início, deixar claro os limites de cada um, estabelecer contratos e papeis – não para engessar ou burocratizar, mas sim, para harmonizar todos os componentes envolvidos: nesse sentido normas e regras devem ser elaboradas em conjunto e precisam ficar acima de todos, com o intuito de estruturar a recuperação, criando um ambiente propício e acolhedor para que o paciente possa se sentir estável e confiar na equipe e para que ela também se sinta segura o bastante para confrontá-lo de forma empática quando algo subitamente revelado ou a espera de revelação estiver atravancando o andamento do processo de recuperação e necessite de sua intervenção – de preferência envolvendo a família – e não seja apenas um perigoso conluio, que corre sério risco de terminar em omissão de socorro.

Conforme avança o processo de recuperação, e a pessoa consegue se responsabilizar de modo efetivo por sua dependência e por seus comportamentos, blindando-se contra os gatilhos e as fissuras, se antecipando às recaídas e, num estágio mais avançado, enfrentando assertivamente as situações de risco. Com isso os segredos relacionados ao consumo vão se tornando cada vez mais triviais.  Parece que é a partir daí que aparecem os “verdadeiros segredos”, aqueles que os “segredos da dependência” escondiam.  Parece também  que agora, finalmente, que o dependente em recuperação está preparado para encará-los de frente, autonomamente.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned). 

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