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Pequeno dicionário metafórico-futebolístico aplicado à dependência química D-E

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Dar chutão para frente: afastar o perigo imediato, sem pensar na construção do ataque contra o adversário. Nos primeiros tempos de tratamento, os apelos e as oportunidades para se consumir substâncias psicoativas são muito maiores do que as habilidades para se esquivar delas (vide o artigo A dependência química é um GPS”). Deste modo, a estratégia inicial é juntar todos na pequena área e ficar na retranca, dando chutão para frente, ou seja, evitar estímulos e situações de risco. Essa é a regra das primeiras semanas. (vide também: Time de várzea).

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Deixar a bola rolar: deixar acontecer naturalmente; não forçar sua trajetória; dar tempo ao tempo. Saber dar tempo ao tempo, quando isso é necessário, faz parte não só do tratamento da dependência química, mas do processo de amadurecimento de qualquer pessoa, um desafio permanente. Por outro lado, deixar o tempo correr em demasia ou “fazer cera”, pode ser prejudicial, um sinal de ausência de pragmatismo por parte do usuário, especialmente nos primeiros tempos da recuperação, quando uma série de neuroadaptações em curso deixa-o vulnerável ao aparecimento de toda sorte de sintomas psiquiátricos do espectro depressivo e ansioso. Tal letargia também pode refletir dificuldades pessoais que o mesmo possui em romper algumas dinâmicas historicamente instituídas em sua vida, que colidem com sua segurança pessoal e autoestima, para tomar atitudes e resolver problemas.

Por outro lado, apesar de o dependente químico e sua família não terem muito tempo a perder, alguns processos relacionados ao amadurecimento pessoal são mais lentos e precisam ser encarados de modo diferenciado – por exemplo, para ganhar um corpo bem definido é preciso fazer exercícios com disciplina e ingerir alimentos saudáveis todos os dias – nunca entremeados por atitudes procrastinadoras – ao mesmo tempo em que é necessário “deixar rolar” o tempo – fluir com a ansiedade – até a chegada do resultado almejado. O negócio é fazer o dever de casa (vide verbete homônimo) e, depois, relaxar: eis a solução para os dilemas do tempo.

Deixar o flanco aberto: mostrar-se vulnerável. O gerenciamento de caso e o manejo da crise são pilares essenciais no tratamento da dependência química, especialmente para aquelas pessoas gravemente dependentes. Assim como no futebol, todo grande time tem os seus pontos fortes, também tem suas vulnerabilidades, os seus “flancos abertos”. Em geral, a certa altura do campeonato, a mídia transforma o desempenho daquele time em hipérboles: “o jogo entre o melhor ataque e a melhor defesa”, “o campeão de desarmes versus a melhor média de lançamentos do campeonato”.

No entanto, conforme já foi dito, todos temos pontos fracos também. A fim de proteger ao máximo esse flanco e aumentar as chances de sucesso, quatro medidas são consideradas essenciais, reunidas sob a sigla MAPE: monitoramento da abstinência e das atividades previamente acordadas (M), agenda de atividades substitutivas (A), pessoas e ambientes de não uso (P) e manejo das situações de estresse (E) (vide o verbete Estratégia de jogo, para ler a descrição de cada uma delas).

A partir do instante em que a estratégia de tratamento encontra-se consolidada, dificilmente um movimento de recaída conseguirá ultrapassar essa linha de defesa com facilidade – claro que é sempre importante lembrar que “o jogo só termina quando acaba” (vide verbete homônimo).

Desarmar o adversário: neutralizar ou interromper uma jogada de ataque do time adversário. Habilidade avançada, geralmente adquirida após um período prolongado de abstinência. Inicialmente, o time do tratamento – paciente, família e profissionais envolvidos – quase sempre carecem de entrosamento (vide o verbete Equipe entrosada). O “jogador principal”, por sua vez, quase sempre não se encontra plenamente motivado, se estressa em campo com facilidade e não desenvolveu ainda todos os fundamentos do futebol (vide verbete homônimo). Desse modo, os primeiros tempos de tratamento são “jogados na retranca”, dando “chutão para frente” (vide verbetes homônimos) – não adianta tentar desarmar o adversário no meio de campo ou sair driblando.

Conforme a capacidade do paciente em dizer “sim” para a abstinência vai aumentando, assim como sua capacidade de manejar o estresse e as dificuldades da vida de forma assertiva, sua habilidade para dizer “não” ao uso de álcool e drogas vai se aprimorando, até se tornar algo “quase natural”. Esse é o momento em que o monitoramento (vide o verbete Monitorar) vai se tornando paulatinamente menos necessário.

Dono da bola: o chefe, o “mandão”, aquele que se acha acima das regras estabelecidas. Não é difícil aceitar a ideia de um personal trainer para estruturar, aprimorar e monitorar o condicionamento físico. Também parece natural seguir as instruções de um dentista, de um cardiologista, de um nutricionista. Já aceitar as recomendações de um psiquiatra é diferente: ele trabalha na esfera da autonomia do sujeito, da sua individualidade; dessa forma, não é simples para o paciente reconhecer, muitas vezes, que em algumas situações, parte dos males que o afligem, advém do “mau funcionamento” de engrenagens cerebrais e que algumas ações restritivas são necessárias para propiciar o retorno ao “equilíbrio orgânico” alterado. Além disso, como parte componente da doença, padrões emocionais e cognitivos de comportamento se instalam com o intuito de diminuir a importância (“minimizar”, “negar”) dos danos causados por essa disfunção (vide o verbete Medo de tomar o vermelho), prejudicando, assim, a capacidade do paciente de avaliar com precisão a gravidade do seu quadro.

Desse modo, a fim de estruturar o processo de tratamento do dependente químico, um contrato terapêutico, ou seja, um arcabouço de regras e normas, expectativas e metas, bem como implicações e consequências relacionadas à quebra de acordo, precisa ser instituído e monitorado (vide o verbete Contratação).

Muitas vezes, o paciente, temeroso pela perda de sua autonomia ou devido à sua capacidade cognitiva rebaixada, insuficiente para avaliar adequadamente a situação, procura se “agarrar à bola”, resistindo à instituição de mecanismos de monitoramento ou exigindo garantias a priori de que poderá deixar o tratamento quando quiser ou de que nunca será internado. Autonomia é diferente de imunidade: o conjunto de regras deve ficar acima de tudo, pode ser modificado sempre, desde que presencialmente, no consultório, com a presença e concordância unânime dos envolvidos – nada de mudanças de regras pelo telefone ou entre pais e filhos, apenas. Outro detalhe importantíssimo: internação não é castigo, é cuidado, um ato médico utilizado – por vezes coercitivamente – com o intuito de salvaguardar a integridade física e psíquica do paciente. Por isso nunca poderá ser excluída do rol de cuidados. | E bola para frente!

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Em time que está ganhando não se mexe: aquilo que está dando certo, deve ser mantido. Esse é um jargão futebolístico dos mais tradicionais, que já passou pela boca dos principais locutores esportivos do país. Ele traz uma verdade inconteste, mas algumas outras variáveis precisam ser consideradas para que essa importante afirmação seja posicionada dentro da perspectiva correta. Em geral, esse jargão é utilizado para retratar um momento, uma perspectiva transversal do time no jogo ou no campeonato, ou seja, uma situação vantajosa conseguida aqui-e-agora, superando estrategicamente o adversário.

Nesse sentido, um paciente abstinente há seis meses, bem entrosado com sua equipe (vide o verbete Equipe entrosada) e estrategicamente bem posicionado (vide o verbete Estratégia de jogo) certamente possui grande estabilidade e capital de recuperação considerável. No entanto, seria ingênuo pensar que o campeonato já está ganho. Quantos timaços na história do Brasileirão ocuparam a ponta da tabela por quase todo o campeonato, para, na reta final, morrerem na praia… (vide o verbete Morrer na praia). É necessário – obrigatório – respeitar o adversário todo o tempo (vide verbete homônimo). Ele tem categoria e está apenas à espera da melhor oportunidade para furar nossa retranca e ligar um contra-ataque mortal.

Algumas vezes, o paciente tem a sensação de que algumas garantias de autocontrole e abstinência que possui são intocáveis – por exemplo: “tirei todas as vodcas de casa; ainda tem uísque, mas não precisa se preocupar, porque eu sempre odiei essa bebida” – reformulando a sentença: você odiava uísque enquanto o seu sistema de recompensa se dava ao luxo de mapear o mundo em função de ter sempre um litro de vodca à sua disposição, mas agora que ela se foi, subitamente, numa noite em que você e sua filha adolescente discutiram duramente e ela te chamou de “bêbado covarde”, você acabou dando um tapa no rosto dela, mandou-a para o quarto e, depois, sentindo-se o pior dos mortais, “bebeu o que tinha em casa”… e secou a garrafa da odiosa bebida, perdendo a chance de, ao invés disso, telefonar para o seu médico, para o seu terapeuta, ou mesmo para um amigo para desabafar e encontrar a melhor maneira de se retratar com sua filha.

Outro argumento muito ouvido, na hora de pensar o monitoramento é: pode ficar tranquilo, eu nunca bebo à tarde. – até vedarmos todas as possibilidades de você beber à noite. Por isso, nunca subestime o adversário na hora de montar a estratégia e, muito menos, se sinta incólume quando a mesma estiver aparentemente funcionando de vento em popa: em time que está ganhando não se mexe, mas nunca devemos deixar de respeitar o adversário.

Além disso, essa máxima é especialmente útil para se refletir sobre as questões do aqui-agora, entre elas as mudanças de estratégia repentinas: por exemplo, quando o paciente subitamente resolve mudar tudo, desistir da terapia, “porque a família precisa economizar” ou porque precisa “caminhar com os próprios passos”. “- Calma, vamos pensar juntos, em equipe, em time que está ganhando não se mexe “de uma hora para outra”, esse é o complemento que faltava.

Só não se deve esquecer que o tratamento da dependência é dinâmico, requer ajustes a todo o instante (vide Estratégia de jogo e Ajustar os ponteiros), e sempre deve considerar as demandas do paciente. Por isso deve ser sempre modificado, incluindo o próprio time.

Entrar de salto alto: com arrogância, com ar de superioridade, com a autoestima acima do normal, [gir.] “se achando”. A falta de humildade é um veneno no futebol. “Cantar vitória antes da hora” ou fazer menos do adversário, além de sinal de mau agouro, incentiva ainda mais o inimigo em seu propósito de vencer. Ainda que as afirmações anteriores não sejam passíveis de se comprovar cientificamente, entrar em campo achando que você é capaz de superar todas as dificuldades sozinho, diminui a coesão entre os membros do time – devido à tomada de decisões não consensuais – e deixa o protagonista menos atento aos detalhes, os quais, no computo geral, acabam fazendo a diferença.

A dependência é um transtorno mental que pode adquirir contornos graves, é um verdadeiro GPS, programado apenas para chegar à próxima dose (vide artigo “A dependência química é um GPS”). Desse modo, o dependente químico, especialmente nos primeiros meses, além de biologicamente programado para consumir a droga de forma ininterrupta, encontra-se cognitivamente enviesado (vide o verbete Medo de tomar o vermelho), com tendência a enxergar a realidade de acordo com as suas necessidades, em detrimento dos perigos que ela também possa lhe oferecer. É por isso que ao se definir pela abstinência, o usuário, muitas vezes, mantém-se excessivamente seguro, “arrogante”, até, numa primeira aproximação. É necessário que a equipe de tratamento o auxilie nesse momento, insistindo no monitoramento (vide o verbete Monitorar), evitando situações de confronto desnecessárias e, em última instância, conversando sobre as derrotas – recaídas – provenientes de tais comportamentos, com o intuito de amadurecê-lo.

Equipe entrosada: em harmonia, em sintonia [inclui também o paciente e seus familiares]. O estabelecimento dos contratos e dos vínculos terapêuticos entre o paciente e sua família e os profissionais da saúde que o atenderão é um momento crucial para o tratamento. O paciente traz consigo, além do problema que o aflige – ao menos na opinião da sua família –, o seu estado de saúde, o seu funcionamento psíquico, suas preferências pessoais e referenciais culturais. Sua família também chega com expectativas em relação ao tratamento, com seu modo de lidar com o paciente – muitas vezes disfuncional –, com membros por vezes adoecidos, em crise de identidade – por terem aberto mão de paradigmas os quais seguiam piamente, em prol do paciente –, algumas vezes em sérias dificuldades financeiras por conta dos intermináveis investimentos para cuidar do usuário.

A equipe de cuidado, por sua vez, tem as suas especificidades – pode ser fechada e coordenada por um profissional sênior ou composta por profissionais de diferentes origens, “reunidos” em função do paciente; há diversos referenciais teóricos e modelos de cuidado que pautam a prática desses profissionais; por fim, os ambientes de tratamento se modificam, de acordo com a necessidade de monitoramento (vide o verbete Fundamentos do futebol).

O encontro de ambas as partes definirá o “clima organizacional” do atendimento, ou seja, a resultante entre as características do paciente e sua família e das qualidades da equipe de tratamento; um “clima” favorável, além de acomodar as demandas do time como um todo, propicia uma maior sensibilidade para detectar, reduzir o efeito danoso ou mesmo eliminar atritos, situações de estresse e desconfortos contraproducentes. Um exemplo rudimentar: uma equipe que privilegia a comunicação por mensagem de texto encontra uma família que prefere se comunicar apenas por telefone, levando a alguns desencontros iniciais; uma família que muitas vezes toma atitudes “psicopáticas” (antissociais) procura os serviços de um psiquiatra para o seu filho; apesar de esse ser altamente competente e qualificado, o mesmo não gosta de lidar com esse tipo de perfil familiar – desse modo, passou a sentir-se irritado e impaciente com coisas que habitualmente não o atingiriam.

O “clima” certamente influenciará no desempenho do paciente dentro da “proposta de tratamento combinada”. Tais propostas, quando bem-sucedidas, aumentam a adaptação social do paciente, melhorando o seu capital de recuperação. Tais ganhos, ao lado da satisfação com o tratamento, aprimoram o “clima do tratamento”, ainda mais quando os aspectos doentios que vigoravam no funcionamento do paciente e de sua família perdem força ou encontram-se remitidos. Tudo isso, se reverte em harmonia, em aumento de confiança entre todos. Mas os incidentes e as novas demandas não param de acontecer e, por isso, a harmonia entre profissionais paciente deve ser revisada, debatida e – de preferência – sanada a todo instante (vide o verbete Ajustar os ponteiros).

Estratégia de jogo: conjunto de processos metodológicos interessados em estabelecer metas, empreender ações, mobilizar recursos e tomada de decisões, visando à realização de objetivos, a fim de alcançar o sucesso [Wikipédia]. Não existe tratamento bem-sucedido sem um plano terapêutico. Não basta saber jogar bola, se não houver entrosamento e objetivos a serem alcançados. O desejo de voltar a consumir drogas, as rusgas do passado, as fragilidades iniciais do paciente e seus vínculos – incluindo o terapêutico – são os flancos abertos do time do tratamento (vide o verbete Deixar o flanco aberto), que dão força e movem o time adversário. Dessa forma é preciso jogar aproveitando ao máximo os pontos fortes da equipe, fechar os flancos vulneráveis e neutralizar os pontos fortes do adversário, que sempre deve ser respeitado (vide o verbete Respeitar o adversário).

Uma boa estratégia de jogo deve concatenar quatro elementos terapêuticos: (1) monitorar as atividades combinadas e a abstinência, (2) implementar as atividades substitutivas – “agenda” -, (3) fomentar novos aprendizados com pessoas e em ambientes livres de consumo e (4) promover o manejo do estresse e as estratégias de enfrentamento.

MONITORAMENTO: instituição, em comum acordo, de controles com o intuito de fortalecer o desejo de abstinência do paciente – nota: “livre e espontânea pressão” é considerada o “comum acordo”. O maior monitoramento de todos é a internação involuntária do paciente. Isso acontece naquelas situações em que a situação do time está gravíssima, às voltas com o rebaixamento, mas o sujeito insiste que o time deveria entrar para enfrentar o líder do campeonato sem o goleiro e um atacante a mais. Um exemplo, no campo das drogas, é alguém consumindo crack, apresentando sintomas psicóticos, tirando coisas de casa para vender e ainda por cima, levando desconhecidos para dentro de sua casa de madrugada, mesmo sabendo que seu filho de 12 anos e sua filha de dez estavam lá, com a sobrinha de 20 – e, ao perceber que o irmão e a mãe chegaram à sua casa com uma empresa de remoção, disse-lhes: “Gente, está tudo sob controle, vocês precisam me entender! Precisei trazer os caras aqui, ontem, porque estava na biqueira sem grana, peguei emprestado com outro usuário e no final não tinha como pagá-lo; ele e mais dois colegas puxaram facas, me bateram na cara, me queimaram com pontas de cigarro; falei, então, que tinha um apartamento bacana, onde morava sozinho – jamais falaria sobre os meninos; eles toparam comprar um pouco mais para nós todos, desde que usássemos lá, em segurança. No final, acabaram levando a televisão como pagamento, mas jamais teriam tocado em ninguém da casa… eu não teria deixado”.

Outras formas de monitoramento são a instituição de testes toxicológicos, uso de medicamentos aversivos (como o dissulfiram), consultas regulares, acompanhamento terapêutico, uso de aplicativos de monitoramento a distância, etc. (vide o verbete Monitorar) | O objetivo do monitoramento é criar um ambiente seguro para o dependente, que o ajude a dizer “sim” para a abstinência e para os termos do acordo terapêutico, bem como que o ajude a não guardar segredos que mais tarde possam vir a prejudicá-lo.

AGENDA OU ATIVIDADES SUBTITUTIVAS: construção de um plano de atividades, monitoradas de perto pela equipe de saúde e/ou pela família, com o intuito de ocupar o espaço do consumo de drogas ou de fomentar a estruturação de novos hábitos de vida). Os ganhos advindos dessas atividades substitutivas acabam sendo muito valorizados pelos pacientes, por isso, é importante que sejam capazes de gerar frutos a curto, médio e longo prazo. Elas também precisam apresentar demandas que o estado mental do paciente consiga manejar. É por isso que, inicialmente, as atividades são quase sempre voltadas para o próprio tratamento e aos poucos, vão-se abrindo para outros campos de vida do usuário.

PESSOAS E AMBIENTES DE NÃO USO: especialmente no começo, é difícil não sucumbir aos estímulos e oportunidades de consumo. Além disso, às vezes é preciso contar com a ajuda de pares, que já estiveram nessa mesma situação para decifrar melhor esse “manual de sobrevivência na selva da abstinência”, como acontece nas salas de Alcoólicos e Narcóticos Anônimos, bem como nas de Amor Exigente). Há, ainda, os amigos e os locais não relacionados aos tempos de consumo.

Tudo isso tem de ser estruturado da melhor forma possível, a fim de criar o ambiente mais livre de estímulos possível – o passado baterá muito na porta do usuário, ele precisa de uma rede de proteção. Esse é o momento para se discutir sobre alguns amigos que também usam drogas: é o momento de se afastar deles, idealmente pelo tempo necessário para que o paciente possas estruturar novos hábitos, incompatíveis com o consumo. Haveria, assim, um afastamento natural. A fim de evitar brigas e conflitos entre pais e filhos, aleguemos que o paciente fraturou a perna e não poderá encontrar os amigos do futebol enquanto estiver imobilizado ou na fisioterapia – torçamos e façamos com que, nesse ínterim, ele passe a se interessar mais pelo vôlei.

MANEJO DAS SITUAÇÕES DE ESTRESSE DE FORMA ASSERTIVA: já há muita informação nesse verbete, mas, pode acreditar, é o estresse quem promove a recaída e a retomada do consumo, e, quanto mais o dependente conseguir se sair bem dessas situações, sem recair, mais forte e assertivo ficará, rumo à retomada de sua autonomia.

Apesar das atribuições e especificidades profissionais de cada um, esse é um terreno onde todos os envolvidos – psiquiatras, psicoterapeutas, terapeutas ocupacionais, educadores, professores de educação física, acompanhantes terapêuticos, conselheiros em dependência química, líderes religiosos, além de outros – podem contribuir, incluindo a família e os amigos).

No começo, a melhor maneira de lidar com o estresse é evitá-lo; num segundo tempo, enfrentá-lo, com ajuda de supervisão e de medidas de contenção, tais como uso de medicamentos sedativos em situação de crise, acompanhantes 24 horas, até o instante em que a capacidade de dizer “não” para o consumo e “sim” para a abstinência se tornaram quase um automatismo, independentemente das oscilações emocionais.

Expulsão de campo: retirar o jogador do jogo. No tratamento da dependência química, ao contrário do mundo futebolístico, não existe, em hipótese alguma, a possiblidade de se expulsar o dependente de casa, como estratégia terapêutica – o mesmo deve ser tratado considerando os preceitos da saúde.

Em alguns casos, no entanto, a incapacidade da família de se posicionar em relação ao comportamento e ao consumo do paciente, somada à “erosão da discriminação normal” (vide o verbete Medo de tomar o vermelho) que afeta progressivamente esse último, criam cenários caóticos, dentro dos quais o paciente passa a agir ao sabor dos gatilhos e impulsos do consumo, sentindo-se absolutamente desincumbido de negociar com a realidade: “comecei a fumar por culpa da minha mãe”, “recaio para mostrar a ela minha indignação”, “o quarto é meu, dentro dele faço o que quiser”. Relatos de coação e de agressão física contra pessoas mais velhas da casa, furtos de natureza aquisitiva, cenas de agitação e violência, entrada na casa de pessoas desconhecidas, trazidas pelo paciente sem nenhum critério, além do desejo de usar droga em um local seguro, sem a anuência dos demais moradores da casa – todas essas são situações que vão aos poucos minando o convívio entre o paciente e seus familiares, que se sentem acuados, ao mesmo tempo que indignados.

O que falta aqui, porém, não é uma medida derradeira – a expulsão de casa –, mas a (re)instituição paulatina de regras, que passem a ser cobradas e tenham consequências certeiras para a vida do paciente, regras que o forcem novamente a negociar com a realidade, a fazer escolhas – entre elas, a que não é possível usar drogas da forma como ele está fazendo e viver daquela forma na casa dos pais. Em casos extremos, a internação involuntária passa a ser uma alternativa, não para “curá-lo”, mas para que volte a “negociar com a realidade” novamente, para que a família, fortalecida, possa, juntamente com a equipe de tratamento, elaborar um contrato terapêutico, uma estratégia de tratamento a ser monitorada e seguida (vide o verbete Monitorar) e começar a jogar mais duro (vide verbete homônimo).

Pequeno dicionário metafórico-futebolístico aplicado à dependência química | A – C

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).  

Foto: Pixabay

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