Top

Segredos são como energia sequestrada

A mentira tem perna curta.  Essa é uma das expressões populares mais verdadeiras – especialmente para esquecidos como eu, que invariavelmente não se lembram o “combinado da mentira” ou a “omissão do fato” e deixam vir à tona outras histórias que invariavelmente geram contradição e colocam por terra a sua pretensa veracidade ou inexistência.  A mentira ou a omissão não tem lastro em fatos ocorridos, tampouco conta com testemunhas às quais se possa recorrer quando sua natureza contraditória é revelada por alguém.

SIGA O RG NO INSTAGRAM

A partir dessa rápida descrição, é possível constatar que a manutenção de uma mentira ou a omissão de uma fato requer a mobilização ativa de energia psíquica, com o intuito não apenas de armazená-la em local seguro e isolado, como também de mapear geográfica e cronologicamente qualquer sinal de informação contraditória, capaz de gerar panes ou curtos-circuitos reveladores.

Imaginemos agora um dependente de substâncias psicoativas gravemente imerso nas dinâmicas da dependência, voltado e devotado para os apelos imediatistas da próxima dose, à custa da erosão da importância dos relacionamentos profissionais, das atribuições sociais, dos vínculos afetivos, das convicções éticas e morais para sua vida mental, componentes essenciais de sua própria identidade.

Todo o fluxo energético que mantinha coeso e acessível ao escrutínio da consciência esse complexo emaranhado de componentes formadores da identidade do usuário vai aos poucos sendo desviado para a manutenção do vínculo – cada vez mais intenso e monopolizador – com a substância psicoativa, na qual a formulação de segredos passam a funcionar como “gatos” na rede elétrica, furtando energia psíquica, provocando falhas no caráter, modificando a identidade individual e sobrecarregando o sistema, a ponto de ocasionar o surgimento de comorbidades – ou complicar alguma já existente – comprometendo o funcionamento do sistema nervoso como um todo.

A abstinência e o pacto terapêutico avesso a qualquer tipo de segredo relacionado aos mecanismos patológicos da dependência (vide o artigo “Sigilo e segredo”) são medidas efetivas no sentido de bloquear esse processo altamente danoso para o funcionamento mental.  No entanto, apenas a partir da adoção de uma nova postura ética – inicialmente no que se refere ao tratamento e seus percalços e, posteriormente, diante de toda a vida –, é que os “gatos elétricos” serão desconectados até o ponto de o funcionamento psíquico recobrar toda a sua plenitude.

Nesse sentido, cada recaída devidamente assumida com amadurecimento, cada enfrentamento realizado de modo assertivo – tanto em relação à droga, quanto ao mundo emocional da pessoa –, cada limitação detectada e assumida de forma humanizada, cada reparação realizada de forma sincera e justa equivalem à desconexão dessas “ligações clandestinas”, as quais, mesmo após o término do consumo de drogas, prevalecem no sistema nervoso, até serem desligadas ativamente.

Uma outra maneira de se imaginar, metaforicamente, a resolução desse desbalanço energético, é considerar cada enfrentamento assertivo e ético por parte do indivíduo como uma “pilha” carregada com a “energia psíquica” outrora retesada dentro de algum segredo patológico, mas que, a partir de agora, se tornou disponível para a construção de um novo estilo de vida, pautado pela função ética da psique e estruturado em ambientes e relacionamentos livres de substâncias psicoativas.  Que a fonte nunca seque.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned). 

Mais de Cultura