Top

Dependência química é a impossibilidade de se adaptar ao novo

Sempre que nos deparamos com uma situação nova, que extrapola nosso conhecimento ou capacidade de lidar sozinhos com suas demandas, faz-se necessária uma atualização ou uma reformulação daquilo que sabíamos ou fazíamos. Isso implica necessariamente em um “gasto”: seja pagando bons consultores ou técnicos, capazes de solucionar o problema para nós ou “parando para pensar” em uma solução criativa para aquela situação.

SIGA O SITE RG NO INSTAGRAM

O primeiro caso, poderia ser, por exemplo, a necessidade de se reformar uma casa, em decorrência de um vazamento grave na sala de estar ou da notícia da chegada de gêmeos para um jovem casal. Nada melhor que um arquiteto e um engenheiro para a garantia de uma reestruturação de espaço de forma adequada, elegante e segura. Isso poderia ser extrapolado para qualquer outra situação que se busca apoio profissional – um médico, um psicólogo, um consultor financeiro, um publicitário, um advogado, um nutricionista, um personal trainer etc.

No segundo caso, encontram-se as situações em que é preciso “parar para pensar”, com o intuito de agir com sabedoria, da melhor maneira possível – por exemplo, o que fazer após uma discussão dura e inesperada com a melhor amiga, uma paixão arrebatadora a um mês do início de uma longa viagem, a necessidade de “romper” a timidez e dizer o que se sente para um amiga, reformular o plano de estudos após um fracasso acadêmico, um surgimento de problema emocional de um filho, um desentendimento inesperado no ambiente de trabalho, uma proposta irrecusável de emprego em outra cidade e seu impacto sobre as rotinas da família, um desejo inesperado de mudança, que coloca em xeque vários projetos em andamento. Todas essas demandas – internas ou externas – são capazes de tirar as pessoas de suas zonas de conforto, desorganizar os seus automatismos, perturbar sua tranquilidade psíquica, dentro dos quais se sentiam – ainda que ilusoriamente – seguras.

No entanto, como parte da vida, em ambas as situações, ao término do investimento financeiro ou de energia mental realizados, vencidos os desafios – e suas ameaças potenciais –, os ganhos obtidos se incorporam definitivamente ao patrimônio material, físico ou psíquico da pessoa. Assim, da mesma maneira que as reformas valorizam os imóveis, que um contrato bem elaborado pelo advogado aprimora o acordo firmado e que estratégias financeiras e a reeducação esportiva e alimentar potencializam os recursos financeiros e a saúde de modo geral – além de permanecerem incorporadas ou gerando frutos, mesmo após o término da contratação de desses profissionais –, a psique humana, ao longo do seu processo de desenvolvimento, após cada investimento, visando a novas conquistas ou a superação de adversidades, se amplia, ganha autonomia, torna-se mais experiente e amadurece – ou seja, o seu “patrimônio psíquico” aumenta, cada vez que se ela consegue se adaptar à necessidade de mudança – ao novo –, seja essa oriunda do próprio indivíduo ou do ambiente sociocultural que o cerca.

A psique humana encontra-se permanentemente em expansão, independentemente da idade ou do momento da vida em que a pessoa se encontra. Demandas internas e externas por transformação nunca cessam. Para isso, o sistema nervoso humano possui uma refinada circuitaria destinada a lidar especificamente com essas “novas demandas”. Trata-se de um setor altamente especializado e desenvolvido, podendo ser comparado ao departamento mais estratégico, bem formado e pós-graduado de uma empresa ou ao de um conselho universitário, composto por seus professores titulares mais renomados e brilhantes. Sua função é justamente entender as aspirações do mundo e da instituição, antes de criar normas, modelos e rotinas que aos poucos vão se transformando na cultura daquelas instituições.

A instalação da dependência química “sequestra”, “desidrata” o funcionamento da região neocortical do sistema nervoso, que entre as suas inúmeras funções executivas, estava a de “dialogar” com as demandas do sistema de recompensa (vide o artigo Dependência química é um GPS) no sentido de inibir os seus apelos demasiadamente insistentes ou exagerados. Com a progressão da dependência química, a energia psíquica outrora destinada às funções executivas da psique, ou seja, o setor estratégico e criativo da mente, é literalmente revertida para a necessidade premente de mapear, rastrear e conseguir a próxima dose – a busca pela constante renovação em nome de uma perspectiva melhor de futuro se transformou em uma luta quase irracional pelo aqui-e-agora, pelos desejos impulsivos desencadeados pelos gatilhos da droga.

Esse é o momento em que o dependente químico perde a capacidade de se adaptar ao novo, e se torna refém dos padrões de consumo da droga, que com o passar do tempo, ficam cada vez mais estreitados, caricatos e previsíveis. Claro que tudo o que foi adquirido no passado, contribui para que o dependente ainda pareça “no controle da situação”. Basta imaginar que se a Nestlé ou a Universidade de Harvard demitissem todo o seu corpo diretivo e suas mentes mais brilhantes, ainda conseguiriam “funcionar no automático” por um bom tempo e sofreriam talvez uma decadência longa, vivendo de suas glórias de outrora, até serem finalmente compradas ou liquidadas por outras concorrentes. Diferente da Doceria da Vovó Tinica ou de uma escolinha de bairro, que por ainda carecerem de estrutura e reservas, quebrariam imediatamente. Esse raciocínio também é válido quando se pensa na retomada para quem decidiu deixar as drogas: o que sobrou de patrimônio psicossocial, o que você deixou de construir enquanto consumia e, mais ainda, o que você precisará desenvolver nos próximos anos de abstinência? São perguntas que valem uma recuperação.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned). 

Mais de Cultura