Dêssa Souza – Foto: Will Cavagnolli
“Nem vem / nem tentem nos matar / a nossa arma é o amor”
São esses alguns dos versos que dão o tom do novo single de Dêssa Souza. Disponível em todos os aplicativos de música, inclusive com um videoclipe no YouTube, “Menina Que Embala” é a ressignificação de um poema escrito pela artista em 2012. “Esse é um texto que produzi para a primeira antologia do Sarau do Binho. Na época, corriam por São Paulo boatos de “toques de recolher” e decidi fazer um rápido desabafo, refletindo sobre a força das mulheres periféricas. Em 2019, durante um processo de criação para um experimento cênico, notei que alguns trechos me incomodavam. Foi então que o termo ‘haja’, por exemplo, foi substituído por ‘que não haja’. E o “menino mestiço” passou a ser verbalizado como ‘menino pretinho’. Tem a ver com o meu próprio reconhecimento enquanto mulher preta, que ainda está em processo, já que uma das coisas que o racismo velado e diário faz é não deixar escuro quem somos desde pequenxs”, declara.
Gravada de maneira independente, o novo álbum da cantora é “Camadas” está previsto para ser lançado em abril de 2021. “Vale destacar que essa letra é, também, um retrato das inúmeras meninas que presenciei embalando bebês enquanto ainda nem haviam deixado de ser meninas. Ao mesmo tempo é sobre mim, sobre minha mãe e sobre tantas mulheres que não se recordam do afeto materno – porque realmente não o tiveram, e porque são filhas de mulheres que também não tiveram afeto e assim sucessivamente (…), mas que socialmente são criadas pra estar sempre prontas pra embalar alguém. Fala da correria de mulheres que dão o sangue e o suor, correndo dia a dia, inventando brinquedo e rango, mesmo depois de um dia puxado no trabalho, tudo que queria era ficar no ninho, descansar a mente, tomar um vinho, mas a maternidade dá poucas brechas mesmo para as que tem seus parceiros em casa, quem dirá para as que são mães autônomas. Retrata brevemente o laranja e cinza das periferias, muitas vezes coloridos pelas roupas no varal e sonoramente embalados pelos sambas, choros e funks nas caixas de som. É dor, luta, mas também é amor de monte, é dança e sorriso. A mensagem é que nós mulheres merecemos ser o que somos, merecemos ser livres pra fazer o que quisermos e poder andar sem medo, sem medo de ter nossos corpos violentados e sem medo de que nossos filhes ganhem o mundo com confiança, sem que alguém os violente. E merecemos porque somos potência, porque a gente é que constrói o mundo com nossas mãos, somos nossas próprias bases e as bases de nossas comunidades.”
Toda essa mensagem, direta e reta, é guiada por uma batida moderna, dançante e com gostinho de pista. No final das contas, os vocais dobrados de Dêssa, os contrabaixos e guitarras de Augusto Iúna, as percussões de Rafael Franja Lima, o trompete de Jonathas Noh – também responsável pela produção musical – e até um inusitado acordeon de João Carlos de Calda Leite são os que decretam: “Menina que Embala” é soul music, rap, poesia, mpb e track periférica porque periferia, ainda, tem ruas de terra. E terra lembra chão, ancestralidade, interior, raíz. “Trouxe pra esse trabalho o meu eu interiorano, a mulher mãe e filha, a pessoa que corre pra dar conta dos boletos, mas sem perder mão da ludicidade e leveza que a vida tem. Minhas inspirações são as mulheres que passam pelo meu caminho, me transformando cada vez mais com suas potências e saberes partilhados.”
Para a versão audiovisual – realizada com apoio da 4ª Edição do Fomento à Periferia para a cidade de São Paulo, por meio do Núcleo Mulher em Cena, do Coletivo Teatral Bando Trapos – o fio condutor foram imagens do cotidiano, de memórias da infância, de instantes afetivos, ruas, vielas, laje, crias, avós, mães e seus afazeres. Cenas rotineiras de Ariston, em Carapicuíba. De onde a artista nasceu e cresceu. Sheila Signário assina direção e roteiro. Jessica Ayara a captação de imagens. Tudo a distância.