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Valentina e o sexismo nas cozinhas – por Bel Coelho

#agoraéquesãoelas também invade RG! Em vez de apenas ceder a coluna de João Grinspum Ferraz (teve texto dele na quarta (04.11)), aproveitamos o convite dele para abrir espaço a mulheres que tem muito para falar. E dentro de um ambiente extremamente polêmico quando o assunto é sexismo: a cozinha. Com a palavra, a nossa querida chef Bel Coelho.

Valentina e o sexismo nas cozinhas

Nos últimos vinte dias um movimento importante criou-se nas redes sociais. O movimento do #meuprimeiroassedio, relatos de mulheres sobre seus tristes episódios de abusos vividos no passado e presente, tem uma importância muito maior do que podemos enxergar. Ele ganhou corpo depois dos assédios que Valentina, participante de 12 anos do programa de TV Masterchef Junior, sofreu nas redes sociais. Eu a conheci pessoalmente, logo depois desses acontecimentos, numa breve participação que tive durante as gravações do programa como chef convidada. Valentina é uma menina doce, um pouco tímida e de olhar profundo, sincero, que me remeteu mais ao olhar do meu filho de um ano e meio do que ao olhar de uma mulher. Valentina é uma criança. Linda, alegre e que adora cozinhar, mas uma criança.

Refleti muito sobre o ocorrido. Fiquei consternada nos dias seguintes da gravação. Era o refluxo de sentimentos de tristeza e culpa parados em minha garganta. Tristeza por constatar pela milésima vez que vivemos, sim, numa sociedade extremamente machista, misógina e violenta. Culpa por saber que pouco fiz para mudar alguma coisa. Fiz pouco inclusive para mudar esse cenário no meu próprio ramo, a cozinha profissional. Quando notei que os movimentos do #omeuprimeiroassédio e #AgoraÉqueSãoElas seriam fortes, pensei: É agora! Compartilhei meu próprio primeiro assédio e outros abusos e violências que vivi na mão de homens covardes e tristes. Mas ainda não falei sobre o sexismo tão presente no ambiente de trabalho da minha profissão, a cozinha.

O sexismo no ambiente de uma cozinha profissional é ofuscado pelos abusos de força e poder tão cultuados e divulgados pelos chefs com fama de mal. É tudo uma coisa só e obviamente não há bom resultado que explique tamanha agressão. As cozinheiras, por sua vez, já não bastassem os gritos habituais e pressões constantes, são obrigadas a passar por provações ainda mais execráveis. Tratadas como “café com leite” até provarem que são tão competentes e fortes como os homens, aturam sérios assédios morais e físicos no intuito de um dia serem uma grande chef. É um cozinheiro que solta uma piadinha aqui, outro que passa a mão na sua bunda acolá e o chef que te encoxa na câmara fria com a desculpa de alcançar os tomates no alto da prateleira. Coitados dos cozinheiros! São muitas horas de trabalho e precisam desopilar a mente, não é mesmo? A mulher! Sempre um alvo perfeito.

O que mais me entristece em tudo isso é saber que nós mesmas somos parte responsável dessa violência. Contribuímos com esses abusos quando ao invés de gritar simplesmente nos calamos ou, pior, quando a sua vizinha acredita que você fez algo para merecer passar por essas situações. É muito triste ter que lembrar a nossa sociedade que não há calça justa demais, roupa de menos ou postura de “vagabunda” que justifique qualquer abuso dessa natureza. Para saber se você, homem ou mulher, está sendo machista, reveja esses episódios mudando levemente o roteiro e trocando o personagem da mulher pelo de um homem. Por exemplo: Um homem em um carro importado com um Rolex no pulso merece ser assaltado ou até mesmo levar um tiro na cabeça por ter provocado tentação no ladrão? Estou certa de que sua resposta é não. A resposta tem que ser a mesma quando a vítima é uma mulher e o assunto é abuso sexual. Um bom e sonoro NÃO.

Uma geração de mulheres corajosas lutaram pelos nossos direitos e mudaram a nossa história. Me pergunto constantemente que legado a nossa geração de mulheres deixa para a geração da Valentina? E se a Valentina se tornar uma cozinheira profissional? Que ambiente de trabalho vai encontrar em dez anos? Torço e agora luto para que nossas meninas e mulheres sejam simplesmente livres.

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