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Fê Suplicy no Rio

Fernanda Suplicy fez um tour carioca guiada por Junior, do Afroreggae

A jornalista Fernanda Suplicy passou um inusitado final de semana no Rio. Nada de Ipanema, Celeiro, Jobi… Guiada por Junior do Afroreggae, uma das mais importantes vozes sociais do pais, ela fez uma incursao pelo cotidiano das mais necessitadas regioes da cidade, e conheceu de perto os projetos do Afroreggae que levam esperanca aquelas populacoes. Acompanhe o relato…

“Do trafico a formacao artistica, uma questao de oportunidade

Conheci o Afroreggae em julho de 2006 atraves de um apaixonante bate papo com o Junior, seu criador, na casa do Marcelo Loureiro. Foi incrivel, e desde entao acompanho a evolucao do projeto.

Resumindo o trabalho, e a propria comunidade se organizando e criando alternativas de nao ao trafico, provando que se os jovens tiverem outras possibilidades de obterem as coisas e a vida que almejam, preferem uma outra opcao.  O objetivo e oferecer uma formacao cultural e artistica para jovens moradores de favelas de modo que eles tenham meios de construir suas cidadanias e com isto escapem do caminho do narcotrafico e do sub-emprego, transformando-se tambem em multiplicadores para outros jovens.

Agora, dois anos depois, tive a incrivel experiencia pela impecavel organizacao do CJE/FIESP (Comite Jovens Empreendedores) de vivenciar tudo de perto.

Fomos ao Rio de Janeiro num grupo de empresarios interessados na melhora do pais, na inclusao social e em acoes solidarias multiplicadoras. Fomos fazer uma especie de tour na realidade de parte da pobreza que nosso pais enfrenta Nossas paradas principais foram nos nucleos de atividades do Afroreggae. Comecamos pelo Cantagalo, onde o desenvolvimento maior e para formar artistas de circo. Assistimos a lindissimas apresentacoes de danca, malabarismo e etc, de onde inclusive, por tamanha dedicacao e sonho de dar certo, sairam alguns alunos para fazer turne com o Cirque du Soleil.

Ao fim das apresentacoes desse dia, um emocionante relato. Norton Guimaraes, 51 anos vai ao centro do picadeiro e inicia “Me emociono muitas vezes com esses meninos pela vida que eu levava. Ha dois anos atras, meu caminho era bem diferente…”. Ele conta suas historias: agressivas brigas dos pais, pouco carinho e atencao, trafico, assalto a bancos, prisao, lider de rebelioes em cadeia, Falange, Comando Vermelho… chorando, ele conta: “Meu coracao foi mal algumas vezes, mas me emociono. Num Natal, em visita a cadeia perguntei pra minha filha qual presente ela gostaria. A resposta foi que eu nunca mais voltasse para la”. E foi nesse momento que Norton decidiu que sairia da criminalidade. Ao sair em liberdade condicional, a condicao de ex-presidiario fechara todas as portas de emprego. Dai veio a fome e o desespero, apos um tempo conseguiu uma barraquinha, mas sem dinheiro nem para comprar oleo e batatas para poder vender algo, acabou apelando a Igreja, onde recebeu uma cesta basica depois de tempos sem comer. Em um dia, cruzou Junior. Na epoca ja devia seis meses de aluguel, e escutou “Na semana que vem va la na firma, vou pagar seus alugueis e te dar emprego”, com a condicao dele fazer o possivel para pagar de volta, atraves de dedicacao e transformacao. Guimaraes nos diz, ainda chorando, depois de completar um ano e sete meses de Afroreggae: “Quantos meninos nao estao perdendo a vida a essa hora? Ou se drogando? Eu acredito em voces, jovens empresarios, para ajudar a evitar e melhorar essas condicoes. Obrigado por estarem aqui”.

Para mim a frase mais certeira e forte em meio desse depoimento foi “Uma caneta na mao de um politico corrupto mata muito mais que qualquer fuzil”. Nao se deixem levar apenas pelo resultado final, sem enxergar de onde provem. Atencao a quem elegemos, e apos elegermos, que usemos o direito de exigir acoes como cidadoes. Nao podemos ser mero espectadores da corrupcao e desilgualdada. Chega de hipocrisia!

Nesse mesmo dia a noite, seguimos para um baile funk (Furacao 2000). E triste ver a conduta e letras agressivas. Algo voltado para diversao e distracao, acaba induzindo ainda mais a violencia.

Dia seguinte. Partimos para o Complexo do Alemao, um dos mais violentos lugares da cidade, considerado um dos maiores bunkers do Comando Vermelho. Logo na entrada da favela, nos deparamos com a policia especial, em um ambiente protegido por sacos de cimento e metralhadoras apontadas a cada esquina. Ao ingressar na “area de risco”, andamos com a sensacao de estar sendo observados a todo instante, e se torna normal assistirmos passar meninos do trafico carregando fuzis, e ate uma bazuca enorme (daquelas vistas apenas em filmes tipo “Comando para matar”) com os dizeres “CV” (Comando Vermelho) nela cravados. O comercio de droga rola solto, tudo ali, bem ao nosso lado. O que nos choca naquele momento e o dia a dia de milhares da populacao. E essa cena e logo no comeco, imagine nas regioes mais altas, aquelas as quais ninguem de fora consegue (ou deve) chegar.

No meio daquilo tudo, porem, conhecemos mais um nucleo do Afroreggae, com apresentacoes especiais, sorrisos, energia maravilhosa, esperanca, vitoria, sucesso, e o mais importante: oportunidades. E surge um novo relato marcante: de Dongo. Foi gerente geral de duas bocas, perdeu os tres irmaos no trafico, e sobreviveu tendo muitas perdas em combates e tiroteios. Numa gravacao de documentario cruzou com Junior e recebeu a oferta de um emprego por R$450. “Aceitei”, diz ele e complementa “Nao pelo dinheiro, e claro, fazia muito mais com as drogas, mas pela oportunidade. Nunca na minha vida eu tinha tido a oportunidade de um emprego”. E emocionado finaliza “Estou ha quatro anos aqui, e digo por todos: nao trabalhamos no Afroreggae, a gente vive o Afroreggae. E maravilhoso ser um multiplicador de tudo isso”.

Proxima visita: Parada de Lucas. Ali criancas e violinos emocionaram a todos. Assistimos a uma apresentacao, onde criancas nos mostraram atraves da musica como essa distancia de mundos e triste e injusta. Lindas, impecaveis, organizadas, concentradas e de postura perfeita, emitiram sons de musica classica com o delicado som dos violinos. Por ser algo que seria tao distante, uma crianca de favela tocar violino, foi de fato emocionante. Todos merecem a chance de acertar na vida.

Para finalizar, tocamos para a favela de Vigario Geral (onde o movimento comecou). A Vigario era famosa em todo o Brasil pela violencia, e agora reconhecida como um polo gerador de arte e cultura. Do inicio ao fim da visita, apresentacoes artisticas qualificadas. E o maximo ver a alegria de todos em se apresentar e poder mostrar o trabalho. Almocamos la mesmo na “Pensao da Chupetinha”. Uma mulher que passa a imagem de forte, durona e mandona, que recebeu o grupo como se fossem filhos. Fez um banquete de comida caseira super especial, e se emocionou e chorou ao se despedir de nos agradecendo a visita e carinho. Afinal, quem e que sendo de classe media, deixa seu fim de semana de lazer para visitar essas comunidades? E uma cena rara a aparicao de pessoas interessadas em conhecer melhor e de perto para buscar mudancas, e esse foi o reconhecimento dela para tal.

Passamos tambem pela apelidada “Faixa de Gaza”, rua que divide Vigario Geral e Parada de Lucas, e foi cenario da divisa entre a atuacao do Comando Vermelho (Vigario Geral) e Terceiro Comando (Parada de Lucas). Os moradores das comunidades eram proibidos de circular entre as duas favelas, e ate cachorro que cruzasse por ali era baleado. Justamente na divisa entre as duas comunidades ha uma escola, o que, consta, vitimou criancas em trocas de tiros. Hoje, com muito da ajuda do trabalho do Afroreggae, e possivel o transito tranquilo entre as comunidades.

A busca do grupo, e especialmente do CJE, e simplesmente diminuir as distancias, sensibilizar e mobilizar empresarios e pessoas que tem possibilidade de fazer algo, multiplicando cada vez mais essa forca e uniao. Temos todos nos uma missao nada facil e muito grande, mas sim, se todos derem as maos, temos grandes chances de evoluir o mundo em que vivemos.

Tenho certeza de que apesar de todos nos sermos os mesmos, estamos um pouquinho diferentes depois desse final de semana. E se torna absolutamente impossivel tapar os olhos para tudo o que vivenciamos.  Na missao de repassar o vivido e atuar em busca de mudancas, parabenizo a iniciativa do CJE, agradeco pela experiencia, e pelo Afroreggae, que completa agora 15 anos, carrego uma enorme e crescente admiracao”.


Por Fernanda Suplicy, Sao Paulo 30 de junho de 2008

Email: fernanda@fsuplicy.com.br

OBS: O Afroreggae conta com o apoio da Petrobras, Natura, Vale, Banco Real, Tim, e em breve inaugurara um centro cultural 24 horas.

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