“No Brasil, onde o genocídio da juventude negra é uma conjuntura que pode dilacerar o dia a dia de muitas mulheres e mães negras, como pensar na recusa da repetição dessa violência e, assim, criar outra possibilidade de existência para essas pessoas?” Tendo essa premissa em mente, Julio Angelo desenvolveu o espetáculo multimídia “Yerma em Banzo”, solo inédito dirigido por ele e interpretado por Lorena Lima, que revisita o poema trágico do artista espanhol Federico García Lorca (1898-1936), cuja tradução de trechos selecionados da obra original é assinada por Jasmin Sànchez.
Apresentando a criação de uma fabulação negra própria, a peça faz temporada de estreia no teatro 2 do Sesc Tijuca a partir do dia 1º de junho, às 19h.
Na obra original, o tema da infertilidade é anunciado por Yerma, uma mulher que sofre por não conseguir gestar uma criança, se tornando alvo de comentários da pequena comunidade em que vive e da desconfiança de seu marido. Já no contexto da montagem contemporânea, a atriz conduz o público a um processo que pretende regar a secura da personagem Yerma, ao mesmo tempo em que revela a germinação imprevisível de um novo imaginário para o lugar que coabitam. Toda a sua ação é acompanhada por dois espectros femininos, sendo o primeiro manifestado por áudios e, o segundo, em audiovisual.
A primeira é uma mãe que precisou se ausentar por tempo indeterminado para trabalhar, mas que busca guarnecer o filho por meio de sua voz e do cotidiano sonoro. A outra é a Tecelã, uma aparição misteriosa que conecta Yerma, a atriz e a mãe a uma série de casulos, uma semeadura construída com o desejo de brotar outras formas de existência para os seus.
“Na obra original, a personagem Yerma vive numa realidade que a limita em todas as instâncias. Mesmo imersa nesses ideais conservadores, enxergo seu desejo em gestar uma criança como uma possibilidade de experimentar uma mudança transformadora em sua vida”, diz Angelo.
O idealizador, dramaturgo e diretor da montagem considera que não há nada mais oportuno do que desenvolver uma nova dramaturgia em que ele coloca Yerma na encruzilhada de um mundo prestes a fracassar. “E aqui, o fracasso é visto como uma operação poética e estética contra os regimes da racialidade”, ressalta Angelo.
“Por isso, falamos de coragem. A coragem da personagem Yerma ao tomar as decisões que tomou; a coragem da atriz ao estar em cena denunciando assuntos que assolam nossas vivências enquanto população negra brasileira, ao mesmo tempo em que procura os caminhos de cura”, complementa Lorena.
Tradicionalmente compreendido como uma melancolia mortal que afligia os escravizados africanos, o banzo é uma palavra originada por povos bantos, o maior contingente de escravizados no Brasil e os agentes vitais da língua e cultura no território nacional. No projeto, ele é reconhecido como prática radical de criação e resistência de pessoas negras diante da relação morte e vida em solo estéril.
O desejo da montagem partiu de Angelo, que foi apresentado à obra de García Lorca em seu primeiro curso livre de teatro. “Dali em diante, mantive uma relação muito próxima à poética de Lorca e pude trabalhar com algumas de suas dramaturgias já como aluno de direção teatral na Unirio. Nessas vivências, pude traçar o plano de montar uma versão de Yerma ao lado da Lorena, a atriz em cena neste espetáculo. Com isso, uni essa intenção à minha pesquisa continuada em performatividades e teatralidades negras na formulação de ficções especulativas e fabulações”, frisa o dramaturgo.
“Isso não significa que, nessa discussão, consigamos sair do teatro com uma resposta absoluta. Essa nem é nossa pretensão. O que queremos é abrir janelas, instigar possibilidades, mesmo que uma delas seja a fabulação. E é nela que mergulhamos”, finaliza Lorena.
O curta-metragem da Tecelã terá exibição online ao longo da temporada presencial do espetáculo, podendo ser acessado através do link ofertado ao público e disponível nas redes sociais da produção.