Top

Simões de Assis apresenta exposição inédita de Ione Saldanha e Etel Adnan

Obra de Etel Adan – Foto: Divulgação

Ione Saldanha (Alegrete, 1919 – Rio de Janeiro, 2001) e Etel Adnan (Beirute, 1925 – Paris, 2021) foram duas artistas de trajetórias e nacionalidades diferentes que, apesar de nunca terem se encontrado em vida, constroem um diálogo formal em suas obras, dado que ambas se embrenharam pelo campo construtivo e abstrato da investigação visual. Essa aproximação entre suas pesquisas será apresentada na exposição inédita que a Simões de Assis apresenta, a partir de 30 de maio, na Casa Gerassi, no Alto de Pinheiros, em São Paulo.

Com curadoria de Luiz Camillo Osório, a seleção de pinturas que compõe “Ione Saldanha & Etel Adnan” coloca em evidência o interesse das artistas pela cor, pelo desenvolvimento de uma abstração intuitiva, de uma atenção ao ambiente e à busca de composições singulares. Além disso, a mostra é, ainda, um convite a uma imersão no modernismo, dado seu espaço de apresentação: a Casa Gerassi, projetada em 1991 pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, e que será o endereço temporário da Simões de Assis pelos próximos meses.

“Nesta exposição, que ensaia um primeiro diálogo entre estas duas artistas, temos ainda a articulação de suas obras com a arquitetura brutalista e oxigenada de Paulo Mendes da Rocha. Volumes abertos integram a forma construída com o entorno natural, diálogo este muito caro a estas duas artistas que cresceram e viveram perto do mar, das montanhas e da luz natural. Quiçá seja a procura pelas variadas formas de deixar a luz penetrar no espaço, seja pictórico, seja arquitetônico, o que reúne esta casa e estas obras”, comenta Osório.

Obra de Ione Saldanha – Foto: Divulgação

A galeria está desenvolvendo um trabalho contínuo para estabelecer novos diálogos e elaborar perspectivas alternativas sobre a história da arte brasileira e latino-americana, enquanto sincronicamente também percorre produções internacionais. O programa da Simões de Assis está voltado à apresentação de artistas consagrados no Brasil, bem como recuperar as produções a partir de diálogos transgeracionais, trans históricos e transnacionais, que permitem enriquecer e subverter as narrativas hegemônicas da história da arte, adicionando camadas de novas perspectivas. E é nesse campo de conhecimento que surge a exposição “Ione Saldanha & Etel Adnan”.

O encontro entre Ione e Etel, segundo Osório afirma no texto que acompanha a exposição, tanto uma quanto a outra trabalharam à margem dos movimentos de vanguarda, sem deixarem jamais de experimentar com as linguagens visuais.

“No caso de Etel, o trabalho com a poesia e com a escrita caminhou paralelamente à produção pictórica. Seus Leporellos desdobram e integram escrita e pintura, concebendo em páginas sanfonadas, articuladas no espaço, uma caligrafia cromática singular. Ione foi densificando a matéria cromática sobre a tela até saltar para o espaço nas ripas, bobinas e bambus. Ambas viveram até o limite em uma zona de transição entre uma sensibilidade moderna que fazia da pintura um exercício de depuração da forma visual e uma urgência contemporânea que afirmava o trânsito entre linguagens, suportes e materialidades poéticas”, diz o curador.

Obra de Etel Adan – Foto: Divulgação

Poeta, ensaísta e pintora nascida no Líbano, Eteel era filha de mãe grega e de pai otomano, um oficial de alta patente nascido em Damasco. Foi educada em escolas francesas no Líbano, e falava tanto grego como árabe com seus pais. Sua obra literária teve forte influência do poeta Arthur Rimbaud, e sua poesia incorporou imagens surrealistas e metáforas com experimentação formal baseadas na linguagem. Devido aos seus sentimentos em relação à guerra de independência argelina, Etel começou a resistir às implicações políticas da escrita em francês e mudou o foco da sua expressão criativa para as artes visuais, especificamente para a pintura.

Etel chegou à pintura a partir da escrita, da poesia, após ter estudado filosofia. Ela costumava dizer que a escrita vinha em linhas sucessivas, enquanto a pintura vinha de uma só vez, como um raio.  Ensinando estética na Califórnia, Etel foi incentivada a pintar pela colega professora Ann O’Hanlon e seus primeiros experimentos começaram com pastel, esfregando os palitos perpendicularmente no papel e criando áreas geométricas de cor que informaram seu estilo de pintura durante toda a sua carreira.

Durante sua estadia na Califórnia, Etel começou a concentrar-se na paisagem à sua volta, em particular no Monte Tamalpais, que era visível das janelas de sua residência. Em consonância, a relação de Cézanne com o Monte Sainte-Victorie, a montanha tornou-se uma referência imutável que ela pintou incessantemente, tentando capturar os seus estados de espírito e dinâmica em diferentes momentos do dia, sob diferentes estações do ano. O céu e o horizonte são representados como massas quadradas ou triangulares, formas piramidais em cores espessas e não diluídas. Formas circulares flutuantes feitas em amarelo, laranja ou verde e faixas de cor pura sugerem sol, mar ou areia, e recordam as sombras e a luz da sua infância em Beirute ou as paisagens da Califórnia.

Obra de Ione Saldanha – Foto: Divulgação

Ione, por outro lado, começou a pintar enquanto frequentava o ateliê do artista Pedro Luiz Correia Araújo, antes de se mudar para Paris e, então, frequentar a Académie Julian – onde muitos artistas acadêmicos e modernos do Brasil se formaram. Seus primeiros trabalhos já revelavam seu interesse pela geometria, pois as composições eram muitas vezes marcadas por uma representação estilizada de cenas e arquitetura comuns.

A artista desenvolveu um trabalho intuitivo, onde explorava diversos suportes como tela, papel, ripas de madeira, bambus, bobinas e, por fim, tocos de madeira empilhados. Com quase seis décadas de produção, sua obra foi marcada por rigor e coerência, com cada série de trabalho desdobrando-se rumo à próxima – partindo das pinturas figurativas iniciais dos anos 1940 aos trabalhos abstratos dos anos 1950, chegando às pinturas em suportes tridimensionais a partir do final dos anos 1960.

Como notaram diversos críticos, a verticalidade foi constante em sua produção e ela promoveu uma síntese abstrata de elementos arquitetônicos e urbanísticos populares.  Na década de 1950, Ione pintou principalmente paisagens urbanas, mas no lugar da temporalidade veloz e do constante ruído das grandes cidades modernas, a artista optou por retratar as fachadas silenciosas das históricas Ouro Preto e Salvador, criando a imagem de um passado pré-moderno.

Na década de 1960, em uma ousadia experimental, a artista deu um salto rumo à abstração. A paisagem urbana foi sendo desconstruída, antes do “derretimento” das cidades na tela, em um movimento de dissipação dos elementos geométricos sobre a superfície planar.

Segundo o curador, existe na obra de Ione um deslocamento do sentido hegemônico em que a geometria assume seu sentido mais puro, uma medida da terra – logo, uma medida da vida. Por fim, sua obra estendeu-se para o espaço. Ione instaurou uma pintura em campo ampliado que, ao saltar para fora da tela, ganhou espaço real e autonomia. Nas palavras da artista, “eu quis sair da parede, do limite da parede. E quis sair fora, quase que como uma espécie de liberdade maior”.

Na série “Bambus”, exibida na mostra, produziu esculturas antropomórficas que evocam a cultura brasileira popular e que aprofundam sua pesquisa cromática. Em outra série importante, “Ripas”, a artista desenvolveu um laboratório fragmentado e colorido em que tiras de madeira com tamanhos variados ficavam encostadas na parede, uma relação que jogava com a arquitetura do espaço.

Mais de Cultura