Foto: Claus Lehmann
A “Origem do Mundo”, peça inspirada em uma HQ editada em 25 países, estreia no teatro do Sesc Ipiranga em 14 de abril, a partir de reflexões sobre a hegemonia masculina na construção de tabus históricos sobre a vulva e a vagina.
Com dramaturgia e atuação de Luisa Micheletti e Julia Tavares, o espetáculo tem direção de Maria Helena Chira e potencializa a didática bem-humorada e sagaz do livro da artista gráfica e cientista política sueca Liv Strömquist.
Lançada em 2014 na Suécia, a graphic novel “A Origem do Mundo – uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado” foi editada no Brasil em 2018, no catálogo do selo Quadrinhos, da Cia da Companhia das Letras. Apinhado de ilustrações – num traço incisivo impresso em preto, branco e vermelho – e suscitando discussões sobre temas urgentes com muita informação histórica e a leveza de um sarcasmo impagável, a obra rodou o mundo, sendo editada em 25 países e atingindo, até o momento, a marca de mais de 100 mil exemplares vendidos.
Arrebatada pelo contato com esse anárquico libelo feminista, uma dessas leitoras, a atriz, apresentadora e escritora Luisa foi logo tomada pelo desejo de adaptar o texto da artista sueca para a linguagem teatral, com vistas de expandir a didática bem-humorada e instigante de Liv Strömquist para o público brasileiro.
Para a surpresa de quem teve contato com o livro apinhado de informações de potencial interesse pouco difundidas, vieram à tona constatações simbólicas como o fato de, somente em 1998, a cientista australiana Hellen O’Connell ter descoberto que o clitóris, bem mais que um “pequeno ponto” da anatomia íntima feminina, compreendia um órgão infinitamente complexo, com cerca de dez centímetros.
No livro, também é narrada a infame realidade de que a sonda Pioneer, lançada pela Nasa em 1972, endereçou a hipotéticos seres alienígenas representações dos seres que habitam a Terra com ilustrações que exaltavam o pênis masculino em detrimento da ausência figurativa da genitália feminina.
“Na opinião da Nasa, até os alienígenas se incomodariam ao serem confrontados com a imagem de uma vulva, e isto poderia causar mal-estar em outros planetas. A ausência da tal ‘linha’, que define a vulva, continua firme e forte em bonecas, manequins e ilustrações, indicando que a genitália feminina mais se aproxima de ‘nada’ do que de ‘algo em si’, ideia que foi reforçada por teorias psicanalíticas ao longo do século 20 e que serão vistas, por outro ângulo, na encenação”, explica Luisa.
Foto: Claus Lehmann
No processo de verter a força simbólica do texto original e do poder de síntese das ilustrações sem perder mão da mesma verve riot-grrrl da HQ, na linguagem cênica, outra entusiasta do livro de Liv, a atriz, roteirista e dramaturga Julia Tavares foi escalada para, a quatro mãos com Luisa, realizar um processo de carpintaria capaz de traduzir o manancial de informações presentes no livro.
“O livro traz algo muito novo. É como um ‘upload’ de consciência histórica feito em nível social por meio da arte, que sempre aponta caminhos. Como artistas, também estamos aqui para falar do nosso tempo e poder abrir novas trilhas de pensamento e de existência. Queremos furar bolhas, falar não só para as mulheres, porque isso é algo urgente. No Brasil e no mundo, precisamos criar essas pontes de diálogo, e o humor é a melhor forma de fazer isso, porque podemos dizer coisas duríssimas e divertir ao mesmo tempo. Ninguém quer sair de casa só para apanhar”, brinca Luisa.
Quando destaca a secular obsessão masculina por controlar tudo que envolve o corpo da mulher, Liv faz referência ao capítulo inaugural de “A Origem do Mundo”, excerto que inspira o primeiro de três atos da adaptação teatral brasileira, “A Vulva”, e entre menções a outros personagens, coloca em xeque até mesmo pensamentos equivocados de figuras luminares do século 20, como o do psicanalista Sigmund Freud (1856-1939) e do filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980): o primeiro, por ter disseminado a tese de que haveria duas formas distintas de orgasmo feminino, o vaginal e o clitoriano; o segundo, por ter estabelecido uma afrontosa analogia da genitália feminina como um reles “buraco”.
Recortes como esse, de um sucessivo absurdo histórico de hegemonia masculina sobre o domínio de interpretação da sexualidade feminina, são representados de forma camp e ganham impagável abordagem no dinâmico jogo de cena de Luisa e Julia, que assumem papeis diversos ao longo da montagem de “A Origem do Mundo”.
“Claro que um homem pode rir disso, mesmo que não tenha como se identificar. Mas ser representada nesse lugar é muito mais importante para a mulher, porque deixamos de ser representadas durante muito tempo. Veja a dificuldade de se achar dados sobre a vulva e o tempo em que o clitóris ficou perdido no mundo”, provoca Julia.
Majoritariamente feminina, a equipe a cargo da montagem se vale de recursos aparentemente parcos, mas que ganham potência no relance das intervenções de luz, no suporte de livros dispostos como objetos cenográficos, na trilha sonora de Nana Rizinni e em duas hilárias paródias musicais assinadas por Luisa e Julia, inspiradas em um clássico de Zezé Di Camargo & Luciano e no tema do musical “Os Miseráveis”, de Claude-Michel Schönberg. Um jogo sagaz, em que tudo converge para imprimir o mesmo ritmo frenético presente na HQ.