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Masp apresenta maior exposição do coletivo indígena MAHKU

Ibã Huni Kuin | Bane Huni Kuin, Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU), Sem título, 2017 – Foto: Eduardo Ortega

O Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) apresenta, de 24 de março até 4 de junho de 2023, a mostra “MAHKU: Mirações”, que ocupa o espaço expositivo no 2º subsolo do museu. Com curadoria de Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp, Guilherme Giufrida, curador-assistente do Masp e Ibã Huni Kuin, curador convidado, a exposição reúne cerca de 120 pinturas e desenhos que se originam tanto de traduções e registros de cantos, mitos e histórias de sua ancestralidade, como de experiências visuais geradas pelos rituais de nixi pae – que envolvem a ingestão de ayahuasca – denominadas mirações, palavra que dá título à exposição. A mostra tem patrocínio master do Citibank.

Criado oficialmente em março de 2013, dez anos antes da abertura da exposição no Masp, o surgimento do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU) remonta ao final da década de 2000, quando o coletivo iniciou, nos cursos de licenciatura indígena na Universidade Federal do Acre (UFC), seus trabalhos de tradução de cantos tradicionais do povo indígena Huni Kuin (Acre) em desenhos figurativos. Os primeiros registros do coletivo surgem, portanto, a partir do contato de populações indígenas aldeadas com a universidade, onde o grupo realizou sua primeira exposição, em 2011. No ano seguinte, após a visita do antropólogo Bruce Albert e do curador Hervé Chandès, os integrantes participam pela primeira vez de uma mostra de arte contemporânea, a exposição “Histoires de voir, Show and Tell [“Histórias para enxergar, ver e contar”] na Fondation Cartier pour l’art contemporain, em Paris, com um desenho ilustrando a capa do respectivo catálogo. A partir do movimento de introdução da sua visualidade ao universo das exposições de arte, os Huni Kuin se apropriam disso como estratégia de sobrevivência coletiva, de extensão de suas histórias e de seus mitos.

A exposição “MAHKU: Mirações” reúne cerca de 120 pinturas e desenhos em papel e tela, sendo três delas produzidas para a mostra, comissionadas pelo museu, além de esculturas, áudios com cantos, vídeo documentário e uma pintura de grandes dimensões elaborada diretamente nas laterais da icônica escada/rampa vermelha que interliga o 1° ao 2° subsolo do museu, seguindo, assim, a tradição do coletivo de realizar uma intervenção artística nos espaços expositivos que ocupam, criando uma conexão física e espacial entre mundos.

“O sentido geral do grupo MAHKU parece ser criar caminhos sustentáveis, desenvolvendo a política de se associar para se fortalecer. Isto é, interessa-lhes produzir e facilitar a passagem entre mundos, sempre sob o risco e a consciência das distâncias e assimetrias, que podem ser controladas e guiadas pelo poder da contação, pelos cantos, pelas imagens que produzem, pelo sentido ético da sobrevivência de seus modos de existência”, reflete o curador Guilherme Giufrida.

Este diálogo entre diferentes culturas é um dos temas centrais de algumas das obras do coletivo, especialmente aquelas inspiradas no mito de kapewë pukeni, o jacaré-ponte, traduzido, por exemplo, na pintura “Kopenawe pukenibu” (2022), de Acelino Tuin Huni Kuin. O mito narra a história da passagem dos Huni Kuin pelos dois continentes, através do estreito de Behring, em busca de sementes, moradia, conhecimento e terra. Depois de muita caminhada, o grupo se depara com um jacaré que, em troca de alimento, oferece ajuda para que eles possam atravessar para o outro lado.

O animal, avesso ao canibalismo, pede que o povo não mate um jacaré pequeno e que não lhe dê um deles para comer. No entanto, quando a variedade de animais se torna escassa, os Huni Kuin caçam o jacaré menor, traindo a confiança do jacaré grande, que submerge. “Foi aí que se fundaram as línguas diferentes entre parentes do outro lado do mundo. O mundo sempre divisão. Quem atravessa o mundo é quem já conquistou os conhecimentos. Por isso que a música do jacaré cantamos em nossas reuniões, para abrir os caminhos”, explica o curador convidado Ibã Huni Kuin. Por essa razão, a figura do animal foi escolhida pelo coletivo para ilustrar o logotipo original do MAHKU. Nele o jacaré aparece com duas patas caminhando e alimentando-se, enquanto pessoas munidas de estilingues e flechas passam sobre suas costas. Trata-se de uma cena fundacional que sugere que os Huni Kuin são produtores e produtos de pontes – entre os mundos indígena e não indígena, entre o visível e o invisível.

Outro ser muito importante para os Huni Kuin é a jiboia, considerada a maior dos xamãs, mensageira e ser da transformação. Normalmente o animal está presente em suas pinturas, circundando as composições, seja de forma a perambular pela imagem, seja literalmente em suas bordas, acompanhando os ângulos perpendiculares do quadro ou em formas geometrizadas estilizadas.

A jiboia é a figura central no mito de surgimento de nixi pae, “a bebida sagrada”, representada na tela do acervo do Masp “Yube Inu Yube Shanu” [“Mito do surgimento da bebida sagrada Nixi Paeä] (2020). O mito narra o encontro de Yube Inu, um homem indígena, com Yube Shanu, a mulher-jiboia, e a acolhida do povo da jiboia a Yube Inu, que é introduzido ao ritual de nixi pae. Ele ingere a bebida sagrada, experiencia as mirações e, mais tarde, aprende a fazê-la e entra em contato com as músicas da serpente. Por um momento de ciúme de seu sogro, devido ao seu conhecimento adquirido, Yube Inu é mordido e acaba adoecendo, mas, antes de morrer, retorna ao seu povo de origem e ensina a receita da bebida.

No ritual de nixi pae realizado pelos Huni Kuin e traduzido como “cipó forte”, “embriagante” ou “fio encantado”, se institui a experiência de encontro com a jiboia. Trata-se de um ritual central na vida desse povo, que envolve toda a comunidade – desde crianças de 6 anos de idade até adultos e idosos. As mirações, experiências visionárias que aparecem durante os rituais, são traduzidas tanto nos desenhos e pinturas do coletivo quanto nos cantos que integram o cotidiano da aldeia Chico Curumim, na Terra Indígena Kaxinawá, do Rio Jordão, onde vivem os artistas do MAHKU.

“O ritual de nixi pae tem como objetivo principal conectar mundos, rememorar a todos daquela relação dos Huni Kuin com a jiboia, renovar a intimidade do encontro e relembrar as razões do desencontro narradas no mito”, reflete Guilherme Giufrida. “Evocada através do canto, pela bebida e pela própria miração, a jiboia guia as visões por seus caminhos e percepções, fazendo os humanos atravessarem para o seu mundo, para o próprio universo dos mitos. O objetivo, no limite, parece ser o de estudar e ensinar os mitos, fazer as histórias do povo sobreviverem, se estenderem e se transformarem, preservando a integridade e o enraizamento daquela sociedade”, finaliza.

A mostra no MASP pretende, portanto, ampliar o conhecimento sobre e com os Huni Kuin, assim como a compreensão da contribuição de sua obra para a arte contemporânea, além de celebrar a longa relação de trabalho entre o coletivo e o museu. Desde 2016, os artistas do MAHKU participam de exposições do MASP, o que é constatado na grande quantidade de obras de diferentes períodos de sua produção comissionadas e depois doadas ao acervo do museu. Os artistas já participaram das exposições “Avenida Paulista” (2017), “Histórias da dança” (2020) e “Histórias brasileiras” (2022), além de uma oficina em “Histórias da infância” (2017) e dos projetos “Masp Renner 1ª temporada” (2018-2019) e “Masp Afterall ArtSchool” (2020).

MAHKU: Mirações integra a programação anual do Masp dedicada às Histórias indígenas. Este ano, a programação também inclui mostras de Carmézia Emiliano, Paul Gauguin, Sheroanawe Hakihiiwe, Melissa Cody, além do comodato Masp Landmann de cerâmicas e metais pré-colombianos e a grande coletiva “Histórias Indígenas”.

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