Cultura

Heloisa Jorge: “Empurrei portas fechadas a sete chaves”

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Atriz Heloisa Jorge – Foto: Pedro Napolinário

Além de um talento inquestionável, a atriz Heloisa Jorge, 38 anos, tem uma trajetória admirável. Natural de Angola e radicada no Brasil, ela estudou artes cênicas em Salvador e consolidou sua carreira em várias frentes, incluindo teatro, televisão e streaming.

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No ar como a pastora Dagmar na novela “Mar do Sertão”, do horário das 18h na Globo, ela caiu nas graças do público, que enxergou uma personagem fora dos estereótipos dos líderes religiosos, o que era exatamente a intenção da atriz com esse papel.

“Queria que vissem não só a religião, mas essa líder religiosa com uma mulher, com os dramas dela, que a gente tirasse do pedestal essa coisa do líder religioso estar acima de tudo e qualquer coisa. Queria trazer a mulher antes da pastora”, conta em entrevista ao RG.

Ainda neste ano, ela vai estrear duas produções para o streaming. “Fim”, do Globoplay, adaptação do primeiro romance da atriz Fernanda Torres, e “How To Be a Carioca”, aguardada série de Carlos Saldanha para o Star+. Em todos os projetos dos quais participa, o fio condutor que guia suas escolhas artísticas é o papel político do artista.

Foto: Pedro Napolinário

“Eu falo isso desde muito nova. Antes eu achava que era uma utopia de quem está começando, mas eu sempre achei que o artista tem uma função política. Cada vez mais isso vem se sedimentando dentro de mim. Cada personagem, projeto, contribuiu para influenciar em alguma coisa, questionar estruturas, lançar algumas sementes.”

Ela provou que sua utopia de adolescente era na verdade um sonho possível. Como mulher negra e estrangeira em um país que não é sempre tão receptivo e cordial quanto a imagem que é vendida, Heloisa conseguiu abrir caminhos em um mercado concorrido e, muitas vezes, cruel.

“Fui desenvolvendo ferramentas emocionais para ir driblando todos esses desafios que não são poucos e você deve imaginar por que. Fui driblando desafios dia após dia, quase que esmurrando portas, olhando para o lado e percebendo que eu fazia um pouco mais força do que minha colega que não vinha de um contexto como o meu.”

Foto: Pedro Napolinário

A força para empurrar portas, abrir janelas e construir uma nova casa que a permitisse ocupar o espaço que a pertence veio do olhar atento para sua ancestralidade.

“Tem a ver com minha criação, as referências que tenho, as mulheres da minha família. Não são mulheres que fizeram faculdade, que tiveram poder aquisitivo, mas que conseguiram construir coisas grandiosas com o mínimo que elas tinham. Minha mãe estudou ate a quarta série, a mãe dela a entregou quando ela tinha 12 anos para ir trabalhar em uma casa de portugueses na capital de Angola, e minha mãe conseguiu criar 5 filhos sozinha. Se essas mulheres passaram pelo que passaram e conseguiram chegar nos lugares que chegaram, eu que tenho acesso a um monte de coisa não vou conseguir?”, reflete.

Apesar da história inspiradora, Heloisa rejeita mais uma vez os estereótipos. Não quer ser vista como uma guerreira e empoderada. “A gente vai recebendo esses rótulos e de repente está num pedestal de alguém inatingível, de alguém que suporta tudo. Fui entendendo que esses rótulos eu não queria, não suporto tudo, quero ser frágil.”

Leia a entrevista completa abaixo.

RG – Como foi sua reação ao receber o convite para fazer a Dagmar em “Mar do Sertão”?

“Mar do Sertão” foi um presente inesperado. No início, fiquei preocupada com o convite, por ser uma pastora, pelo momento político que a gente estava vivendo no Brasil. Depois virei uma chave na minha cabeça e conversando com o Mário Teixeira, autor da novela, a gente entendeu que seria uma ótima oportunidade para mostrar um outro lado quando se fala dessa religião, quando se fala de intolerância, de respeito a uma fé. E aí a gente foi traçando um outro caminho. Foi um trabalho muito coletivo e colaborativo. A Dagmar me desafiou bastante, mas ao mesmo tempo me colocou num outro lugar. Nunca tinha feito uma novela das 18h, tudo com muita leveza e bom humor. É o trabalho que eu fiz na televisão que mais me aproximou do teatro.

RG – A Dagmar tem conquistado o público. Como você vê essa recepção?

Existiu receio desde o início. Primeiro que estamos falando de religião, que é um tema controverso. Depois do Brasil, um país super conservador e intolerante. A gente ainda tem muito chão para trilhar para encontrar um caminho de mais respeito. Eu achava que a Dagmar seria um personagem polêmico, tive medo. Depois entendi que estavam pensando como eu, de desconstruir uma imagem e de trazer o que a gente conseguiu trazer com a personagem, mas inicialmente tive medo, sim.

Tinha a coisa dos embates da igreja católica com os evangélicos. Mas quando a gente entendeu que era possível levar com muito humor, com muita leveza, fomos conseguindo brincar. Os embates entre a Dagmar e o padre Zezo, a gente levava como se fosse casal que está junto há muito tempo, que briga por qualquer coisa, inclusive a louça que está na pia, para diluir e deixar um pouco mais leve.

RG – Você acha que sempre teve uma veia cômica? É algo que veio do teatro?

No teatro, tive muito mais oportunidade para me experimentar na comédia. No audiovisual, me chamam muito para fazer drama. Por isso que foi uma grande surpresa o “Mar do Sertão”. Foi um dos projetos que mais me diverti na TV aberta.

Foto: Pedro Napolinário

RG – Uma das coisas que vi o público dizer é que você faz uma pastora que não é caricata, no mínimo uma das primeiras a serem feitas assim. Como foi a preparação e construção dessa personagem?

A primeira coisa foi essa luz vermelha que acendeu na minha cabeça quando o convite veio. Religião é um tema muito delicado, assim como política. A gente está falando da TV aberta, as pessoas engajam com as histórias que a gente está contando. Queria que vissem não só a religião, mas essa líder religiosa com uma mulher, com os dramas dela, que a gente tirasse do pedestal essa coisa do líder religioso estar acima de tudo e qualquer coisa.

Aí fui entender, pesquisar pastores, pessoas que humanizam a religião. Cheguei a ir num culto e fiquei quietinha assistindo. Queria trazer essa coisa da mulher antes da pastora. Vi muitas pessoas falando que queriam ser amigas da Dagmar, é muito bonito receber esse retorno e reconhecimento. Acho que valeu a pena ter investido num lugar mais humanizado menos hierárquico. Até porque o mais importante era mostrar a trama dela, essa coisa da maternidade, a história dela.

RG – Como você enxerga o papel do streaming, principalmente nacionalmente, hoje?

O streaming apareceu na minha carreira no auge da pandemia, a gente não sabia como ia fazer para continuar trabalhando. Eu fui para o Uruguai fazer “Sentença”, série da Amazon.  Eu lembro que a gente ficava no quarto 14 dias confinados. Fui na cara e na coragem. Entendi o streaming nesse momento como a boia de salvação da classe artística. Fiz uma advogada que nunca tinha feito, nunca tinha feito uma personagem que me desafiasse tanto. Acho que é um lugar muito democrático artisticamente falando, vi atores que ainda não tinha visto na TV aberta, personagens sendo retratados sem tantos estereótipos.

RG – Você parece gostar de papéis que te desafiem. O que gostaria de fazer daqui para frente?

Eu não gosto de ficar prospectando. A Dagmar é uma personagem que se você me perguntasse há um tempo atrás talvez eu não me interessasse, mas a personagem e o projeto me surpreenderam. Esse lugar da surpresa é muito bom para o ator. Eu espero conseguir me experimentar em lugares que ainda não entrei, quero fazer personagens complexos, profundos, que sejam distantes da minha personalidade.

RG –  Você enxerga um fio condutor, um propósito ou desejo maior que guia suas escolhas artísticas?

Eu falo isso desde muito nova. Antes eu achava que era uma utopia de quem está começando, mas eu sempre achei que o artista tem uma função política. Cada vez mais isso vem se sedimentando dentro de mim. Cada personagem, projeto, contribuiu para influenciar em alguma coisa, questionar estruturas, lançar algumas sementes. Acho que a arte é uma ferramenta política. Os personagens que fui pegando ao longo da carreira foram me conduzindo para esse lugar.

RG – A concepção geral é que o Brasil é um país muito receptivo para estrangeiros, essa foi a sua experiência também?

Não foi, acho que o que foi mudando foi a maneira como eu fui me colocando no mercado, quase que empurrando portas fechadas a sete chaves. Claro que a gente está caminhando para um lugar muito mais saudável e democrático. Falta muito chão, mas já está melhor do que quando comecei. O imaginário de que o Brasil é um país super receptivo é uma imagem vendida para o mundo todo.

O Brasil é um país encantador, de pessoas que sabem acolher, mas tem um outro lado muito desafiador porque as coisas não são ditas às claras. Essa coisa do Brasil cordial, acho que quem consegue falar com muita clareza que não é tão cordial assim é quem chega de fora com toda expectativa.

Eu fui desenvolvendo ferramentas emocionais para ir driblando todos esses desafios, que não são poucos, e você deve imaginar por que. Fui driblando desafios dia após dia, quase que esmurrando portas, e olhando pro lado e percebendo que eu fazia um pouco mais força do que minha colega que não vinha de um contexto como o meu.

RG – Quando você reflete sobre essa trajetória, qual consequência você enxerga que te trouxe? Resultou em um “empoderamento” de alguma forma, para usar uma palavra da moda? 

Não falo essa palavra, nem guerreira. Esses rótulos que a gente vai recebendo e de repente está num pedestal de alguém inatingível de alguém que suporta tudo. O que foi acontecendo é que fui entendendo que esses rótulos eu não queria. Não suporto tudo, quero ser frágil, quero ter voz, me sentir confortável para me colocar. Esses rótulos me assustam um pouco e hoje em dia não me contemplam. Trocaria empoderamento por autoconhecimento. É um lugar que me sinto mais confortável, até porque autoconhecimento te dá um poder.

RG – E como você conseguiu desenvolver esses recursos emocionais que precisou? Muita terapia?

Nunca tinha feito terapia na minha vida até recentemente. Comecei a fazer porque entrei num processo de depressão na pandemia. O trabalho sempre foi um pilar na minha vida, uma boia de salvação, e acho que em alguns momentos me impediu de pensar na minha vida pessoal, nas questões que eu tinha passado, a pandemia veio e cobrou essa dívida.

Eu acho que tem mais a ver com a criação, as referências que tenho, as mulheres da minha vida, as mulheres mais velhas da minha família. Não são mulheres que fizeram faculdade, que tiveram poder aquisitivo, mas que conseguiram fazer coisas e construir coisas grandiosas com o mínimo que elas tinham.

Minha mãe estudou ate a quarta série. A mãe dela a entregou quando ela tinha 12 anos para ir trabalhar em Luanda, na capital de Angola, em casa de portugueses. E minha mãe conseguiu criar cinco filhos sozinha. Eu tenho elas como referência, se elas passaram pelo que passaram e conseguiram fazer o que fizeram, chegar nos lugares que chegaram, eu que tenho acesso a um monte de coisa não vou conseguir? Acho que essa é minha premissa, para além da terapia.

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