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Multiartista e performer, Gama Higai quer que você tire as máscaras

Gama Higai com máscara, acessório essencial em sua performance – Foto: acervo pessoal

Gama Higai é uma figura carimbada entre a moda e a cultura paulistanas. Multiartista e performer, ele está frequentemente presente nos eventos mais descolados. E, mesmo em meio a tantas outras pessoas cheias de personalidade e estilo único, é difícil não notá-lo. Ele está sempre de máscara – não aquela à qual estamos todos acostumados tapando nariz e boca -, mas no estilo carnavalesco, quase veneziano, cobrindo a parte superior do rosto e deixando apenas os olhos à mostra.

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Com essa informação, a dúvida que paira na mente de muitos é: por que ele usa máscara? Curiosamente, essa é a última pergunta que passava pela minha cabeça quando estava pensando no que conversar com ele. Na verdade, só me toquei que o acessório é uma peculiaridade dele quando me disseram: você precisa descobrir por que ele usa máscara.

É que a máscara faz tão parte dele, ele a usa com tanta verdade e normalidade, que foi difícil para mim perceber que era algo considerado excêntrico sobre sua figura. Destaco aqui essas duas palavras porque essa dualidade abriu os caminhos da nossa conversa. Explico:

Ao ler esta matéria com Gama para a Bazaar em 2020, sobre personagens considerados excêntricos, decidi que o que eu realmente queria investigar era: existem pessoas excêntricas de fato ou o que existem são pessoas que não têm medo de expressar sua singularidade?

“Sabe que eu também fico pensando nisso?”, ele me conta. “Eu sou realmente um excêntrico ou só tenho coragem de ser eu mesmo? Não me importo de ser colocado tanto como excêntrico como uma pessoa que tem coragem de ser ela mesma. Adoro as duas opções, mas me questiono qual das duas é.”

Gama Higai em editorial para a Bazaar em fevereiro de 2020 – Foto: André Passos, com beleza de Paulo Liman

Falamos por duas horas, chegamos a poucas conclusões, como são as melhores conversas. “Acho que é difícil dizer porque existem tantas pessoas que se reprimem tanto que nem conseguem se permitir reconhecer suas particularidades. Então é difícil saber se existem pessoas que naturalmente se encaixam nos moldes sociais de comportamento ou se tudo que existe são pessoas que fingem muito bem”, ressalto. E é aí que entram as máscaras.

“São as pessoas que colocam a máscara em primeiro plano, não eu. São elas que apontam o dedo, querem que eu tire, olham torto na rua”, diz. Realmente, o que ele faz é nada mais do que despertar nos outros esse espanto, interesse e questionamento. E, em muitos casos, o fetiche. Seria o incômodo das pessoas com a máscara dele uma resistência em derrubar suas próprias?

“A questão da máscara vem trazendo uma parte mais estética, como se eu tivesse com um boné, é algo que eu me sinto bem. Só que junto com essa coisa estética, que é algo tão simples, há vários questionamentos que vêm de fora. ‘Por que você está de máscara? Qual o mistério?’ Às vezes, eu nem sei qual o questionamento que vai despertar na pessoa que está vendo aquilo. Então, eu construí minha performance em cima desses questionamentos e do tabu do fetiche. Você acaba ensinando para a pessoa sem ter que dizer muito.”

Então, sim, aqui está a primeira resposta: as várias máscaras que ele usa são performances artísticas sobre fetiches, feitas a partir de uma extensa pesquisa de hábitos e de materiais. Mas, paradoxalmente, também é sobre inspirar as pessoas a se conhecerem e removerem suas máscaras.

“Mais do que eu ter fetiche nos elementos da minha performance, é a vontade de levar aquilo para outros ambientes e pessoas.” E não seria esse justamente um dos papéis centrais da arte? Escancarar o que passa batido no dia a dia, levantar questionamentos e, em última instância, gerar transformações. Daí vem seu título autodeclarado: multiartista “lado B”. Aquele segundo lado do disco de vinil, com mais espaço para experimentação – e segundo, vários músicos, o lado mais autêntico.

Performance com balões – Foto: Andres Costa

Essa é ideia que norteia todas as suas performances. Em sua mais recente, ele entra em um balão de látex. “Por incrível que pareça existe um fetiche nos balões. Trago aquele questionamento de onde está o erotismo nisso, onde provoca cada um, por que isso é reservado a um lugar tão fechado. Muitas pessoas têm fetiche em algumas coisas e não sabem porque nem sabem que isso existe”, explica. “Mas pode ser, por exemplo, que a pessoa não veja fetiche, que ela descubra um medo, que desperte uma perturbação pela questão do oxigênio.”

Ele só consegue fazer esse trabalho pelos outros porque já aceitou suas estranhezas mais profundas. Mas como alguém consegue chegar a esse nível de autoaceitação e autocelebração? Depende, mas no caso de Gama foi uma expressão da criatividade surgindo a partir da crise. Pense numa panela de pressão que ferve tanto que transborda.

Performance com balões – Foto: Andres Costa

“Nasci em Santo André, uma cidade metalúrgica, proletária, em que só tinha um caminho: fazer mecânica e virar engenheiro. Fui derrubando isso e fazendo outras coisas. Sou formado em mecânica, química e gastronomia. Achei que tendo um reconhecimento numa profissão mais tradicional e estabilidade financeira teria felicidade. Consegui reconhecimento e salário digno em gastronomia, trabalhei fora do país. Quando voltei para o Brasil, voltei com a certeza que não era sobre isso, mas sobre fazer o que me dá prazer, construir minha trajetória artística.”

“Foi um desespero junto com coragem. Desespero de não conseguir entrar na norma e coragem de falar que não sou a norma e não quero ser. Quando eu aceitei que eu era diferente, toda a minha vida se resolveu. Pessoal, profissional, financeira, amorosa”, conta. “Sempre fui meio esquisito, sempre fiz algo de diferente, eu sempre amarrava o tênis de um jeito diferente, customizava roupa.”

A ideia de ter coragem para ser quem se é não é nova, mas ele a materializa de uma forma, digamos, única – e motiva cada um a encontrar a sua. É disso que esta influenciadora australiana estava falando quando escreveu: “Vi uma borboleta e chorei porque ela estava cumprindo seu destino”. É isso que David Bowie quis dizer com esta frase famosa: “Envelhecer é um processo extraordinário no qual você se torna a pessoa que sempre deveria ter sido.” É isso que faz e inspira a fazer Gama Higai, e por isso ele é tão relevante. Para além das máscaras.

O nome, é claro, ele quem escolheu – e, sim, está registrado em seus documentos. Não quis saber o que significa. Nem notei que era diferente.

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