É perpassando a figura de três elementos do mar profundo, a calunga grande dos povos africanos, que é contada a história de “12 Anos ou A Memória da Queda”, espetáculo inédito criado pela dramaturga Maria Shu que estreia no dia 16 de novembro, às 19h30 no CCBB RJ (Centro Cultural do Banco de Brasil).
As alegorias utilizadas pelas diretoras Tatiana Tiburcio e Onisajé, que também assina a versão final do texto, entram na cena através dos personagens de Carmo Dalla Vecchia, Dani Ornellas e David Júnior, o trio de protagonistas que traduz em imagem, movimento e discurso, dentro de certo realismo fantástico, os arquétipos da história original, “12 Anos de Escravidão”, escrita por Solomon Northup.
Idealizada por Felipe Heráclito Lima, a montagem aborda uma temática ainda pulsante nos dias atuais: a escravização dos corpos negros.
“Reconstruímos essa história a partir da compreensão atual de quem é esse sujeito negro e o que significa essa liberdade pra ele hoje a partir dessa trajetória. Porque não é interessante trazer algo datado, mas enxergar dentro dessa narrativa o que a gente conseguiu de vitórias e avanços e o que ainda precisamos romper enquanto imaginário sobre este sujeito, enquanto discurso deste mesmo sujeito, enquanto existência e perspectiva de futuro. O quanto ainda precisamos avançar a partir desta base constituída e apresentada lá trás”, observa Tatiana.
A soteropolitana Onisajé antecipa o posicionamento cênico da dupla de direção que forma com Tatiana. “No que tange à temática, está em cena a nossa análise e posicionamento crítico, ético, político, filosófico e poético-estético acerca da escravização. Ele se traduz na compreensão de que a escravização se sofistica, se disfarça e ainda se mantém muito viva entre nós. Os aportes das diversas opressões encontram na escravização um lugar de deságue”, ressalta.
Onisajé acredita que, mesmo os espectadores que não leram o livro e nem viram o filme, dirigido por Steve McQueen em 2013, encontrarão uma argumentação cênica que aponta o quanto ainda são criados discursos de inferiorização para justificar a neoescravização. “A questão racial é a pauta mais urgente a ser enfrentada no Brasil. Um País que concebe e ainda alimenta argumentações e posicionamentos racistas não poderá avançar como nação”, defende.
Guiando a estética e a alma da montagem estão as referências da ancestralidade, da filosofia e mitologia negra. “A partir dessa compreensão revisitamos a história de Solomon entendendo os pontos críticos da narrativa em relação aos avanços no discurso racial na prática no nosso dia a dia. Ainda vivemos processos de escravização de diversas formas. Processos diretos – nos interiores deste nosso país – e de formas sutis, mas muito bem compreendidas por quem os sofre nos grandes centros urbanos. É preciso revisitar essa história e reconstruí-la a partir de um olhar feminino, negro, matriarcal, poético, lírico, onírico”, aposta Tatiana.
A ideia de levar aos palcos a história clássica que, em adaptação para o cinema, foi vencedora de três premiações no Oscar, partiu de Felipe Heráclito Lima. Ao se deparar com uma pesquisa sobre a quantidade inacreditável de trabalhadores em regime análogo à escravidão em fazendas de búfalo da Ilha de Marajó (PA), o artista questionador percebeu o quanto o assunto, até então por ele ignorado, precisava ser debatido.
“Senti a necessidade de falar sobre questões urgentíssimas como essa, porque é enorme a quantidade de pessoas iludidas por uma boa oportunidade de trabalho que, por fim, é submetida a um regime desumano dentro de algumas distorções realizadas dentro do capitalismo – que não pode se impor sobre os valores humanos. Isso mexe muito comigo, e pensei nesse projeto como uma plataforma de falar de todos estes assuntos que precisam ser vistos e debatidos a partir do nosso passado colonial nesta sociedade escravocrata”, resume.
Retornando ao teatro, onde começou a carreira que já soma 27 anos, Dani Ornellas vê na montagem um encontro sincrônico com profissionais com os quais sempre teve desejo de trabalhar, dentro e fora de cena. “A vibração de cada um que compõe essa equipe me faz sentir voltando para casa. Estar em cena nesta peça é muito profundo, porque traz histórias muito próximas a situações que eu vivencio como mulher preta artista brasileira. Como minha personagem diz em cena, ‘Sou eu, mesmo quando eu não estou lá. É você, mesmo quando você não está lá. É o seu ancestral’. Este espetáculo é um convite pra que as pessoas pensem sobre isso”, percebe a atriz, para quem reconhecer a situação desigual e cruel da população negra já é um motivo pra mudança, e torce que o público saia refletindo sobre o que se passa na peça.
Para Dalla Vecchia, falar sobre este tema no palco “é ter a chance de participar de um ajuste, de uma retratação, de assumir responsabilidades, de tocar o coração de outros para pensarmos nos nossos preconceitos. De entender que, antes de dizer que não somos preconceituosos, devemos pensar nos gestos, nas falas, nos momentos que podemos estar ferindo a liberdade e magoando pessoas de uma maneira naturalizada pela nossa história”, pondera o ator, que dividiu os ensaios com as gravações da novela “Cara e Coragem”.
O atual momento do País foi determinante para a montagem contar com David Júnior no elenco. “Estamos tocando numa ferida social, econômica, estrutural do nosso país que precisa ser falada. Me sinto muito realizado como artista pelo tema e pela equipe técnica incrível que conseguimos reunir neste trabalho. Enquanto tivermos pessoas sendo descartadas da sociedade apenas por representar o seu lugar de negro, com todo este discurso de ódio, invisibilidade e descaso com os corpos negros precisaremos colocar estes assuntos em voga. É importante estar em cena no momento em que estamos vivendo, falando dessas mazelas antigas e, ao mesmo tempo, tão atuais na nossa sociedade”, pontua.