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“Carne de Segunda”: peça aborda violência doméstica

Foto: Flávia Viana

Surgida a partir de uma notícia de jornal, cuja manchete dizia que uma mulher do interior havia destrinchado o marido, a peça “Carne de Segunda” chega à cena teatral embalada por mãos femininas. No dia 05 de agosto, às 19h, a montagem escrita por Marina Monteiro e dirigida por Natasha Corbelino sobe ao palco do Teatro Ruth de Souza, no Parque das Ruínas, sob interpretação de Tatjana Vereza.

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A peça conta a história de uma moradora de uma cidade pequena que decide ser açougueira, profissão incomum para mulheres. Em um lugar onde todos sabem da vida de todos, não é segredo que ela vive fugindo do marido por conta da violência doméstica. Ao longo da peça, a plateia descobre a trajetória dessa mulher açougueira, que durante muito tempo usou seu instrumento de trabalho para destrinchar carnes.

“Da notícia, me chamou a atenção o fato de que todos os vizinhos relataram que o marido a perseguia em volta da casa com um machado e ninguém fazia nada, mas para condená-la estavam todos a postos. Fiquei com isso na cabeça e os elementos do texto foram chegando. Um misto de tragédia com grupo do WhatsApp, fofoca de vizinho com coro grego. Os tempos se misturando. Curioso é que não salvei a matéria e nunca mais consegui encontrá-la. Não sei mais se foi delírio, mas foi daí o início. Acho que essa questão da sutileza e delicadeza misturadas com a força vêm muito no trabalho com a linguagem, buscando uma dramaturgia que ofereça ambiguidade, abertura, espaço para a atriz, para diretora, para o público”, sintetiza Marina sobre a dramaturgia desenvolvida a partir de sua ideia.

Foto: Flávia Viana

Construído sob uma narrativa de muitas vozes que observam a vida da personagem, o espetáculo levanta questões necessárias, como a de atravessar um sistema que de antemão não consegue garantir para as mulheres as mesmas premissas que para os homens; como forjar novas profissões para todas; ou como furar a bolha conservadora que, geração após geração, direciona as mulheres para os mesmos futuros. E estas pautas, intrínsecas ao texto, vieram ao encontro de Tatjana justo quando ela precisava de uma força que a lançasse em movimento para produzir e atuar em algum projeto.

“A peça mostra uma mulher que toma as rédeas de sua própria vida apesar de tudo que falam sobre ela: que é bruta, violenta, safada, gorda, feia, louca… Pensa aí, quais são as maneiras de silenciar uma mulher potente? Apesar de um solo, não estou sozinha. Existem muitas e milhares de mulheres que precisam pautar as suas próprias vidas. Espero que o público entenda que quanto mais se fala, se mostra e se atua contra a violência doméstica e de gênero, mais mulheres serão protegidas e livres para construir suas trajetórias de vida, inventar e sonhar seus próprios futuros. Trazendo essas questões para a cena contemporânea, criamos um motor potente para a desconstrução dessa estrutura machista e patriarcal que nos impõe tanta opressão e silenciamento”, pondera Tatjana.

Sendo a notícia um delírio da mente ficcionista ou não, o que mais despertou o desejo em contar esta história foi o fato de a ficção ser capaz de recontar a realidade transmutando-a e movendo-a de seu lugar comum. Não se trata de uma tragédia cujo destino é se cumprir, se trata de uma possibilidade de pergunta e, quem sabe, através da arte, expor em praça pública as peças podres de nossa carne social. Embora a dramaturgia tenha surgido com dados perceptíveis no cotidiano, para a equipe majoritariamente feminina da montagem a resposta à tanta covardia não é destrinchar a carne de ninguém, mas talvez as estruturas ruídas de nossa sociedade.

Foto: Flávia Viana

“Mais do que um ato de resistência, acho que nossa peça é um ato de exaustão, exaustão explícita, é além do limite que aguentamos. Estamos morrendo? Não, estamos sendo mortas. Mas não vamos morrer para sempre, não é possível! Repito: estamos exaustas, mas não vamos parar o movimento. Em um País que traz incontáveis notícias de feminicídio por dia, dirigir teatro criando com esse universo poderia ter dilacerado demais a gente. Eu não posso simplesmente dizer que ‘ser mulher e estar viva no Brasil’ é meu maior desafio. Esta fala seria uma violência de raça e gênero que eu, mulher branca e cisgênero, estaria reproduzindo. Criar táticas para cuidar de nós enquanto nos contextualizamos nos nossos privilégios me parece um bom começo para eu me perguntar como foi dirigir essa peça”, finaliza Natasha.

Teatro Ruth de Souza – Centro Municipal Parque das Ruínas: Rua Murtinho Nobre 169, Santa Teresa, Rio de Janeiro.

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