Caco Ciocler interpreta dono de bordel no filme “As Polacas”, que retrata casos de tráfico de mulheres judias para o Brasil entre os séculos 19 e 20 – Foto: Edu Rodrigues
Os galãs podem até conquistar o coração do público, mas são os vilões que costumam despertar cobiça entre os atores. “Eles geralmente têm uma complexidade psíquica mais desafiadora do que os mocinhos, que costumam ser mais ‘chapados’, então são personagens que fascinam”, conta Caco Ciocler, que interpreta Tzvi, dono de bordel no filme “As Polacas”, que está em fase de gravação no Rio de Janeiro.
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Com direção de João Jardim, o filme, baseado em histórias reais, conta casos de mulheres judias traficadas para o Brasil entre os séculos 19 e 20. Para viver o antagonista em uma produção que trata de uma das piores consequências do machismo e exploração das mulheres, Ciocler teve que entender suas próprias raízes patriarcais.
Caco Ciocler e o diretor João Jardim nos bastidores do longa “As Polacas”, que está sendo gravado no Rio de Janeiro – Foto: @iqueesteves
Só isso já é uma tarefa da qual muitos se esquivam. Mas não apenas olhar de frente sua sombra, ele teve de trazer à superfície os lados mais obscuros de um homem criado em uma sociedade que os ensina que eles têm mais valor do que as mulheres.
“Cada personagem que você recebe são chances de visitar coisas em você. Eles vêm em momentos específicos para que você pesquise como seria olhar o mundo através do olho do personagem”, conta o ator. “Você desenvolve musculaturas emocionais que na vida a gente escolhe deixar mais adormecidas. Eu tive que reconhecer a violência que eu carrego, o tipo de raciocínio machista, torto, equivocado. Eu escolho não ser um homem violento na vida, mas eu tenho violência, então eu abri espaço para essa musculatura”, completa.
Em um esforço que parece impossível, Ciocler teve que humanizar um personagem que é quase caricatural de tão cruel. “Ele acha que tem razão. É um tipo de raciocínio torto, equivocado. Isso eu trouxe para o personagem: como é esse cara achar que ele está certo, que está fazendo o bem para as meninas em que bate?”
Ao estampar os valores distorcidos do personagem, ele espera contribuir para preencher um dos papéis mais nobres da arte: o de fomentar mudanças sociais. “Acho que o filme pode ser importante pelo seu avesso, um filme tão violento que pode servir como arma de escancaro desse machismo para que a gente possa transformar [essa realidade]”, explica.
Longa “As Polacas” é baseado em casos reais de tráfico de mulheres judias para o Brasil | Foto: Reprodução/Instagram/@cacociocler
O longa marca um de seus primeiros projetos depois do fim do vínculo contratual com a Globo, emissora com a qual teve laços estreitos por quase três décadas. “Como toda mudança de contrato de relação, aliás, como tudo na vida, tem coisas boas, coisas ruins, coisas que assustam e coisas que confortam”, compartilha o ator, que ainda está na casa gravando a terceira temporada da série “Unidade Básica”, na qual também dirige dois episódios.
Como ele lucidamente pontua, se este momento em que se afasta da Globo, por um lado, significa uma perda de segurança, por outro, “a segurança não necessariamente faz bem ao artista”. Em outras palavras, as pausas e os vazios importam. São eles que abrem espaço para a criatividade efervescer e gerar bons frutos. Ciocler bem sabe: tem uma prova disso em sua própria trajetória na emissora, com o remake de “Pantanal”, onde interpretou o psicólogo Gustavo na edição repaginada de 2022 do clássico aclamado em 1990.
“Eu sempre fui um defensor dos tempos e das pausas. Sempre achei que em algum momento as pausas, o respiro e a profundidade fossem voltar com força total, assim como um vinil. Sempre acreditei que a nova geração ia perceber que é possível a pausa, é possível a natureza. Acho que ‘Pantanal’ apostou nisso, correndo o risco de não dar certo”, comenta. Mas deu: a novela bateu recordes de audiência e chegou a registrar os melhores números para o horário desde o sucesso “A Dona do Pedaço”, de Walcyr Carrasco, em 2019.
“A gente estava muito viciado na distração da vida, buscando coisas na televisão que nos distraíssem da vida. Queríamos preencher o vazio da vida com divertimento, mas a arte não tem a ver com isso. Ela nasce justamente das fendas entre as coisas, das incertezas, do não preenchimento. É aí que se entra em contato com coisas profundas”, afirma.
Essa vontade de investigar o ser humano em seu ínfimo também é o que levou o ator e diretor à faculdade de biologia, que deve concluir em 2023. A escolha pode parecer peculiar para alguém acostumado às grandes questões filosóficas que a arte se propõe a discutir, mas foi a própria relação com a atuação que o colocou nesse caminho. “Eu estava um pouco cansado de entender o homem através da arte, eu estava querendo entender o homem um pouco mais na sua concretude, biologicamente. Senti vontade de botar o pé um pouco mais no chão”, diz.
Se é na insegurança que se constrói algo novo, os papéis e projetos interessantes que Ciocler tem tocado provam que coisas boas podem acontecer quando encaramos as mudanças de peito aberto. “Pode ser uma coincidência, mas pode ser uma abertura para o universo que está me proporcionando essas coisas.”