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“A Idade da Peste” aborda racismo e disseca o mal-estar da branquitude

Cássia Goulart em “A Idade da Peste”- Foto: Cacá Bernardes

O que aconteceria se uma mulher branca de classe média alta realmente se descobrisse branca? A que custo isso se daria, e qual o discurso possível dessa constatação? Foi a partir dessa provocação que o dramaturgo Reni Adriano e a atriz Cácia Goulart conceberam o solo A Idade da Peste”, que acaba de estrear no Auditório do Sesc Pinheiros, às 20h. 

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Em cena, Senhora C. assiste ao assassinato do filho da empregada, encurralado pela polícia, dentro da sua casa de classe média alta. O episódio desencadeia um profundo exame de consciência em que os desejos inconfessados da branquitude emergem como um marcador racial aterrorizante, questionando a própria possibilidade de justiça em um mundo feito à imagem e semelhança dos brancos.

Mas engana-se quem espera da atuação de Cácia uma personagem branca se autoelogiando como “antirracista” ou performando mea culpa e comiseração. “Senhora C. não tem esse complexo de princesa Isabel; não pretende ser reconhecida como a “branca redentora” da causa. Pelo contrário: ela é consciente da infâmia do lugar racial que ocupa, sabe que esse lugar é indefensável”, reflete Cácia, que também assina a direção da peça. Para ela, o risco da abordagem pelo viés escolhido seria a tentação de redimir a personagem, ou cobri-la de elogios por sua consciência racial. “Mas a desgraça dela é saber que não basta ter consciência: ela está, como branca, submersa na indignidade, uma vez que reconhece seu lugar na branquitude, mas é incapaz de desocupar esse lugar privilegiado”, conclui.

Cássia Goulart em “A Idade da Peste”- Foto: Cacá Bernardes

Para o dramaturgo, esse assunto costuma ser violentamente rechaçado por pessoas brancas, porque instintivamente reconhecem que subjaz a esse tema-tabu uma dose dolorosa de vergonha e infâmia. “Mas o status da branquitude se perpetua e se atualiza justamente nesse silenciamento”, pondera. Além disso, o autor, que é negro, ironiza que escrever para uma atriz branca funcionaria como uma espécie de mascaramento para que brancos possam ouvi-lo de boa vontade. “O fato de sermos um país em que negros não têm um dia sequer de descanso só é possível ao preço de que os brancos tenham uma dignidade muito frágil. Eu quero questionar essa dignidade frouxa dos brancos. Debater racismo com negros é fácil; o que eu quero é racializar os brancos em cena e situá-los no lugar de suas responsabilidades”, crava Adriano.

Escrita por um dramaturgo negro, portanto, para atuação de uma atriz branca, a peça mobiliza e tensiona os marcadores identitários raciais de modo a evidenciar que, antes de ser um “problema de negros”, o racismo é um flagelo de brancos. O exercício de franqueza de uma mulher branca sobre a perversão de seu próprio status identitário torna A idade da peste uma assombrosa reflexão em que pensar o racismo é um debate sobre o mal.

Sesc PinheirosRua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, SP.

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