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Marcia de Moraes apresenta a exposição “Matriz”, na Galeria Leme

Marcia de Moraes – Foto: Thomas Rera

Por Maiara Tissi

Conhecida por criar desenhos em grandes dimensões, com combinações de linhas e cores intensas, Marcia de Moraes apresenta a exposição individual “Matriz”, sua produção mais recente de trabalhos inéditos. A mostra permanece em cartaz na Galeria Leme de 7 de abril a 26 de maio de 2022 e conta com texto crítico da curadora Ana Carolina Ralston.

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Em seu corpo de trabalho, assim como nas obras apresentadas na mostra, Marcia desenvolve uma pesquisa em desenho, na qual suas composições abstratas originam-se de um vocabulário imagético retirado de cenas cotidianas e experiências que atravessam o corpo da artista. Linhas que remetem a folhagens, ossaturas e fluidos corporais se sobrepõem em um mesmo plano e figuram pela ausência da cor.

Embora os trabalhos da artista apresentam questões relativas ao corpo feminino, esta série é a primeira em que aparece uma sensualidade mais evidente. “Ao mesmo tempo em que esses desenhos parecem rios, sulcos, e correm criando um circuito vital, as cores e as formas fálicas parecem penetrar o vazio do papel. Existe um erotismo nessas obras que insere Marcia de Moraes em uma tradição de artistas mulheres, como Georgia O’Keeffe e Maria Martins, que aborda o feminino por uma perspectiva feminista”, destaca Ana Carolina Ralston.

Conversamos com exclusividade com a artista, que conta sobre suas inspirações e o que espera despertar no público a partir desta exposição.

Foto: Filipe Berndt

Em suas pinturas, parece haver um jogo entre presença e ausência que preenchem a tela. Conta um pouquinho sobre seu processo criativo e como chegou a estética que apresenta hoje em “Matriz”?

Sempre que chamam meus desenhos de pinturas, eu penso que, cada vez mais, as fronteiras entre as linguagens das artes estão esfaceladas, e acho ótimo. Pois qualquer coisa que seja rígida e dura, me incomoda. Mas eu prefiro chamar minha produção de desenhos, pois uso papel e as imagens são formadas pelo acúmulo de linhas traçadas com lápis grafite e lápis de cor. E há ainda uma outra questão: na pintura com tinta, o artista tem a liberdade de passar outra camada de tinta por cima, e no lápis de cor isso não é possível. Além do fato de que com o lápis eu tenho apenas uma ponta para controlar, e no pincel há dezenas de cerdas que nunca consegui domar (muito pelo fato de que eu nunca quis…).

Desta forma, os desenhos da atual exposição na Galeria Leme fazem parte de uma série, na qual eu escolhi uma única imagem que aparece em todos os dez trabalhos. Daí o título da exposição: “Matriz”. Essa imagem veio de uma grande folha seca caída no chão, que vi há uns meses e guardei a cena mentalmente. Ela aparece sozinha nos desenhos e foi se modificando ao longo do processo. Assim, se compararmos o primeiro e o último desenho veremos que há uma semelhança da forma, porém já há inúmeras alterações. A repetição da imagem foi me mostrando pequenas alterações e fui levando essas mutações para os próximos desenhos.

Com relação à ausência e presença que você fala, eu acredito que essa dubiedade esteja presente em toda a exposição. Seja de forma concreta, como as nuances entre o preenchimento do lápis e os espaços vazios deixados em branco, seja na compreensão do desenho, que suscita a dúvida: ele é apenas uma folha ou há a presença de algo mais? Eu digo que essa é a exposição mais erótica que já fiz, pois o que não se vê em um primeiro momento, se vê em um segundo, e são muitas penetrações e pétalas vaginais. Daí posso citar aqui uma grande referência para essa exposição para a artista Georgia O’Keefe (1887 – 1986), pintora norte americana, cujas pinturas ficavam entre o erótico e o universo da natureza.

Você vê em seu trabalho os reflexos de suas inspirações, e também como se diferencia dessas inspirações? Quais artistas brasileiras mais preenchem sua caixinha de referências?

As minhas referências são sempre artistas mulheres. Tanto nas artes visuais, como na literatura, cinema, dança, teatro, arquitetura. Eu olho atentamente para a produção feminina, pois acho que somos muito mais complexas do que os homens e tenho interesse em ver como outras mulheres se posicionam no mundo e lidam com seus universos psíquicos. Obviamente há uma desvantagem gigante em termos de representatividade em todas estas áreas artísticas. Há muito mais homens, sempre. Infelizmente. Então, apontar que minhas referências são sempre outras mulheres, não deixa de ser um posicionamento político e feminista importante.

Há um “gap” na formação cultural de todo mundo, pois as artistas mulheres não nos são mostradas na mesma quantidade que nos mostram a produção masculina. Então, eu acho que é preciso honrar as mulheres artistas que vieram antes de mim. Maria Martins (1894-1973) é uma escultora brasileira cujo trabalho sou fissurada. Há muito de suas formas tentaculares aqui nos meus desenhos. Eu acho que as referências são extremamente importantes e nunca achei que são óbvias para quem vê o meu trabalho. As referências não são para os espectadores do meu trabalho verem, elas são para eu ver, mastigar, deglutir, misturar na minha complexidade e daí devolver para o público dentro no meu desenho, de forma subentendida.

Foto: Filipe Berndt

No ano passado, o CCBB recebeu sua exposição “A Terceira”. De qual maneira “Matriz” se estabelece como uma continuação desse trabalho?

A “Terceira” foi uma exposição grande, com muitas obras feitas ao longo de mais de dois anos. Por conta da pandemia a exposição foi adiada algumas vezes e tive bastante tempo para prepará-la. Ela tratava de um tema que a psicanálise explora bastante que seria, em linhas gerais, “aquilo que não cabe dentro da gente”, como o sentimento de angústia, por exemplo, fortemente impulsionado pela pandemia de Covid-19. Eu interpretei que, no meu caso, o que não cabe dentro de mim vai parar no desenho. Então a mostra tinha um viés psicanalítico forte, porque meu trabalho como um todo tem essa relação com a psicanálise.

Desta vez, para a exposição Matriz, eu não quis que o foco fosse esse, mas sim algo mais ligado a ambiguidades, à natureza e ao sexo. Daí a relação com a psicanálise existe, claro, mas mais escondida. E eu também fiquei muito empenhada em mostrar uma produção visualmente diferente da exposição do CCBB, pois elas acabaram ficando muito próximas, uma no final de 2021 e outra no início de 2022. Eu não quero que o público veja mais do mesmo, quero que ele se surpreenda ao ver a “Matriz”. Vamos ver se vai dar certo.

A Galeria Leme é um ponto de compartilhamento artístico bastante importante em São Paulo. Quais aspectos desse ambiente e das pessoas que lá estão colaboram para a exposição?

A Galeria Leme tem um espaço arquitetônico belíssimo, além de ser povoada por pessoas que adoro e com as quais trabalho há mais de dez anos. Então, eu me sinto muito acolhida e à vontade lá. Será minha quinta exposição com eles, terceira neste espaço. O melhor de lá é a liberdade que eu tenho para propor coisas novas, pois há uma segurança da parte deles com o meu trabalho e isso me deixa muito livre. Será a primeira vez que eu vou mostrar uma série fechada de desenhos com um mesmo tema e, quando contei essa ideia, o pessoal de lá abraçou o projeto e me incentivou a seguir na pesquisa.

Foto: Filipe Berndt

Por fim, quais sensações você gostaria de deixar em quem for visitar a exposição “Matriz”?

Acredito que a exposição Matriz é muito mais pensada no prazer do público do que no meu. Eu quis pensar uma série, pois acredito que as dez obras juntas vão formar um conjunto interessante que pode suscitar no visitante reações que vão desde um impacto e deleite visual até as dúvidas que falei acima, sobre o que de fato está desenhado.

Meu processo de elaboração dos desenhos foi sofrido, pois fiquei seis meses desenhando uma única forma, vista sob diferentes pontos de vista, uma coisa bem obsessiva. Então não foi um prazer absoluto, foi mais uma teimosia de que, se eu conseguisse concluir os dez desenhos, o público poderia gostar de ver tudo junto. Agora que eu concluí os dez,  é com o público, joguei a bola para eles. E eu vou desenhar outras coisas… vamos ver o que vai sair daqui para frente.

Galeria Leme – Rua Valdemar Ferreira, 130, Butantã, São Paulo, SP.

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