Cearense, radicada em São Paulo, Georgina Castro, teve muita dificuldade para se firmar como atriz e roteirista. O apoio da família só veio após já estar na TV. Teve de aprender a usar uma linguagem neutra, longe do seu sotaque natural. “Essa questão do sotaque é algo delicado porque é a identidade de uma região. Por mim, gostaria de mantê-lo até hoje, exatamente como era quando saí de lá.”
Precisou virar roteirista para entregar papéis que sabia que nunca ocuparia em virtude de ser mulher, negra e nordestina. Ninguém melhor que ela sentiu a marginalização na pele para dar lugar de fala a mulheres, negros, gays e outros grupos. E é assim que Georgina se vê. Por isso, sua luta, que antes era individual, passou a ser de todos. Porque ninguém melhor que roteiristas negros, na TV e no cinema, para dar oportunidade a grupos excluídos. “Tem bastante gente que fica de fora, mas é boa, e só fica de fora por ser mulher, gay, negro”, explica.
RG levou uma papo com a atriz roteirista, leia a seguir a a entrevista.
Georgina, com quantos anos você se interessou pela atuação? E como foi esse processo até chegar à TV? A sua família sempre te apoiou?
Fui uma criança bem artística, mesmo na época não tendo ninguém da família nessa área. Eu escrevia “novelinhas” e distribuía os papéis para a molecada na rua, devia ter uns 10 anos. Aos 16, comecei profissionalmente por meio de um curso de teatro iniciante no Teatro Municipal de Fortaleza, Princípios Básicos de Teatro. Daí não parei mais. Toda minha trajetória artística no Ceará foi totalmente voltada para os palcos. Antes de sair de lá, nunca tinha feito nada de vídeo, nem mesmo teste. Só quando fui morar em São Paulo que esse campo se abriu para mim. Já estava morando há seis meses lá quando passei na seleção para o longa “O Céu de Suely”. E foi a partir dele que minha trajetória se desenvolveu no cinema. Antes da novela “Um Lugar ao Sol”, eu havia feito algumas participações em séries como “Hebe”, “Sob Pressão” e “Supermax”. O diretor artístico de “Um Lugar ao Sol”, que também havia me dirigido em “Hebe”, apresentou meu portfólio de trabalhos no cinema para a direção de dramaturgia da Globo e aí veio o convite para novela. Sobre a aceitação da minha família, foi um longo processo… Quando eu morava em Fortaleza, meu pai não aceitava e a minha mãe ficava no meio tentando apagar os nossos incêndios. Só quando fui embora para São Paulo que ele realmente começou a me apoiar e admirar. Ele gravava todas as entrevistas de TV, colecionava recortes de jornais… E é assim até hoje. Meu pai é meu maior fã.
Cearense nata, o seu sotaque ajudou ou atrapalhou? E hoje você ainda tem sotaque após tantos anos fora?
Essa questão do sotaque é algo delicado porque é a identidade de uma região. Por mim, gostaria de mantê-lo até hoje, exatamente como era quando saí de lá. Mas a gente sabe que, dentro da realidade do mercado audiovisual, muitas vezes, ele pode nos limitar. Nunca fiz aulas de fono, mas quando comecei no cinema, passei a me observar e tentar trazer uma certa neutralidade à fala. Quando alguém conversa comigo e não sabe que sou nordestina, costuma dizer que não consegue identificar de onde venho. Ao mesmo tempo, mantenho a essência da melodia da fala cearense que sempre estará em mim. Filmo com certa frequência no Nordeste e é muito fácil eu acessar o sotaque, basta pisar na minha terra ou falar com minha família por telefone.
Em 2010 você teve um relacionamento com um alemão, mas sequer fala alemão. Quanto tempo durou? E como isso aconteceu?
Essa foi uma história bem louca (risos). Na época que fiquei na Alemanha, aprendi algumas palavras, mas já esqueci. Inglês fluente também não falo. Mas ele falava um português regular. A gente se conheceu no Réveillon de 2010, no Rio de Janeiro, por meio de amigos em comum. Ele era amigo de um amigo de infância da Andréia Horta e estava de férias aqui. Ficamos juntos e seguimos a relação à distância – a ideia era ele vir morar aqui depois. Nos relacionamos assim durante um ano, e, nesse meio tempo, ele veio me ver algumas vezes. Até que atravessei o oceano para vê-lo. E aí vivi uma novela… Ele morava em um povoado de 352 habitantes, na fronteira com a França. O choque cultural para mim foi enorme. Sou uma pessoa supercomunicativa e eu não conseguia dialogar com a família dele, os amigos… Quando eu e ele nos desentendíamos, era com um dicionário do lado; e aí a gente parava e começava a chorar ou rir (risos). Fiquei dois meses na Alemanha. Antes de partir, deixei de presente para ele um “livro” que escrevi com nossa história, com ilustrações e dentro de uma caixa com chocolates e pétalas… com toda aquela “breguice” quando se está apaixonado (risos). Quando voltei para o Brasil, ainda ficamos um tempo juntos até que não vimos mais perspectivas de futuro e terminamos. Guardo com carinho essa história.
Você começou a escrever para ocupar lugares de fala ou papeis para os quais nunca era convidada? Há pessoas que não enxergam isso com bons olhos. Você não acha que isso pode ter sido uma forma de levar vantagem em relação a outros atores? Ou isso é realmente necessário?
No começo, sim, escrevia para ter oportunidades de desempenhar papéis que raramente me eram oferecidos. Mas, no decorrer da minha trajetória com a escrita e de acordo com que eu ia entendendo como atriz, principalmente em relação aos rótulos que geralmente colocavam em nós, artistas pretos, meu olhar foi se ampliando. Não fazia sentido tentar essa mudança apenas para mim. Queria criar oportunidades também para os outros, burlar esse sistema do racismo estrutural tão embutido nas artes. Exatamente por isso, não vejo, de forma alguma, que seria “levar vantagem” perante outros atores. Minha luta, hoje, não é apenas individual e, sim, coletiva. Acredito que atores que se autoproduzem abrem um leque maior de possibilidades.
Como é ser uma roteirista negra, mulher e nordestina no Brasil?
O lugar de escrita e direção ainda são novos na minha carreira e poder ocupar esses espaços do outro lado da tela, certamente, me dão uma maior autonomia para a narrativa que quero contar. Dentro do audiovisual, várias pesquisas mostram a discrepância de papéis relevantes e protagonizados por mulheres, principalmente pretas. Somos uma grande minoria. Sobre ser negra, é ainda maior a dificuldade de ocuparmos certos espaços. E esse foi meu ponto de partida para começar a escrever, pois ninguém sabe contar nossas histórias como nós mesmas contamos. As coisas só vão realmente chegar em um lugar de igualdade quando o mercado da TV e do cinema inserirem roteiristas e diretores pretos em suas produções. A coisa tem que mudar por dentro. O cinema nordestino está em uma efervescência incrível, premiado no mundo inteiro. Para mim, que estou iniciando como roteirista e diretora, é um sopro de esperança, um horizonte de possibilidades que se abre.
Como roteirista, vi que você tem optado por empoderar pessoas no seu elenco em curta e longas-metragens que não têm espaço ou lugar de fala. É fácil fazer isso?
Tem bastante gente que fica de fora, mas é boa, e só fica de fora por ser mulher, gay, negro.
Explica para gente a real necessidade disso, pois muitas pessoas não entendem.
Não é nada fácil. Quando se foge dos padrões em que as produções se limitaram a mostrar e o grande público se habituou a assistir, parece que quem fica de fora, está na margem, no limbo. E não acho que seja por rejeição dos telespectadores, ao contrário. Cada vez mais, vejo o público clamando por mudança e o mercado, muitas vezes, se recusando a ouvir e não inserindo representatividades. Estou em fase de captação do meu primeiro longa, “Hamster”, e o núcleo central é todo formado por mulheres. Para mim é fundamental que elas sejam diversas: uma é negra e nordestina, outra de descendência asiática, outra é indígena e uma é imigrante africana. Tem uma personagem que é lésbica e que eu gostaria muito que uma atriz trans a representasse, mas não como trans e, sim, como uma mulher; que é o que ela é. E torço para que essa diversidade não seja só para falar diretamente sobre preconceito ou como geralmente é representada. Vivemos situações e temos sentimentos universais como todo mundo. E, tanto a sociedade quanto o mercado, ainda insistem em nos colocar dentro de caixinhas.