A cantora Mônica Salmaso é um dos principais e mais importantes nomes da MPB e, nos 12 discos que lançou e 3 DVDs, há uma identidade que se impõe além de sua voz. Com vários trabalhos clássicos gravados em 25 anos de carreira completados neste ano – ela também fez 50 anos de idade em 2021 -, a artista tem muita coisa na manga para apresentar, como dois discos, um gravado no Japão, com Guinga, e outro com o português José Pedro Gil. Ou seja, 2022 promete ter muita Mônica em shows presenciais e virtuais.
Falando nisso, ela não se rendeu à pandemia e, durante o processo de quarentena e reclusão, lançou dois projetos digitais muito importantes: “Caipira Online” e “Ô de Casas” [este último com 171 vídeos gravados e disponíveis no YouTube], com os quais apresentou parcerias de peso.
Com o projeto “Caipira Online”, que é uma continuidade de seu disco “Caipira”, ela mostrou as raízes da música dos interiores com nomes fortes, mas quatro deles tiveram suas apresentações canceladas por conta da Covid-19. O que fazer, então, para contemplar os shows cancelados? Mônica teve a ideia de realizar lives com os convidados, cada um gravando à distância sua parte, para depois serem editadas e mostradas em um trabalho que exibe toda a força da cantora. O término do projeto foi marcado pela parceria com ninguém menos que Rolando Boldrin, com ela diz, um troféu, mas tiveram também o trio Conversa Ribeira, Paulo Freire e Sérgio Santos. Todos eles disponíveis no YouTube da cantora, que é uma chance para ver e rever.
Com suas apresentações digitais, Mônica conquistou um número enorme de seguidores e viu suas redes saltarem. No Instagram, pulou de 12 mil para 113 mil seguidores. No facebook, de 8 mil para 147 mil. E o seu canal do YouTube já conta com mais de 42,2 mil inscritos.
Sobre o momento atual do Brasil no que se refere à cultura, ela é direta, acha que é uma resistência. “Fazer cultura no Brasil é resistir. Neste momento é um ato político por si… Estamos em um momento realmente muito triste, muito duro, que eu nunca imaginei viver. Eu achei que a gente já havia aprendido algumas coisas do País com a ditadura militar, é muito assustador ver que a distorção do discurso leva a lugares muito sombrios, assustadores”, diz.
Leia a seguir a conversa que Mônica teve com RG via Zoom.
Você completou 50 anos de idade e 25 de carreira neste ano, como avalia toda a sua trajetória?
Eu acho que eu não teria parado para avaliar se não fosse a pandemia, sabe? Essa paralisação forçada me fez olhar para trás. Eu tenho um tipo de careira que cada trabalho consome toda a atenção, são 25 anos que é assim. Quando eu não estou cuidando da minha vida pessoal, filho, família, eu estou viabilizando um trabalho profissional. Eu nunca tinha parado para olhar para trás e ver a linha do tempo, eu sempre estava ali no agora. Aí teve essa paralização e essa brincadeira do “Ô de Casas”, que virou uma brincadeira séria, numerosa. E quando eu vi, as pessoas que estavam fazendo esses vídeos eram de gerações diferentes, de tempos de carreira diferentes, e com todas elas eu tenho alguma coisa a ver, foram poucas as pessoas que eu não conhecia, a maioria eu já tinha trabalhado, e o convite se tornou uma coisa mais viável, tive a confiança de fazer até para o convite ser aceito. Então eu entendi o tamanho desse percurso. Tem essa coisa também de número redondo, de eu ter feito 50 anos e metade disso ser o tempo do meu trabalho. É interessante, foi uma coisa de autoavaliação mesmo.
Quais são seus principais projetos durante esse período, há destaques? Ou os momentos mais marcantes da carreira?
É muito difícil, porque eu tenho uma ligação muito profunda com cada um desses trabalhos, eu estou envolvida com tudo, não só chegar e cantar, mas a prestação de contas, a planilha, tudo. Sem ser injusta com nenhum deles, pois todos têm um tamanho muito importante para mim, mas o disco “Afro-Sambas” não só foi uma presente gigante – que eu era uma cantora estreante dividindo com um músico extraordinário que é o Paulo Bellinati, que naquele momento já tinha uma carreira enorme -, mas que me ensinou coisas de como cantar como pilotar uma carreira, ele fazai tudo ali, com um fax e um computador, e eu assistia a tudo, ele delineou o futuro seguinte. Eu conheci uma geração de artistas que eram parceiros do Bellinati que acabaram me levando para outro lugar, então considero a primeira pedra dessa estradinha.
Depois o “Voadeira”, e o prêmio Visa de MPB, que era um prêmio da rádio Eldorado com os jornais “O Estado de São Paulo” e o “Jornal da Tarde”, que criaram uma visibilidade que saía da cidade de São Paulo, foi mais uma pedrinha ali.
O “Iaiá” foi o primeiro que eu gravei no Rio de Janeiro e o primeiro pela Biscoito Fino, e que eu ganhei de presente a versão em LP. Então é um disco importante para mim e que também é comemorativo nesse momento, tem uma música dele [“Menina, Amanhã de Manhã”] agora na novela das 21h da Rede Globo [“Um Lugar ao Sol”]. É engraçado, algumas voltas e nozinhos se deram nesse período.
O “Corpo de Baile” é um disco muito importante porque caiu na minha mão um material inédito dessa parceria minha com Paulo César Pinheiro, que eu demorei dez anos para fazer acontecer. Ele virou uma turnê dos sonhos, com cenografia de Walter Carvalho, com o Quarteto de Cordas viajando junto, uma coisa de um tamanho muito especial para mim.
E tem o “Caipira”, que é um disco que começa a acontecer no início de 2000, quando eu me dei conta do que era esse universo, e é quando eu saio do meu mundo e abro para falar do Brasil do meu jeito. Não é uma tese de mestrado sobre a música caipira, mas ele amplia, tem ali uma liberdade criativa que eu tenho que ter como intérprete, ele tem todo um olhar sobre esse universo.
Como surgiu a ideia de fazer o disco “Caipira”, o objetivo era fazer homenagens?
Eu sou uma pessoa da cidade de São Paulo, mas que desde que aprendi e comecei a vislumbrar coisas culturais do Brasil, profundas e de vários interiores, isso sempre me emocionou. Eu não nasci nesse ambiente, muito pelo contrário, eu sou da cidade grande, maluca, só que o tanto que isso me move e me emociona me deu a noção de que isso me pertence, é um identidade cultural e emocional relacionadas a isso. Então, desde o “Trampolim”, que foi o primeiro disco de escolha de repertório, seguido de “Afro-Sambas”, eu já tinha ali um olhar para isso. No começo de 2003, eu fiz um show e convidei o Paulo Freire, violeiro, pesquisador, compositor. Eu fiz uma pesquisa nesse universo, que eu ja tinha tateado, mas que eu mergulhei. Agora estou no interior de São Paulo, desde a pandemia, estar em um lugar que você vê toda a simbologia, bichos, gente, o jeito de falar, de escutar, o tempo, tudo isso tão diferente da cidade de São Paulo, me deu recursos para poder homenagear essa visão, esse eu brasileiro de um jeito com mais propriedade do que eu tinha antes. É uma homenagem, é um olhar. Eu acho muito curioso que esse universo seja tão vasto, com tantas diferenças, sotaques, mas que ao mesmo tempo tenha um lugar-comum, sabe? Desse brasileiro no Sul, no Sudeste ou no Nordeste, ou ainda nos litorais, tem um carga de humor, de religiosidade, uma esperteza na vida de criar soluções. Isso acontece no Brasil inteiro. Então tem um jeito brasileiro, que tem acentos diferente, no samba é um acento, na música caipira é um acento, na música dos interiores é um outro acento. No estado de São Paulo são “países” com acentos diferentes. Quando eu vi a música caipira, eu vi o humor que tem no samba, com outro tempero, mas está lá; a religiosidade, a resistência, a relação com a vida, a relação com o outro, a sacanagem, tudo isso só que com outros temperos.
Você acha que esse disco foi um start para o projeto “Caipira Online”?
Totalmente. O “Caipira Online” nasce a partir de um problema. O disco “Caipira” sai e desenhamos uma turnê, patrocinado pela Lei Rouanet, primeiro pelo Bradesco e depois pelo grupo Icatu, quando veio a pandemia. Nós fizemos uma série de apresentações, mas faltavam quatro shows, agendados para acontecer, que foram adiados, mas eu não queria abrir mão, eu queria realizar esses shows. Então adiamos para 2021 com a esperança de que tudo abrisse a e agente pudesse voltar a trabalhar. Só que não foi assim. E eu pensei que não podíamos perder esses quatro shows, então decidimos desenhar uma solução para realizar, e foi justamente no formato digital, adaptado para este momento da pandemia. Só que eu não poderia fazer quatro lives iguais, com o mesmo repertório. Então bolamos esse desenho, que seriam quatro conteúdos digitais diferentes. Eu entrei em estúdio por três dias com os músicos que fazem a turnê do “Caipira” e gravamos 32 músicas, que foram divididas em quatro partes. Aí, a outra metade desses conteúdos, a ideia foi convidar alguém, que formam quatro convidados – trio Conversa Ribeira, Paulo Freire, Sérgio Santos e Rolando Boldrin, esse último nosso troféu, por ele ter topado. Então, cada um desses episódios tem uma homenagem a um conteúdo que foi feito à distância. É um tipo do “Ô de Casas”, mas um pouco melhorado em termos de tecnologia. O “Caipira Online” é totalmente em decorrência do “Caipira” e da pandemia. Deu um trabalho danado, mas eu fiquei feliz.
Como nasceu o projeto “Ô de Casas”, com o qual você gravou 171 vídeos?
Isso foi um remédio, uma cachaça. Nós viemos para cá [interior de SP] quando começa a pandemia, os primeiros casos e tal, e ficamos na dúvida de quanto tempo isso ia durar. Aqui era tudo melhor, casa maior, mais barato, o custo de vida menor, somos dois músicos [ela e o marido, Teco Cardoso], e pensamos como a gente ia sobreviver nessa história maluca. A primeira coisa foi ver uma agenda inteira de trabalho cancelada, eu fechei a agenda e não olhei mais para não ficar triste. A segunda coisa que caiu a ficha foi que, além de parar de trabalhar, a gente ia parar de fazer música com outras pessoas em qualquer grau. E eu sou cantora, eu faço música com pessoas. Então eu descobri as lives no Instagram. Eu era bem crua, entrei em uma live de um amigo, e apareceu “Mônica entrou”, e eu achei aquilo demais, porque mostrava quando a pessoa entra. E se eu tiver que sair, será que aparece? Porque ele poderia achar que eu não gostei e tal (risos). Aí eu escrevi que estava escutando e que achando muito bonito, e alguém disse para me convidar para a live, e ele me chamou. Nós até tentamos cantar juntos, mas a internet sempre tem um delay [atraso de tempo entre as intervenções], e isso me deixou pensativa, à noite pensei que não seria possível cantar com ninguém, o que eu vou fazer, como vai ser isso? Então falei com o Teco [marido] de gravarmos dois vídeos separado e juntarmos numa edição, e disse: “Vou até brincar, chamar de ‘Ô de Casas’”. De casas porque era mais do que uma, cada um estava na sua, e a gente também ia visitar as pessoas que iam assistir. Foi feito no iPad, no iPhone, editado em um app gratuito, tudo muito artesanal. Aí foi uma coisa meio surto, eu fui até o 74 [vídeos] fazendo todos os dias. Eu acho que estava todo mundo tão agoniado, e com tempo, precisando, porque virou isso, meu remédio e minha cachaça, eu não conseguia parar, e as pessoas começaram a ver e a indicar, e ter comentários, e a função que isso começou a ter na minha vida e de um monte de gente.
Mas você imaginou que iria chegar em 171 gravações?
Nunca, jamais. Eu não imaginava que daria tão certo, que as pessoas topariam, por conta da disponibilidade, por terem um carreira muito grande e por aí vai. Mas durante a situação, ao verem que aquilo era uma coisa do bem total, as pessoas aceitaram e deu certo. Foi um jeito de estar vivo dentro da pandemia, de mostrar que música existe, que ela faz bem, aquele momento de parar para gravar um vídeo é o momento de não pensar na pandemia, depois editar e ver a brincadeira virar alguma coisa. Fui tudo uma confraternização, uma distribuição de afeto.
Quais são os próximo projetos?
Além do “Ô de Casas”, durante a pandemia, eu fiz alguns encontros com o André Mehmari [compositor e multi-instrumentista], no estúdio dele em São Paulo, gravamos dois especiais, o “Quarentena”, que foi ao ar pelo YouTube, e a partir desse deu vontade de homenagear o Milton Nascimento, e fizemos “Milton”, que ficou muito bom, e nós pensamos que o trabalho tinha que ganhar um extensão, porque foi muito profissional, o som está lindo, era um pecado ficar ali e mais ninguém ver. Então nós propusemos à Biscoito Fino e eles toparam e isso vai sair agora nas plataformas no final de janeiro de 2022.
Outro projeto é que saiu um um trabalho do quarteto – eu, Teco Cardoso, Guinga e Nailor Proveta -, que nós gravamos no Japão, em 2019, e queremos fazer shows. Assim como com um outro trabalho que saiu em Portugal, Estrada Branca”, que nós também queremos fazer shows dele. Agora é abrir a janela e partir, eu tenho uma vontade louca de fazer show, de ver as pessoas.
O que você tem ouvido? Quais nomes da nova cena musical brasileira você destaca?
Olha, eu tenho escutado muita coisa, é até um pecado eu enumerar, porque naqueles 171 vídeos do “Ô de Casas” tem gente de todas as gerações. Então quem olhar lá vai ver que tem gente nova com trabalhos lindos. Puxa, é difícil falar, porque da dó de falar de uns e não falar de outros. Eu sugiro que vocês deem uma xeretara lá no “Ô de Casas” que tem muita gente legal e boa para ouvir.
Você tem de tomar algum cuidado especial com a voz?
Sim e não. Tem alguns cuidados normais que são cotidianos, como não tomar gelado, não gosto de ar-condicionado, tento evitar, só quando é absolutamente necessário. Eu não fumo, eu tento dormir entre seis e oito horas por dia, eu faço um aquecimento antes de cantar, lavagem com soro fisiológico das narinas. Eu faço essas coisas comuns a qualquer pessoa que estuda canto, mas não é nada demais.
Como você avalia o atual cenário da cultura no Brasil?
Nossa, senhora! Fazer cultura no Brasil é resistir. Neste momento é um ato político por si. Cantar “Ciranda, Cirandinha” é um ato político neste momento. Estar vivo e fazer arte é um ato político porque existe um desmonte, de descredibilizar, de dizer que tem arte que pode e arte que não pode. Através de um uso muito torto da palavra liberdade está se tirando liberdade. Existe uma censura vestida de liberdade. Estamos em um momento realmente muito triste, muito duro, que eu nunca imaginei viver. Eu achei que a gente já havia aprendido algumas coisas do País com a ditadura militar, é muito assustador ver que a distorção do discurso leva a lugares muito sombrios, assustadores. Estamos vivendo isso na arte, na cultura, na educação, no meio ambiente, a gente está assistindo a um desmonte. A gente vai ter muito trabalho pela frente. Tenho fé no ano que vem, tenho fé que isso vai começar a se reverter, tenho quase que uma esperança localizada. Se não começarmos a pôr fim a essa era no ano que vem durante as eleições, não sei para onde nós vamos. Por outro lado, eu posso provar, a partir do que a gente fez neste ano, a importância que a arte tem. A gente teria morrido, pirado, enlouquecido se não tivesse a música, a literatura e tudo o que foi disponibilizado de forma digital. Apesar de toda a dificuldade, de toda a intenção de desmonte, de toda essa coisa tenebrosa que a gente está assistindo, também ficou provado o valor desse ofício que é fazer arte.
Você é considerada uma das principais vozes da MPB, como é levar esse título?
Eu fico lisonjeada quando isso acontece, mas eu sou uma cigarra e uma formiga. Meus negócio é trabalhar, eu gosto do ofício completo, chegar e cantar é a cereja do bolo, tem muito trabalho que vem antes, e eu estou nele o tempo todo, sempre estive. Então quando acontece um elogio, uma coisa legal, eu fico feliz, contente, envaidecida, como alguém que ganhou um presente. Mas não muda em nada a maneira de a coisa toda funcionar, que cria um público que se identifica com a forma de trabalhar. Esse público que vem acompanhado vem nascendo há 25 anos, ele tem uma força de identidade, e eu vivo desse ofício, com muito orgulho, gosto muito dele.
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