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Inhotim ganha museu sobre Abdias Nascimento em parceria com o Ipeafro

Vistas da exposição de Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra, na Galeria Mata, Inhotim – Foto: Ícaro Moreno

Por Camila Martins

De forma inédita, Abdias do Nascimento (1914-2011) integra o mais novo museu de Inhotim, em parceria com Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros). Abdias  foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras, além de militante da luta contra a discriminação racial e pela valorização da cultura negra.

Ele é responsável pela criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), que atuou no Rio de Janeiro entre 1944 e 1968. Foi a primeira companhia a promover a inclusão do artista afrodescendente no panorama teatral brasileiro. Se não é o pai, está entre os maiores expoentes do ativismo negro no Brasil que teve a eminência de divulgar a influência africana na arte moderna e a pluralidade da produção artística da diáspora negra; pioneira da época. Foi indicado oficialmente ao prêmio Nobel da Paz em 2010. Teve uma longa trajetória trilhada no ativismo e na luta contra o racismo.

Lado a lado em Inhotim, em dialogo, estão os dois museus; o do artista Tunga (1952-2016), um dos mais emblemáticos da coleção do Inhotim, que cresceu convivendo com Abdias.

A Dra Elisa Larkin Nascimento, diretora-presidente do Ipeafro e viúva de Abdias, concedeu à Bazaar entrevista em que fala sobre a arte diaspórica negra, além do  Museu de Arte Negra (MAN), que seu marido também foi o fundador. Leia a seguir íntegra desta conversa.

Elisa Larkin Nascimento, diretora-presidente do Ipeafro – Foto: Divulgação

Quais foram as ideias mais fortes e com mais destaque que a senhora avalia que Abdias Nascimento teve?

Uma ideia que atualmente mobiliza o movimento negro é a seguinte: com racismo, não há democracia. Abdias Nascimento defendia essa ideia desde 1945, quando o Teatro Experimental do Negro, que ele fundou, organizou a Convenção Nacional do Negro. O manifesto dessa convenção fazia propostas para a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, em que a democracia se estruturava após o Estado Novo. E novamente, a partir de 1978, quando participou do difícil processo de reconstrução da democracia no final do regime militar. Sempre a ideia era essa. Uma ideia de Abdias era difícil e desafiadora naquele momento em que o mundo se mobilizava contra o regime do apartheid: ele dizia que o racismo brasileiro era pior que o da África do Sul ou dos Estados Unidos, por ser covarde. Na forma da “democracia racial”, o racismo brasileiro nega ao povo discriminado o direito de lutar e o convence, em boa medida, de que não há mesmo razão para lutar.

Abdias traz a ideia do genocídio do negro brasileiro no livro publicado em 1978 [“O Genocídio do Negro Brasileiro”]. Há mais de 40 anos, ele dá nesse livro as bases empíricas, históricas e teóricas dessa ideia, fundamental à compreensão do racismo no Brasil.

E a ideia do quilombismo, lançado em 1980 no 2º Congresso de Cultura Negra das Américas, além de tratar as bases históricas e culturais para a compreensão do racismo e a construção de um caminho de luta, propõe um modelo de organização da nação a partir do simples princípio democrático. Sendo a maioria da população, o povo negro, a prevalecer esse princípio, estaria no poder. Mas o quilombismo propõe o exercício desse poder para o bem comum de todo mundo: os seres humanos, a flora, a fauna e os biomas.

O livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”, a senhora pode falar um pouco sobre ele?

Nesse livro, Abdias Nascimento apresenta as bases empíricas, conceituais e históricas da noção de genocídio. Além disso, ele apresenta uma série de propostas de políticas públicas para combater os efeitos do genocídio. Há a matança direta de jovens negros, cujos números estão publicados em inúmeras pesquisas e dados oficiais. Outras formas de matança, outras formas de aniquilação são igualmente nocivas, pois também roubam vidas. Há mortes diversas. Mortes simbólicas, mortes subjetivas, mortes culturais, mortes de potenciais criativos. A subvalorização humana de um povo o condena a constantes mortes em diversas áreas: educação, trabalho, habitação, alimentação. Hoje a urgência da campanha “Tem Gente com Fome, Dá de Comer”, liderada pela Coalizão Negra por Direitos, aponta como o racismo mata todos os dias.

Quais foram os avanços e os retrocessos?

Houve avanços em diversas áreas. Esses avanços precisam ser creditados ao movimento negro, o que frequentemente não acontece. Falamos da “implementação das cotas” ou da “adoção de ações afirmativas”, como se fossem fenômenos neutros, definidos por uma instância política superior para beneficiar a população negra. Todas essas conquistas são frutos da organização e expressão política do povo negro. A lei 10.639, de 2003, incluiu na Lei de Diretrizes e Bases da Educação a política de ensino da história e cultura africana e afro-brasileira e das relações étnico-raciais. Cada programa que se instituiu, cada passo dado na formação de docentes, cada publicação para contribuir à implantação dessa política se deve aos esforços de pessoas negras mobilizadas, muitas vezes com o apoio de aliados.

Na conta dos retrocessos, eu incluo o recrudescimento da violência contra pessoas negras. A cada quatro horas uma pessoa negra é morta por policiais em seis estados do Brasil. Em Salvador, Recife e Fortaleza, 100% das pessoas mortas pela polícia são negras, de acordo com pesquisa do Observatório da Segurança. A militarização da polícia é um erro de gestão que leva a essa e outras distorções. A política penitenciária e a operação do sistema judicial completam o quadro. Estamos em situação bem pior do que antes. É um dos resultados do investimento do Estado na sustentação de um modelo econômico-financeiro que remunera o capital ocioso, onera a produção e sujeita a população a níveis grotescos de sofrimento e privação.

Fale sobre a lei que é crime ao preconceito racial.

Acho que você se refere à minha fala quando referenciei a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, que teve lugar em 2001 em Durban, na África do Sul. Nessa conferência, houve um consenso, publicado no respectivo relatório, sobre a definição do escravismo mercantil praticado contra os africanos pelas potências europeias durante vários séculos – constitui um crime contra a humanidade. Dessa forma, a população africana e afrodescendente tem direito à reparação, da mesma forma como houve reparação em outros casos, como o dos judeus após o holocausto. A reparação da escravidão é uma pauta importantíssima e necessária para o avanço da humanidade.
Vale dizer que esse conceito nada tem a ver com preconceito. Trata-se de estruturas econômicas, políticas, educacionais, culturais e de trabalho que sustentaram e sustentam esse crime. O preconceito como atitude subjetiva, individual, pouco importa nesse contexto. A Declaração e o Plano de Ação de Durban continuam muito atuais. A Coalizão Negra por Direitos realizou uma série de encontros virtuais sobre o assunto, em que considerou as metas a atingir e as formas de chegar lá.

Atualmente, como se dá o seu trabalho no Ipeafro?

O Ipeafro cuida do acervo de Abdias Nascimento e das organizações que ele criou. O acervo inclui documentos, fotografias e obras artísticas. Com base no acervo e em parceria com outras organizações, o Ipeafro realiza atividades culturais voltadas à implantação da política de ensino da história e cultura negras e das relações étnico-raciais. No último dia 4, inauguramos o primeiro ato da nossa ação conjunta com Inhotim, a exposição “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”. O Museu de Arte Negra foi um projeto do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias Nascimento em 1944. O Ipeafro guarda a coleção de obras artísticas doadas ao Museu de Arte Negra a partir de 1950. A coleção inclui obras artísticas criadas por Abdias. Parte desse acervo está no Inhotim. Outra parte, umas 135 peças, está na exposição “A Memória É Uma Invenção”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Para o Ipeafro, essas exposições são sempre o ponto de partida para atividades junto a educadores, estudantes e pesquisadores, além do público em geral, no sentido de contribuir para a educação da história e cultura negra e das relações étnico-raciais.

A senhora acha que hoje a arte está dando mais vóz aos negros como um todo? Tema que por exemplo fez parte da 34ª bienal de São Paulo?

Eu acho que os negros sempre tiveram voz. O mundo das artes se recusava a escutar essa voz ou dar valor às criações de artistas negros, cuja produção ele rotulava de “primitiva”, “ingênua”, “naïf” ou “exótica”. Em grande parte, essa produção foi considerada como folclore, artesania ou mero registro etnográfico. O fato de o mundo das artes abrir mais espaço a artistas negros é resultado da luta desses artistas e do movimento negro como um todo, e não da generosidade de uma elite que escolhe a quem quer, ou não quer, dar voz.

Pessoalmente, eu tenho receio que esse interesse na arte negra seja uma bolha mercadológica num momento específico. Quero estar equivocada. Quero ver o mundo das artes atribuir valor estável e crescente à produção de criadores negros e dos povos originários, cuja visão estética é fundamentalmente ligada à vida e portanto defende e ajuda a compreender as peripécias da relação humana com a flora, a fauna e os biomas. Precisamos dessa visão, neste momento em que assistimos à destruição do planeta pela indiferença e pela avareza humana.

Conte um pouco sobre o diálogo de Abdias e Tunga.

Abdias fazia parte da Santa Irmandad Orquídea, um grupo de jovens poetas argentinos e brasileiros que se juntaram nos anos 1930 para uma aventura literária e uma amizade para toda a vida. O poeta cearense Gerardo Mello Mourão era irmão de Abdias pela Santa Orquídea. Sendo Gerardo o pai de Tunga, este era um sobrinho de Abdias. Além da convivência afetiva, eles comungaram ideias e rompiam barreiras. Aos 15 anos, Tunga comentou no jornal “Correio da Manhã” que a arte negra foi a primeira a romper com as chatas convenções renascentistas na arte. Ele foi entrevistado ao lado do quadro que ele doava à coleção Museu de Arte Negra. A ocasião era a mostra inaugural da exposição, realizada no Museu da Imagem e do Som naquele ano de 1968, 80º aniversário da abolição da escravatura no Brasil. Na exposição no Inhotim, passados mais de 50 anos, podemos apreciar comunalidades entre temas e formas de expressão dos dois artistas, como o círculo e a serpente, a curva e o movimento.

Vistas da exposição de Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra, na Galeria Mata, Inhotim – Foto: Divulgação

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