Cultura

Casa triângulo apresenta “Pelo Avesso”, de Antonio Henrique Amaral

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Foto: Divulgação

Por Raphael Fonseca e Pollyana Quintella (curadores)

Múltiplo e polifônico, Antonio Henrique Amaral empenhou-se em construir uma obra que resistisse a sentidos unívocos. Suas mais de seis décadas de produção nos legaram um percurso multifacetado que vem sendo matéria de revisões recentes através de ensaios e exposições monográficas que situam o artista para além das suas icônicas e emblemáticas Bananas, realizadas entre 1968 e 1975.

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Esta exposição se soma ao esforço de estabelecer um recorte menos usual da produção do artista, interessada em contextualizar trabalhos cuja centralidade é o corpo e suas mais variadas negociações. Ainda nos anos 1950 e 1960, veremos obras em desenho e gravura – fundamentais para a formação de Amaral – que trazem figuras antropomórficas deformadas e transfiguradas, tensionando os parâmetros de representação na busca por gestos mais expressivos, fantásticos e delirantes. Suas figuras humanas se apresentam de forma cada vez mais derretida, como se estivessem a escorrer perante o nosso olhar. A metamorfose entre o corpo humano, o animal e aquilo que beira o inominável e que convencionamos chamar de “monstruoso”, é experimentada de forma constante durante a década de 1950. Se nos desenhos tomamos conhecimento da importância da aplicação pontual da cor em sua pesquisa, na gravura vemos o artista experimentar com diferentes tamanhos e maneiras de se apropriar dos veios das matrizes em madeira.

Ao centro da maior sala da Casa Triângulo, penduradas no teto, apresentamos diferentes séries de pinturas produzidas entre os anos 1970 e 1990, nas quais “AHA” lança um olhar para o corpo humano, porém de maneira mais icônica. Produzidas no final dos anos 1970, precisamente em 1979, a série de pinturas “Máquinas” manifesta a fusão de máquinas e corpos, metais e vísceras, de modo a questionar os limites entre natureza e cultura e nos provocar a reconhecer o corpo permeado pela dimensão tecnológica. Para que essas máquinas – que curiosamente se assemelham aos aparelhos de musculação que se popularizam justamente nos anos 1970 – se movimentem, elas dependem do esforço repetitivo impulsionado pelo corpo humano. É difícil observar essa série de imagens e não as relacionar com os anos mais duros da ditadura militar no Brasil. Máquinas de tortura ou máquinas de disciplina do corpo? Há como separar as duas possibilidades?

Curiosamente, quando observamos outras de suas pinturas presentes na exposição e datadas dos anos 1990, a noção de corpo proposta pelo artista se apresenta de forma menos hierática e futurista, aproximando-se de um diálogo com a paisagem, com a história da arte moderna no Brasil e, novamente, com a metamorfose, mas agora por uma perspectiva botânica. Sua série “Torsos” traz silhuetas alongadas, destituídas de qualquer identidade e suspensas no tempo e espaço, ao passo que suas pinturas que remetem a florestas parecem citar e criar narrativas a partir de elementos formais encontrados na produção de Tarsila do Amaral, sua prima distante. No que diz respeito a uma série de desenhos dos anos 2000 também presentes nesta sala, é interessante notar como as imagens parecem aprofundar seus interesses dos anos 1990 por meio de composições que beiram os limites da abstração e sugerem fragmentos estilhaçados feito microorganismos em profusão, típicos dos exercícios de zoom in e zoom out tão bem explorados pelo artista.

Foto: Divulgação

Por fim, no segundo espaço da galeria – com pé direito baixo e caráter mais intimista -, o corpo se exibe em uma chave mais explicitamente política por meio de uma seleção de trabalhos dos anos 1960, período da eclosão da ditadura militar no Brasil. Através de imagens com um aspecto pop e em diálogo franco com a cultura de massas tão bem representada pelas histórias em quadrinhos e o cinema, o artista produziu algumas obras icônicas nas quais as bocas tem lugar central. A boca que fala, a boca que grita, a boca que executa – e o olhar do artista que, longe das denúncias panfletárias, também tece seu comentário sobre o militarismo, a opressão e as ligações telefônicas responsáveis por tantos apagamentos.

Por meio de uma distribuição espacial que se dá não apenas nas paredes da Casa Triângulo, mas também na ocupação de seu espaço monumental, os diferentes tempos e interesses de Antonio Henrique Amaral conversam de forma arejada, mas ao mesmo tempo obsessiva. Ao percorrer o espaço, é de nosso desejo que o público perceba tanto seu insistente olhar para o corpo humano, como também as formas como experimentou e se reinventou por meio do desenho, da gravura e da pintura.

Foto: Divulgação

Interessa-nos especialmente que os visitantes possam contemplar sua obra “pelo avesso”; sua pesquisa como criador de imagens se estendeu para muito além de suas célebres pinturas que situam as bananas como fantasmagorias de corpos torturados. Curiosamente, acreditamos que muitas das imagens aqui reunidas vão ao encontro de um interesse crescente pela pintura figurativa e seu potencial de torção que vem sendo explorado por artistas jovens atualmente no Brasil e no exterior.

Que essa reunião efêmera de trabalhos seja capaz de nos fazer aprender mais sobre o artista, suas diferentes nuances e temporalidades e, claro, sobre os nossos próprios corpos e avessos.

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