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CCSP apresenta “O Dia Seguinte ao 13 de Maio”

Foto: Divulgação

Nos dias 14, 15 e 16 de maio, o CCSP apresenta de forma híbrida o projeto “O Dia Seguinte (ao 13 de Maio)”. A programação multidisciplinar reúne mais de  50 artistas pretos(as) que sob várias perspectivas trarão à luz do debate os desdobramentos do pós-abolição, suas marcas e ramificações na atualidade.

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No Brasil, último País a abolir a escravidão, pouco se fala do que aconteceu depois do dia 13 de maio de 1888, data que marca a Abolição da Escravatura. Para além dos 133 anos que se passaram, a sociedade ainda lida com as sequelas do tratamento dispensado à população escravizada, uma vez que não houve preparação para um novo regime de organização da vida, da moradia e do trabalho.

Apostar em evidenciar a luta e os desafios da população negra ao longo desses anos é o objetivo dessa potente programação do CCSP, em que as curadorias atuam de forma transversal e complementar.

Uma perspectiva preta sobre o 14 de Maio – O Dia Seguinte

“No dia 14 de maio ninguém me deu bola

Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver

Nenhuma lição, não havia lugar na escola

Pensaram que poderiam me fazer perder”

A gravidade da voz de Lazzo Matumbi imprime aos versos que fazem as vezes de epígrafe a este texto um tom solene, quase ritual, fazendo ecoar a denúncia, resiliência e tentativa de interrupção da história que a letra da canção invoca e convida a realizar. O tema – o dia seguinte à sanção real que aboliu legalmente (mas não substantivamente) o regime da escravatura no Brasil -, deveria ser nosso velho conhecido. Mas não é. Muito ainda se fala sobre o 13 de maio. Não raras vezes, em tom cívico-romântico, celebratório, quando não de todo falso, como na lorota que recria a imagem da sra. Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon como uma princesa de pura bondade, uma quase-santa branca e dadivosa, que numa canetada rompeu os grilhões da escravidão. 

Apesar dos esforços dos movimentos negros, dos edifícios de memória legados pela ancestralidade-viva, pelas estratégias de revisita historiográfica de nossas intelectuais, pouco se fala das longas e variadas formas de luta negra por liberdade que antecederam, pressionaram e precipitaram as discussões parlamentares que levaram ao fim (jurídico) da escravidão naquele dia. Da queima de engenhos à organização de quilombos, da fuga individual à revolta coletiva, do envenenamento de senhores ao abolicionismo organizado, onde houve escravidão, houve resistência. Fora dos círculos negros, se fala menos ainda a respeito do dia seguinte, da vida depois que “a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou”.

Fato é que a Lei Áurea, apesar do nome, não reluziu por muito tempo. Desacompanhada de qualquer política que garantisse condições mínimas de inserção socioeconômica aos agora ex-escravizados, tampouco de uma reparação à barbárie que lhes foi impingida (e a seus ancestrais) por mais de três séculos, a liberdade que a lei. 3.353 de 1888 prometeu foi uma espécie de rojão molhado. Difícil de acender, mais ainda de projetar, relegando um rastilho de desigualdades racializadas que se estende e reinventa até os dias correntes. Se o 13 de maio foi motivo de celebração, o 14 se inscreveria no calendário nacional como o dia que nunca terminou.

Tal como o racismo antecedeu e preparou terreno para a ideia de raça (e não o contrário, repare), a suposição de igualdade perante a lei lastreou a negação do óbvio: que o racismo fundante e estrutural da sociedade brasileira prescinde do corpo da lei, mesmo de intencionalidade, para ainda assim acontecer. Pois se fez impregnar no cotidiano, linguagem, retinas. A paisagem do dia seguinte, inalterada em relação à véspera, fez conviver entre nós uma fábula de cordialidade e democracia racial em evidente descompasso e dissociação com o genocídio que caracteriza o embaraçoso real em que estamos, ainda, mergulhados como sociedade.

Há décadas, diferentes frentes do movimento negro têm utilizado a factualidade do dia seguinte (ao 13) como metáfora de um passado-contínuo que fez/faz prolongar os efeitos da cultura escravocrata para muito além da oficialidade de seu remate: a abolição de jure não significou uma abolição de facto. No Brasil, último país das Américas a findar legalmente o cativeiro, a violência (física, simbólica, cultural) continuamente perpetrada contra pessoas e coletividades negras, permite afirmar, sem firulas ou escusas formalistas, que ainda vivemos num longo período pós-abolição, num ainda não-cicatrizado e violentíssimo dia seguinte.

Vejamos os índices nacionais de educação, moradia, saúde, emprego, renda, expectativa de vida, encarceramento, vítimas de homicídio, da inapetência do governo em combater a pandemia etc. etc. etc.: pessoas negras seguem compondo, ontem como hoje, a maioria da base da pirâmide. Nem mesmo as conquistas nesses últimos 133 anos (e olha que não foram poucas) dão conta da disparidade histórica.

Mas vejamos também as tecnologias e estratégias de sobrevivência (e de abundância) desenvolvidas pelas pessoas e coletividades negras que nos antecederam. Qual o papel dos clubes sociais negros das primeiras décadas após a abolição? Como operaram as irmandades religiosas e redes de solidariedade de homens e mulheres preta/os do período? A imprensa negra, que temas pautou? Intelectuais negros, políticos negros, escritores negros: quem eram? Como se posicionaram? Os grupos culturais das mais diversas naturezas, do maracatu rural ao funk contemporâneo, como se articula(ra)m?

Mergulhados nesse universo de questões, organizamos uma intensa programação multidisciplinar convidando o público do Centro Cultural São Paulo a deslocar o holofote por anos dispensado ao 13 de maio e jogar luz sobre o dia que lhe sucedeu, o after, aquilo que, baixada a poeira, permaneceu lá. Bem como aquilo que, de lá pra cá, vem mudando, apesar de tudotodo não. Como cantou Lazzo, com seu grave inconfundível, tão suave aos ouvidos:

“Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta

Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu

A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa

Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu”

Hélio Menezes é antropólogo e internacionalista, curador de Arte Contemporânea do Centro Cultural São Paulo e Affiliated Scholar ao BrazilLab, da Universidade de Princeton.

“O Dia Seguinte (ao 13 de Maio)”
Data: de 14 a 16 de Maio de 2021, nas plataformas digitais do Centro Cultural São Paulo.
Nas plataformas digitais do CCSP (Youtube, Instagram, Vimeo).

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