Por Diego Matos (curador da mostra)
Vasculhar as evidências materiais do passado, colocando-as em questão; ressignificar símbolos, normas e tradições, dando visibilidade ao corpos e fazeres que estão à margem; desalienar as práticas cotidianas, buscando espaços de ativação coletiva; requalificar a noção de trabalho como vivência emancipatória, batalhando contra a precarização e a hiperconexão controlada; questionar formas de poder opressoras, respondendo aos desejos também do outro; evidenciar sujeito e corpo implicados no cotidiano, contribuindo para uma reestruturação do corpo social e, enfim, tomar de volta o caráter público da arte. Estas são possibilidades de ação presentificadas pela produção de dez artistas reunidos na exposição coletiva No presente, a vida (é) política.
SIGA O RG NO INSTAGRAM
Nela, a arte é protagonista dos temas emergenciais da vida democrática, além de dispositivo qualificador das implicações do corpo e do indivíduo no tecido social. Reside a ideia de que o trabalho de arte é um agente de mudança que batalha pela desautomação da linguagem e dos afetos, podendo nos ajudar a clarear os impasses do momento e até mesmo imaginar novos entendimentos para o futuro que se avizinha.
Dez artistas – Bruno Baptistelli, Clarice Lima, Dora Smék, Fernanda Gassen, Fernanda Pessoa, Gabriela Mureb, Gustavo Torrezan, Marília Furman, Paul Setúbal e Rafael Pagatini – confabulam pesquisas, estratégias, ensaios, enunciados, registros e formas de ação conscientes no presente, refletindo permanentemente sobre a possibilidade de vida politizada, coletiva e libidinosa, que não se deixa findar e que não espera pelo futuro prometido das narrativas da religião purificadora, da bonança econômica neoliberal e da crença velada nas formas limitadoras de operar a política democrática e liberal. Portanto, entende-se que a arte é um caminho para vincular à vida sua qualidade essencial de política.
Tal percepção nasce das provocações advindas de reflexões contemporâneas, especialmente da escrita potente de Franco Berardi. Em seu texto, ao falar de nossa época como momento posterior ao futuro sonhado pelas construções utópicas do século passado, ele nos traz o conceito de futurabilidade: “a multidimensionalidade do futuro, a pluralidade dos futuros inscritos no presente e, também, a composição mutável de intenção coletiva” . De certa maneira, todos os 24 trabalhos dispostos ao longo da galeria fundamentam-se em experiências pensadas por meio da reinvenção contínua do convívio e da sobrevivência no tempo presente. Portanto, são especulações para uma futurabilidade, ensejando constantemente a iminência do possível.
Se estamos vivendo as consequências catastróficas da aceleração do antropoceno – pandemia pode ser exemplo disso -, pode ser pelos desafios do pensamento e do fazer artístico que conseguiremos destituir o sentido de impotência diante da crise permanente em que vivemos mergulhados. Os mecanismos da arte podem, inclusive, reavivar conflitos, dissensos e antagonismos necessários à esfera pública, algo muito bem pontuado por Chantal Mouffe ao trazer para o debate público uma percepção agonística da democracia.
Aliás, a produção contemporânea em arte pode e deve ser lugar da construção de experiências desconfortáveis aos consensos políticos. E é sobre esse desconforto que em certa medida os trabalhos apresentados se assentam.
É importante pontuar que a exposição toma forma no já histórico edifício de esquina do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo (IAB-SP), lugar que guarda significativas memórias de um lastro cultural de resistência e inovação na cidade. Ocupando o subsolo e o mezanino da edificação, contaminando áreas comuns e sinalizando para a rua, algumas obras acabam por se relacionar de maneira física e simbólica com o local; outras, por sua vez, ganham potência pelo contexto ou promovem atritos com a história política e cultural que dali emana.