Foto: Globo/Victor Pollak
Primeiro filme de ficção exclusivo Globoplay, “Breve Miragem de Sol” estreia na plataforma neste domingo (30.08). Do diretor Eryk Rocha e com Fabricio Boliveira e Bárbara Colen no elenco, o longa é ambientado no Rio de Janeiro e retrata um Brasil contemporâneo por meio das trajetórias que se cruzam dentro de um táxi na capital carioca.
No comando do volante está Paulo (Boliveira), cuja saga é marcada por solidão e medo, busca pela sobrevivência e reinvenção. Vivendo à própria sorte e recentemente divorciado, ele começa a trabalhar como taxista em jornada noturna e se depara com todo o caos e frenesi das madrugadas cariocas. “Trabalhei diretamente pelas noites do Rio de Janeiro durante meses de preparação, com novos e antigos taxistas. Foi incrível estar nos grupos de Whatsapp deles e encarar uma realidade cruel na cidade somada à solidão desses profissionais”, diz Boliveira. Na esperança de voltar a conviver com seu filho, Mateus, Paulo encontra no novo trabalho a chance de um recomeço. Enquanto dirige, as histórias dos passageiros misturam-se às de sua vida, que ganha um novo fôlego com o embarque da enfermeira Karina (Bárbara).
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Com estreia internacional no festival BFI de Londres (2019), a obra e o elenco foram premiados em renomados festivais nacionais e internacionais como o Festival Internacional de Cinema de Gotemburgo (2019, Suécia) e o Festival do Rio 2019, que rendeu a Fabricio Boliveira o prêmio de Melhor Ator. A obra é uma coprodução Aruac Filmes, Globo Filmes, VideoFilmes, Canal Brasil, Varsovia Films (Argentina) e Tu Vas Voir (França).
Para falar sobre a estreia e sobre as gravações, RG conversou com Boliveira por telefone. Leia íntegra da entrevista com o ator a seguir.
Como você tem passado a quarentena?
Estou em casa, sozinho, “quarentenado”, aproveitando esse momento para trabalhar bastante. Eu estava em São Paulo fazendo um espetáculo de teatro e voltei para Salvador porque estava construindo uma casa, e aí veio a pandemia. Eu interrompi tudo, entrei na casa e estou há quatro meses aqui, pensando na reinvenção da vida, repensando tudo, aproveitando esse privilégio de poder estar em casa e não trabalhar neste momento, para entender o que vem nesse período pós-pandêmico.
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E o que tem feito no seu tempo livre?
Trabalhado muito. Eu acabei fazendo uma performance digital, com uma investigação de Zoom, desses aplicativos todos, em como fazer uma leitura digital dentro de uma ambiente virtual, onde as pessoas também participassem da leitura. Fiz também um desenho animado. Aproveitei para organizar a minha produtora, PrasCabeças, que também está funcionando aqui em Salvador.
Tenho feito pilates e treinado com personal digitalmente. Fiz também o curta “Amores Pandêmicos”. Mil funções para ocupar o tempo, e resolvendo coisas da vida, como a questão da produtora, fazendo algumas investigações artísticas. Coisas que eu já tinha vontade de fazer e esse tempo agora me proporcionou essa possibilidade de experimentar todos os desejos.
Como nasce o Fabricio ator? Porque você já trabalhou com outras coisa, já até deu aula de dança e tal.
Eu acho que o Fabricio ator já existia, mas ele floresce ou aparece um pouco mais quando eu resolvi fazer a Federal da Bahia para ser ator. Eu tive todas essas experiências atuando, dançando, trabalhando no IBGE, dando aula de português e história dentro de casa. Eu já tinha tido algumas outras experiências, mas eu decidi fazer a universidade, e acho que aí surge o profissional.
Porque você te um currículo bem extenso…
Extenso e que me dá muito orgulho. De tudo o que aprendi, da literatura em que me debrucei, dos encontros que eu tive, fico muito feliz com esse últimos anos. Uma trajetória que ainda está em processo, há muito o que fazer.
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Como surgiu o projeto de “Breve Miragem de Sol”?
Esse projeto aconteceu em 2017 a convite de Eryk Rocha para fazer um teste, e Eryk é um diretor que eu já admirava muito, acompanhava o trabalho dele há muitos anos. Fiz o teste e passei e aconteceu uma parceria, descobri um parceiro para novos projetos, um amigo, e virei coprodutor do filme ao lado dele. É muito lindo o nosso trabalho juntos. E o Eryk tem uma história muito linda de filmografia e eu acho que consegui filmar ali com ele essa investigação para ficção. E essa ficção cruza o tempo inteiro com a realidade. A gente montou um roteiro muito forte para abandoná-lo na hora de gravar e a realidade aparecer, como as cenas no Maracanã, quando a polícia invadiu, teve briga entre torcedores, e eu tomei bomba de lacrimogênio, e muita coisa aconteceu. Infelizmente eu vi uma pessoa ser assassinada na minha frente. Muita coisa aconteceu durante o filme, a polícia me parou algumas vezes, uma delas eu estava com duas atrizes trans dentro do carro. A realidade estava acontecendo no Rio de Janeiro, no micro, no macro, num País que estava entrando numa crise. Há muitas cenas que são impossíveis de serem ficção. A realidade realmente invadiu essa ficção.
Como você se preparou para esse papel?
Antes do filme eu fiquei trabalhando bastante capoeira com o mestre Itapoã Beiramar, porque a gente achava que o Paulo (personagem de Boliveira) tinha que ter os sentidos bastante aguçados, né, e a capoeira faz isso. No Rio de Janeiro eu comecei a trabalhar bastante com taxistas, passei quase três meses andando nas madrugadas com taxistas rodando a cidade, sobretudo pelo subúrbio do Rio, e conversando com essas pessoas, descobrindo bairros. Trem também, fiz muita viagem de trem, para descobrir que Rio de Janeiro é esse que está além dos postais. E eu vi uma cidade totalmente dividida pela iluminação. O subúrbio da Zona Norte é muito mais escuro que a Zona Sul, parece uma coisa proposital, por exemplo. Fui descobrindo as contradições dessa cidade que desemboca em tudo isso. O que o Rio de Janeiro passou nesses últimos anos, de escolha de governantes, tudo o que se instalou na cidade. O Rio de Janeiro é protagonista [do filme], mas estamos falando de todos os centros urbanos, do mundo.
E teve alguma história engraçada ou curiosa que você podia contar?
Tem uma coisa muito legal do filme que é o fato de eu não conhecer os passageiros que entravam no meu carro, então eu não sabia que eram os atores que entravam no táxi. Quando eu entrava no carro eu recebia uma mensagem de onde tinha que ir buscar os passageiros, aí eu ia para o local, esperava eles entrarem e me dizerem para onde queriam ir. Era tudo improvisado em cima do roteiro. E aí, numa dessas, eu fui buscar um casal de argentinos, cuja mulher é uma atriz superconhecida, chamada Inés Estévez, só que quando ela entrou no carro eu não a reconheci, e eles foram conversando e disseram estar comemorando aniversário de casamento. Eles iam ficar na Lapa. Quando eu parei o carro, ela me disse que queria ir para outro lugar, um lugar onde ela fosse mais feliz. Eu sugeri Santa Tereza, porque eu morei muitos anos lá, aí eu os levei a um barzinho em Santa Tereza. Quando entramos, um rapaz com uma camisa da Argentina gritou Inés e pediu um abraço para ela, isso tudo com a câmera gravando. E nós fomos tentando levar a cena, enquanto ele falava várias coisas para ela, que ficou muito emocionada. Tomamos uma cachaça juntos e ela disse: “Hoje é meu aniversário [era aniversário da atriz também] e você está me dando o melhor presente da minha vida. Tenho contato com ela até hoje, e pensar que eu a conheci naquela cena, dentro de um táxi.
O filme traz uma história bem realista, dessa gente que precisa trabalhar para levar o sustento para casa. Alguém da sua família foi taxista ou viveu uma realidade semelhante?
Na minha família não há taxistas, mas é um espaço muito próximo de alguma forma hoje. Eu tenho vários amigos formados que viraram “drivers” na rua por não conseguirem exercer sua função de formação. É o cerne da questão, é o povo brasileiro que conta o dinheiro para levar para casa, para completar os gastos. O filme é sobre essas pessoas, nesse País que tem uma diferença absurda, que a riqueza está concentrada nas mãos de poucos, é sobre essas contradições. Um País que passou por cotas, onde o povo negro tem a possibilidade de transformação e de mudança, por ter liberdade e dignidade de sobrevivência por ter entrado numa faculdade, por ter adquirido bens, de algum jeito, por ter conseguido melhores condições de trabalho, como as empregadas domésticas, ou editais para alguns cargos públicos, então é sobre esse País e essas contradições.
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E como foi receber o prêmio de Melhor Ator pelo personagem?
Eu fique super feliz porque recebi esse prêmio da cidade, essa resposta linda do Rio de Janeiro, uma cidade onde morei durante 13 anos, é como se eu retornasse à cidade e a cidade me retornando também, de todos esse anos de experiência e de vivência no Rio. Fiquei feliz pela equipe, pela ousadia do projeto, feliz pelo Eryk, que é um grande artista, um grande diretor. É um prêmio que fala por toda uma história.
Qual a responsabilidade enquanto ator e negro em um momento inflamado como vem acontecendo nos Estados Unidos, depois da morte de George Floyd, e toda onda com atos contra violência e racismo?
Eu acho que esse filme, de algum jeito, aponta para um lugar muito interessante. O filme não trata sobre racismo, mas ele tem o seu protagonista como uma figura que mostra o seu silêncio, o seu poder de reflexão, poder de transformação, o que está passando por dentro desse homem. Então, é 90% do filme mostrando um homem negro, sua piscada, quando ele dorme. Eu acho que isso já é apontar para um novo cinema, para uma nova realidade social onde o negro tem possibilidade de transformação, e essa transformação está na mão dele como está na mão do Paulo, que vai para a rua para poder melhorar a condição dele, do filho. Ele age contra as condições do macro. É um filme que já aponta o que já vem acontecendo com o povo negro no Brasil nesses último dez anos. E aponta para a possibilidade de renovação do audiovisual brasileiro, que questões são essas que a gente quer ver? Que tipo de protagonismo é esse que não apareceu e que aparece agora levando ao público essas questões? Falo isso agora porque estou super feliz que o filme “Simonal” acabou de receber 10 indicações ao grande prêmio do cinema brasileiro. O filme mostra a subjetividade de uma homem negro. Isso aponta para a importância e para o interesse que o público tem. Nós temos 56% da nossa população formada por negros neste País, e eles querem ver as suas questões ali, seus brilhos, seus sonhos, suas contradições e sua ascensão também.
Foto: Globo/Victor Pollak
E quais são seus próximos projetos?
Eu estou escrevendo uma série, tenho uma animação sobre a Revolta dos Malês [levante de escravos de maioria muçulmana na cidade de Salvador, em 1835], estou escalado para a próxima novela das 19h da Globo [“Cara & coragem”, de Claudia Souto], estou fazendo um filme-performance sobre a Antígona [figura da mitologia grega] – estou desconstruindo a história dando descanso à base da pirâmide social brasileira, que é a mulher negra. Como a gente não sabe ainda quando vai voltar, estou ensaiando só eu e a atriz Jaqueline Elesbão, com todos os procedimentos de segurança. A edição vai ser feita diretamente da transmissão, que será por Zoom com 300 convidados. Isso originará o filme.
E qual sua relação com as redes sociais, porque você já chegou a apagar seu Instagram, certo?
Eu já apaguei duas vezes (risos). E adoro pode jogar com isso, sabe? Meu trabalho real é outro, eu sou ator, eu sou artista, aberto para a descoberta, para o encontro, mas não para a divulgação da minha vida particular. Eu gosto de deixar esse espaço para o profissional. A minha página na rede social não sou eu, é uma projeção de alguma coisa para algum outro espaço.