A mescalina e o nascimento do termo psicodélico
No prólogo do seu último livro “Mescalina – a história global do primeiro psicodélico” (New Haven: Yale University Press, 2019), o escritor e historiador da cultura, Mike Jay, inicia o seu relato pela “manhã ensolarada” do dia 3 de maio de 1953, em Los Angeles (EUA), quando o escritor e ensaísta britânico, Aldous Huxley (1894-1963) recebeu das mãos do psiquiatra Humpry Osmond (1917-2004) – seu conterrâneo e radicado no Canadá – um comprimido contendo 250mg de mescalina. O alienista vinha introduzindo intelectuais e artistas proeminentes à mescalina e produzindo relatórios com a finalidade de empregar essas “ferramentas de expansão da mente” de modo seguro e terapeuticamente viável.
Para muitos estudiosos, o psicodelismo ou a psicodelia – a cultura psicodélica propriamente dita – teria nascido e se desenvolvido a partir daquela manhã primaveril, mais precisamente às 11 horas – como gostam de saber os afeitos à astrologia – quando Huxley ingeriu a drágea psicoativa que resultaria, no ano seguinte, no livro “As Portas da Percepção” (1954). Nessa obra seminal, o ensaísta relata as experiências filosófico-sensoriais que o tomaram de assalto “meia hora depois de engolir a droga”, cuja essência Huxley tomou das palavras do poeta, pintor e gravador britânico, William Blake (1757-1827), um dos artífices da contemporaneidade: “Se as portas da percepção se abrissem tudo apareceria à humanidade tal como realmente é, infinito e sagrado”.
A multiplicidade, a confluência e a enormidade dos fatos que compõem esses dois primeiros parágrafos certamente requererão alguns outros artigos, a fim de elucidar um pouco mais a importância dos referidos protagonistas, os fatos e curiosidades que precederam aquele encontro psiquiátrico-literário antológico, os seus desdobramentos ulteriores e, certamente, os relatos da experiência huxleyana, que embalariam não apenas a cultura, como também a ciência da segunda metade do século XX, emitindo ecos que ainda podem ser ouvidos, sentidos e vivenciados nesse novo milênio.
Naquele momento, Huxley tinha quase sessenta anos e era considerado um dos mais proeminentes intelectuais de sua época – já havia recebido duas indicações para o Prêmio Nobel de Literatura (1938, 1939) e ainda receberia outras cinco (1955, 1959, 1960, 1961, 1963), infelizmente sem nunca ter sido laureado. Osmond, por sua vez, era um jovem psiquiatra de trinta e cinco anos. Durante a II Guerra Mundial, trabalhara como psiquiatra da marinha britânica. Ao término daquele conflito, quando tinha por volta de trinta anos, entrou em contato com os trabalhos de Albert Hofmann (1906-2008). O químico e farmacologista dos Laboratórios Sandoz (Basileia, Suiça) sintetizara a dietilamida do ácido lisérgico (LSD) e a psilocibina em 1938; cinco anos depois, o suíço publicou os relatos acerca dos efeitos psicoativos lisérgicos que vivenciara após duas autoadministrações. Osmond se convencera, assim, de que as doenças mentais eram secundárias a desbalanços bioquímicos e que essas novas e promissoras moléculas poderiam ser a chave tanto para a compreensão de suas bases neuroquímicas, quanto para sua cura.
Na verdade, ainda que um tanto esquecido, esse assunto não era novo. O uso sacramental de substâncias psicoativas dentro de rituais religiosos pagãos – com o propósito de “dissolver a consciência” para em seguida mergulhá-la na matriz ancestral para renovar o funcionamento psíquico e fortalecer os seus elos culturais comunitários – era uma prática conhecida desde a pré-história. As propriedades perturbadoras da consciência dos cogumelos psicoativos já haviam sido relatadas na Antiguidade por Dioscórides (40-90), pai da farmacognosia. No século XVIII, o médico e botânico Carl Linnaeus (1707-1778) apresentou a primeira classificação científica para as plantas psicoativas (“Inebriantia”, 1762). Nessa mesma época, a Instituição Pneumática, (Hotwells, Bristol – Inglaterra), capitaneada pelos médicos Thomas Beddoes (1760-1808) e Humphry Davy (1778-1829) começou a administrar óxido nitroso nas pessoas, com propósitos científicos e lúdicos.
Haveria no cérebro humano estruturas relacionadas de determinados comportamentos – entre eles, inclusive, a religiosidade – à espera apenas de um mero estímulo neuroquímico capaz de ativá-las? Ou ainda, mais hodiernamente, substâncias capazes de “religar” a consciência pré-frontal às estruturas “límbico-ancestrais” do cérebro poderiam ser a chave para aumentar sua carga afetiva, melhorar o seu humor e “lavar com otimismo límbico” as memórias de eventos traumáticos? Fenômenos e fatos ainda à espera de respostas e conclusões definitivas, certamente objeto do “renascimento psicodélico” em voga.
Mas por que a mescalina foi a substância fundadora do psicodelismo? Em primeiro lugar, por uma questão eminentemente cronológica: suas propriedades farmacológicas alteradoras do estado de consciência eram conhecidas desde os primeiros tempos da conquista e da colonização espanhola do México. Sobre ela, descreve o frade franciscano, Frei Bernardino de Sahagún (1499-1590), em sua obra monumental, “História geral das coisas da Nova Espanha” (1547): “Há outra planta nativa da terra chamada peiote (pepyotl). (…) Aqueles que comem ou bebem têm visões horríveis ou dão risadas. Dura esta embriaguez por dois ou três dias. (…) [tais cactos] mantêm e dão incentivo para lutar, fazem perder o medo, a sede ou a fome; [segundo os nativos] eles os afastam de todo o perigo”.
“Foi em 1886 que o farmacologista alemão Louis Lewin publicou o primeiro estudo sistemático sobre o cacto que, tempos depois, receberia o seu nome [Anhalonium lewinii]”, afirma Aldous Huxley, logo na abertura do seu livro, “As portas da percepção”. O próprio ensaísta achou necessário retroceder quase setenta anos antes de contar sua experiência com a mescalina, a fim de demonstrar que os fatos ocorridos naquela tarde não se deram de maneira fortuita. Ao contrário, faziam parte de um encadeamento histórico potencialmente capaz de originar um novo paradigma cultural para o Ocidente do pós-guerra, naquele momento interessado em assimilar de novos padrões de comportamento.
Foi nesse contexto que Huxley apresentou ao mundo Louis Lewin (1850-1929). Lewin era professor emérito da Universidade de Berlim e um farmacologista brilhante, detentor de um conhecimento humanístico e clássico primoroso, interessado por topografia e viagens. Suas palestras envolventes e sua devoção à pesquisa se equiparavam apenas à generosidade com que tratava os seus alunos e auxiliares. Lewis tinha uma personalidade brilhante, era cercado por muitos alunos, mas sempre preferiu trabalhar sozinho, sem assistentes. Em Berlim, possuía seu próprio laboratório. Não se sabe muito ao certo os motivos que atravancaram sua carreira universitária. O antissemitismo já assombrava o mundo germânico daquela época. De acordo com alguns rumores históricos, sua ascensão à cátedra de farmacologia mais importante da Alemanha teria sido a certa altura condicionada a um batismo cristão…
De todo modo, Lewis permaneceu como um dos mais influentes farmacologistas de sua época, tendo publicado cerca de 250 trabalhos originais. Seu interesse por substâncias psicoativas ficou claro desde o início de sua carreira, quando publicou um artigo sobre o “morfinismo”, bem como monografias acerca das propriedades psicofarmacológicas da kawa-kawa (Piper mythysticum) e da noz-de-areca (Areca catechu).
Em 1886, durante uma viagem aos Estados Unidos, foi apresentado aos botões do cacto peiote, pelos Laboratórios Parke Davis & Co. – coube a Lewin as primeiras investigações sistemáticas sobre o peiote, por intermédio das quais constatou que as propriedades mágicas do cacto sagrado estavam relacionadas à presença de um alcaloide, batizado por ele de “anhalonina”. Inicialmente, o Museu de Botânica de Berlim nomeou a planta Anhalonium lewinii. Nas décadas seguintes, no entanto, a publicação de novos estudos botânicos questionando essa “nova espécie”, somado à obtenção do extrato do alcaloide (1897) por Arthur Heffter (1859-1925), a síntese desse (1919) por Ernst Späth (1886-1946) (Universidade de Viena e Laboratórios Merck) levaram à troca completa de ambos nomes: o cacto passou a ser denominado Lophophora williamsii e o seu alcaloide, mescalina.
No limiar do século XX, Louis Lewin, ampliou a classificação botânico-psicoativa de Linnaeus e propôs uma nova nomenclatura: (1)euphorica, para as susbtâncias opioides, (2)inebriantia, para as bebidas alcoólicas, (3)excitantia, para os estimulantes em geral, (4)hypnotica, para os sedativos que surgiam naquela época, como o cloral e (5)phantastica, para as substâncias alucinógenas.
Deriva daí o segundo motivo pelo qual a mescalina foi a substância fundadora do pscidelismo: a partir da criação do termo “phantastica”, em relação ao qual a mescalina era uma espécie de protótipo, Lewin procurou ressaltar as propriedades farmacológicas capazes de aguçar os sentidos a ponto de distorcê-los em ilusões cheias de onirismo, sem o comprometimento do nível de consciência e da crítica acerca da alteração psíquica em curso. Bem diferente do termo “alucinógeno”, que se refere ao aparecimento de imagens desprovidas de um objeto real (ou seja, “do nada”), com ausência completa de crítica acerca de tais distorções – situação raramente (ou nunca) observada para essa classe de substâncias.
De acordo com a visão de Lewin, a consciência humana possui grande habilidade para avaliar e concatenar os estímulos externos ao psiquismo. No entanto, seu alcance em relação aos estímulos e demandas internas é altamente precário. Frente a esses fenômenos, a consciência adota posturas altamente polarizadas: ora negando, rechaçando ou se esquivando de tais demandas interiores, ora encarando-as como sinal da presença divina, um fenômeno digno apenas de pessoas iluminadas e especiais – escolhidos de Deus.
A partir dessa constatação, Lewin chegou a três conclusões que “destrancaram” as Portas da Percepção que Huxley abriria setenta anos depois: (1) os estados visionários são estados transitórios, decorrentes da presença de substâncias produzidas pelo próprio organismo; a ação de tais substâncias fazem com que o indivíduo vivencie “a realidade” de modo subjetivo, sem a devida crítica de sua parcialidade; (2) substâncias da classe “phantastica” são capazes de desencadear estados visionários em pessoas consideradas “psiquiatricamente normais” – reforçando a ideia de que o patológico tem ao menos alguma base bioquímica; no entanto, diferentemente da condição doentia, a consciência crítica a respeito da ação dessas substâncias encontra-se plenamente preservada. (3) A mescalina é a chave para se acessar e explorar tais estados.
Lewin definiu a experiência extática desencadeada pela mescalina como “um estado de alegria da alma”, variavelmente pleno de prazer e satisfação. Nenhuma sensação desagradável parece perturbar essa experiência onírica. O senso de ilusão e as distorções sensoriais transformam objetos ordinários em maravilhas! As cores ganham delicadeza e variedades que a percepção humana regular seria incapaz de captar. Tais visões fantásticas (internas) quase sempre vêm acompanhadas por alucinações auditivas – de tinidos a verdadeiras sinfonias – maravilhosamente doces e harmoniosas. Tudo isso sem prejuízo da consciência plena e ativa, capaz não apenas de perceber tais alterações e de reconhecer sua natureza intoxicante, bem como de funcionar adequadamente da vigência dessas.
Meio século antes de passar pelas mãos literatas de Aldous Huxley, a maçaneta das portas da percepção (recém-destrancadas por Lewin, em 1886), foi rodada quase ao mesmo tempo (1895-1896) por dois proeminentes médicos e pensadores Revolução Científica. Nos Estados Unidos, o médico, poeta e romancista Silas Wier Mitchell (1829-1914), um dos pais da neurologia moderna, tomou conhecimento dos “botões de mescal” em 1895, ao ler um artigo sobre suas propriedades psicoativas. No ano seguinte, publicou no British Medical Journal as impressões de sua experiência com o cacto. Na Inglaterra, o médico britânico Havelock Ellis (1859-1939), pai da psicologia da sexualidade, entrou em contato com o peiote por intermédio do Escritório de Etnologia dos Estados Unidos (1896). Dois anos depois, publicou suas experiências com o peiote – naquele momento ainda conhecido por Anhalonium lewinii.
Tanto Mitchell quanto Ellis eram cientista dotados de formação humanista, clássica e artística robustas, sendo eles próprios considerados escritores e romancistas. O formato escolhido para descrição de suas experiências era muito parecido com o que Huxley adotaria meio século depois em seu “As Portas da Percepção”. Além disso, uma narrativa delicada e visualmente regozijante era própria dos três autores. De acordo com o próprio Huyxley, ambos atribuíram à mescalina um lugar de honra entre as drogas e os medicamentos.
Certamente, a vigência do período vitoriano – economicamente promissor, porém, moralmente autoritário, congestionado e nebuloso –, a inexistência de vanguardas artísticas interessadas em explorar o “eu interior”, como o surrealismo e a ausência dos efeitos devastadores das duas guerras mundiais sobre o senso de humanidade certamente não permitiram que esses precursores do psicodelismo pudessem admirar o novo cenário em sua plenitude. Talvez além disso, valendo-se das palavras do próprio Huxley, mesmo os visionários menos talentosos são capazes de “perceber uma realidade interior não menos tremenda, bela e significativa”, mas faltam-lhes, por completo “a capacidade de expressar, em símbolos plásticos ou literários, aquilo que viram”.
Por fim, em terceiro lugar, a importância da mescalina para o psicodelismo deve levar em consideração o fato de que a molécula dos xamãs astecas continuou a ser amplamente utilizada, tanto em pesquisas científicas, quanto em experimentos artísticos no período entre-guerras, especialmente entre 1920 e 1936, quando outros psicodélicos similares, como a psilocibina (“cogumelos mágicos”) e o LSD ainda não haviam sido sintetizados laboratorialmente. Portanto era a mescalina – não o LSD – o protótipo do alucinógeno capaz de desencadear experiências extáticas e visionárias, pelo menos até o início dos anos quarenta. Além disso, a mescalina não apenas “caíra no gosto” de cientistas, artistas e intelectuais como também passaria a favorecer um contato cada vez mais próximo, íntimo e amplo entre ambos.
Nesse sentido, o memorável encontro entre Huxley e Osmond (1953) foi o exemplo mais pronto e emblemático de uma interação científico-artística iniciada pelo menos vinte e cinco anos antes. Durante os anos vinte, do ponto de vista exclusivamente acadêmico, os trabalhos mais relevantes com a mescalina envolveram grupos de pesquisadores sediados nas Universidades de Heidelberg (Alemanha) e Chicago (EUA), respectivamente sob a liderança de Kurt Beringer (1893-1949) e Heirinch Klüver (1897-1979). Assim como os seus antecessores, ambos tomaram parte dos experimentos por eles mesmos desenhados, descrevendo suas sensações e percepções em busca de padrões cognitivos e visuais capazes de favorecer insights e de funcionar como uma ferramenta de exploração do psiquismo.
Nos anos trinta, pelo menos até a eclosão da II Guerra Mundial, houve uma grande profusão de experimentos decorrentes do contato entre neurologistas, psiquiatras, psicólogos e artistas do surrealismo. Segundo Mike Jay, “os pesquisadores passaram a procurar filósofos que pudessem construir um significado para aquelas experiências e artistas capazes de capturar tais experiências no papel ou na tela”. Os encontros entre Walter Benjamin e o psiquiatra Fritz Fränkel (Berlim, 1934) e entre os amigos de infância Jean-Paul Sartre e o psiquiatra Daniel Lagache (Paris, 1935) marcaram assim a “pré-história” da psicodelia. Nesses encontros, os filósofos ‘mescalinizados’ participavam de conversas, testes cognitivos ou projetivos (Rorschach), audições, oficinas de artes plásticas etc.
O mesmo aconteceu com os artistas plásticos. Em seu artigo, “Basil Beaumont: mescaline report” (London: Psychedelic Press; 2019), Mike Jay elencou exemplos de experimentos psicológico-artísticos, de diferentes países europeus. Na Polônia, o psicólogo Stefan Szuman acompanhou a produção artística do pintor Stanislaw Ignacy Witkiewcz sob influência de mescalina (1929-1930) (Figuras 6-7); na Romênia, o neurologista Georghe Marinescu tomou mescalina em companhia de sete artistas plásticos e músicos (Figura 8), publicando pinturas a guache decorrente dessa experiência coletiva em um período científico francês (1932); na Inglaterra, entre 1930 e 1936, o psiquiatra alemão de origem judaica, refugiado em decorrência do Terceiro Reich, desenvolveu no Maudsley Hospital uma série de estudos com mescalina envolvendo celebridades (Figuras 9-13), como o dançarino Vaslav Nijinsky e o artista popular (“pintor de gatos”) Louis Wain. Os pintores surrealistas Julian Trevelyan e o Basil Beaumont também tomaram parte desses experimentos.Por fim, o poeta, escritor e dramaturgo francês, Antonin Artaud (1896-1948), visitou o México, entre 1935-1936, onde teve contato com a membros da cultura Tarahumaras. Nesse contexto, participou de rituais de peiote, passando a considera-lo uma ferramenta valiosa para explorar o eu-profundo. Tais experiências foram organizadas em “Les Tarahumaras” (1947), uma obra escrita ao longo de doze anos – incluindo o tempo que o dramaturgo ficou internado no hospital psiquiátrico em Rodez (1943-1946) –, tendo sido publicado no ano anterior a sua morte. A obra foi posteriormente rebatizada como “A dança do peiote” (1976). O livro é um importante marco da literatura sobre drogas, na medida em que fornece um texto intrigante sobre um possível valor essencial das substâncias psicoativas, não apenas como uma forma de questionar o sistema e suas formas de controle, como também de reivindicar direitos e autonomia – a intoxicação como método de investigação intelectual e como atitude contestatória. O ideário de liberdade e tolerância apregoado com veemência por Artaud influenciaria e produziria ecos que reverberaram durante todo o período de degelo – desde o pós-guerra ao término da Guerra Fria (1945-1989), fazendo-se ouvir até os dias de hoje.
Desse modo, quando a Grande Guerra chegou ao fim e a humanidade pôde finalmente retornar a suas casas, curar suas feridas – físicas e morais –, reconstruir seus legados em ruínas e seguir adiante, a história da mescalina também estava lá, à espera de um novo capítulo, capaz de inseri-la novamente na cultura seculovinteana. Osmond e Huxley se propuseram a escrevê-lo.
O ensaísta inglês, que já tivera contato com a obra de Lewin desde os anos trinta, inicia “As Portas da Percepção” sintetizando brilhantemente tudo o que foi dito até aqui:
“Os químicos não só isolaram o alcaloide [extratos] como também aprenderam a sintetizá-lo [em laboratório], de modo que sua disponibilidade já não depende da colheita eventual e intermitente de um cacto do deserto. Psiquiatras ingeriram mescalina com a esperança de adquirir uma compreensão melhor e mais direta dos processos mentais de seus pacientes. Psicólogos (…) observaram e catalogaram alguns dos efeitos mais notáveis da droga. Neurologistas e fisiologistas desvendaram, em parte, o seu mecanismo de ação sobre o sistema nervoso central. E pelo menos um filósofo tomou mescalina com o intuito de lançar luz sobre antigos enigmas não resolvidos, tais como o lugar da mente na natureza e a relação entre o cérebro e a consciência.” [negritos do autor desta resenha]
E prossegue oferendo uma linha de continuidade para aquele delicado e complexo experimento, naquele instante em busca de um novo paradigma dentro da cultura do pós-guerra:
“Apesar dos quase setenta anos de pesquisas sobre a mescalina, a bibliografia psicológica que ele tinha à mão ainda era absurdamente escassa e ele estava ansioso por incrementá-la. Eu estava disponível e disposto – se não ávido – a servir de cobaia. Foi assim que, numa luminosa manhã de maio, engoli quatro décimos de um grama de mescalina dissolvidos em meio copo de água e me sentei para aguardar os resultados.”
A intoxicação extática de Huxley pelo peiote não será descrita aqui, pois merece um artigo no qual estejam contemplados o modus operandi da intoxicação, as correlações artísticas propostas pelo ensaísta e suas considerações filosóficas. Por ora, basta afirmar que ao término da experiência com a mescalina, Huxley concluiu que os efeitos da molécula sobre o psiquismo humano eram potencialmente capazes de tornar as pessoas “mais sábias e menos presunçosas; mais felizes e menos autocomplacentes; mais humildes no reconhecimento de sua ignorância, mas também mais bem equipadas para compreender a relação entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o Mistério insondável que, sempre em vão, ele tenta compreender”.
Isso leva à última etapa: como Huxley e Osmond decidiram denominar tudo aquilo? Ambos estavam resolutos de que a mescalina possuía “uma posição distinta entre todos os fármacos psicoativos”. A ideia da substância “phantastica”, capaz de alterar o estado da mente como um todo, ser visionária e “dar voz” ao psiquismo já estava posta desde Lewin (1886-1924). Em uma carta de junho daquele ano, pouco mais de um mês após a experiência, Huxley contou a Osmond seu projeto de escrever “As portas da percepção”, citou Blake e tratou a experiência daquela manhã com a mescalina como “a mais extraordinária e significativa disponível para os seres humanos deste lado da Visão Beatífica; [a mescalina] abre uma série de problemas filosóficos, lança luz intensa e levanta todo tipo de questões nos campos da estética, religião e teoria do conhecimento”.Durante o ano de 1955, Huxley tomou mescalina outras duas vezes e no final daquele ano conhecera o LSD; em todas essas ocasiões esteve na companhia do escritor e filósofo britânico radicado nos Estados Unidos, Gerald Heard (1889-1971), e o magnata do urânio Alfred M. Hubbard (1901-1982). A preocupação de Huxley e Osmond de encontrar um termo que abarcasse a complexidade farmacológica daquelas experiências apareceu nas missivas que ambos trocaram, em 1956.
Incialmente, Osmond estava disposto a alcunhar o termo “psicodético” (divisor da mente), provavelmente pensando em suas propriedades psicótico-análogas – esquizofrenia, do grego, significa “mente cindida”. Huxley não se empolgou com o termo; ele estava resoluto de que as propriedades farmacológicas relacionadas aos efeitos visionários e de expansão da mente deveriam constar na certidão de nascimento dessa nova classe de drogas de forma clara e direta. Partindo de um dicionário de radicais gregos, Huxley escolheu o prefixo phaneroen (tornar visível ou manifesto) e o adjetivo phanero (visível, manifesto); em seguida, sugeriu dois termos a Osmond: drogas fânero-psíquicas (phaneropsychic drugs) ou drogas fanerotímicas (phanerotymic drugs), nesse último caso combinado “phanero” (tornar manifesto) com “thymos” (alma) – “tornar manifesto o que provem da alma”, eis o termo que mais agradou Aldous Huxley – “a palavra é eufônica e fácil de pronunciar”, arrematou o ensaísta.
Huxley e Osmond certamente continuaram a trocar impressões terminológicas sobre as propriedades farmacológicas da mescalina, da psilocibina e do LSD. De toda forma, quase um ano depois da carta de Huxley, Osmond publicou nos Anais da Academia de Ciências de Nova Iorque (vol. 66, num. 3 | pgs. 418-34) o nome que escolhera para aquela classe de substâncias e os motivos que o conduziram àquele termo. As ponderações de Huxley podem ser identificadas de forma clara na argumentação apresentada por Osmond:
“Se mimetizar doenças mentais fosse a principal característica desses agentes psicotomiméticos seria de fato um termo genérico adequado. A verdade é que eles fazem isso, mas fazem muito mais. (…) Tentei encontrar um nome apropriado para os agentes em discussão: um nome que incluísse os conceitos de enriquecimento da mente e de alargamento da visão. Algumas possibilidades são: psicofórico, transformador da mente; psico-hórmico, excitante da mente; e psicoplásico, moldador da mente. Psicozínico, fermentador da mente, com efeito é apropriado. Psico-réxico, explosor do espírito, embora difícil, é memorável. Psicolítico, libertador da mente, é satisfatório. Minha escolha recai sobre psicodélico, manifestador da mente, porque é clara, eufônica e não contaminada por outras associações.”
Dessa maneira, estavam postas as bases para a fundação e construção daquilo que ficaria conhecido para sempre como “psicodelismo”, “psicodelia” ou “cultura psicodélica”. De acordo com Mike Jay, o ideário daquele encontro, registrado um ano depois em “As Portas da Percepção” perderia impacto e coloração mnemônica já desde os primeiros tempos da contracultura massificada dos anos sessenta. Ainda assim, emprestou seu nome para a seminal banda de rock californiana “The Doors” (“Os Portas”…da Percepção) e influenciou diretamente os protagonistas da “revolução psicodélica”, nessa mesma década – vale lembrar que foi por intermédio de Aldous Huxley, em 1961, que Michael Hollingshead tomou conhecimento e procurou o grupo da Harvard Psychedelic Project (1958-1963) – liderado pelo psicólogo Timothy Leary (1920-1996) – levando consigo 4.975 torrões de açúcar, fabricados com açúcar glacial, água e… LSD (de onde vem o seu apelido, “doce”). Essa molécula, ao longo daquela mesma década, acabaria por transformar Leary no “guru do LSD” e do todo o psicodelismo. Mas essas já são outras histórias.
Referências
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ARQUIVOS PSICODÉLICOS | Resenhas sobre o passado, de olho no futuro.
O tratamento de transtornos mentais e o uso psicoterapêutico com fármacos denominados “psicodélicos” – em voga durante os anos sessenta e setenta – voltaram a ganhar relevância nos últimos vinte anos. Saudosismo e temores do passado se misturam, na atualidade, com ‘novas’ pretensões científicas de transformar essas moléculas em tratamentos psicofarmacológicos eficazes. Nesse sentido, os “Arquivos Psicodélicos” têm por finalidade a publicação de artigos e resenhas vinculados ao psicodelismo aplicado à psicologia e a psiquiatria dos anos cinquenta e sessenta para investigar erros e acertos, bem como suscitar discussão e reflexão acerca dessa “nova onda” psicodélica formada a partir do terceiro milênio.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).
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