“O Fantasma de uma Pulga – A Voz do Demônio”, c.1819–20, William Blake – Foto: Tate Gallery
William Blake (1757-1827) é o protótipo do homem europeu, que na transição para o século XIX, sentiu com intensidade especial a ação do subjetivismo, do idealismo e das forças místicas da natureza sobre a estrutura racional do psiquismo humano. Desde cedo, o pintor e poeta vivenciou o efeito da ruptura desse tecido que vinha sendo calcinado pela razão desde o Renascimento: aos quatro anos viu a face de Deus de sua janela. Quando adulto, tornou-se um vidente, um místico propagador das ideias alquímicas há muito desaparecidas (mas não esquecidas). Em A voz do, o poeta apresenta um mapa do psiquismo humano que seria de grande utilidade para os futuros ‘exploradores do inconsciente’:
Todas as Bíblias ou códigos sagrados têm sido a causa dos seguintes erros a saber:
- Que o Homem tem dois princípios reais de existência, a saber: um Corpo e uma Alma.
- Que a Energia, cognominada Mal, provém exclusivamente do Corpo; e que a Razão, cognominada Bem, não provém senão da Alma.
- Que Deus atormentará o Homem pela Eternidade por haver seguido as suas Energias.
Mas, por outro lado, são verdadeiros, os seguintes Contrários:
- O Homem não tem um Corpo distinto da Alma, pois aquilo que se chama Corpo é uma porção da Alma discernida pelos cinco Sentidos, as principais vias de acesso da Alma neste estágio de nossa existência.
- A Energia é a única vida, e dimana do Corpo. A Razão é a linha divisória ou a circunferência exterior à Energia.
- A Energia é Eterna Delícia.
Aqueles que reprimem o desejo assim procedem porque o que possuem é bastante débil para ser refreado; e o repressor, isto é, a Razão, usurpa o seu lugar e governa os relutantes. E o desejo sofreado vai-se gradualmente tornando inerte até reduzir-se a uma sombra do que era.
“Beatriz se dirigindo à Dante de sua carruagem”, (1824) – Foto: Divulgação
Apesar de ir em sentido contrário ao Racionalismo, por esse se negar a ‘enxergar’ o espiritual, o poeta também deixa claro seu ponto de vista absolutamente contrário ao dualismo cristão, pois para ele, Jesus Cristo simbolizava justamente a ponte e a união entre o natural (divino) e o humano. Em O Livro de Urizen (1794), BLAKE deixa claro sua opinião acerca da ação dessas duas correntes sobre o psiquismo humano: nessa epopeia mitológica blakeana, Urizen, é uma personificação do racionalismo humano, que consegue, por i n t e r médio de s e u s encadeamentos lógicos , enclausurar o Firmamento, para, em seguida, valendo-se das organizações religiosas, atrofiar todos os sentidos da humanidade.
Quase meio século antes do nascimento de BLAKE, na primeira metade do século XVIII, já era possível notar sinais de fragilidade e fissura nas construções e nos emblemas da Razão, graças à obra artística de GIOVANNI BATTISTA PIRANESI (1720-1778), um dos mais célebres gravuristas da história da arte universal . O artista, ao longo de sua profícua carreira, retratou os monumento da Cidade Eterna com tamanha precisão e espírito neoclássico, que suas gravuras até hoje se confundem com a própria identidade romana, tornando-se, por isso, ‘retratos oficiais’ da mesma.
Nesse contexto, Piranesi produziu gravuras, tanto de fachadas, quanto de interiores, que continham a essência da ordem, da elegância e da estabilidade desejadas pelo espírito racionalismo, numa matemática capaz de produzir resultados quintessenciais. No entanto, não faltavam ilustrações de monumentos em ruínas, que deixavam transparecer a preocupação com a fragilidade ou mesmo com a decadência dos constructos humanos, logo invadidos pela vegetação insolente, que os convertia rapidamente em meros adornos das forças da natureza.
Por fim, sua série “Cárceres” (Carceri) (1746-1765) revela um artista impressionado pela grandiosidade fantasmagórica e opressiva dos calabouços. Sua arquitetura, labiríntica e obscura, era capaz de transmitir ao expectador a angústia acerca da existência de um mundo subterrâneo para o qual ninguém estava isento de ser levado. Pior ainda: seu retrato poderia ser a trágica constatação de que os seres humanos já se encontravam ali, faltando-lhes apenas um ‘espelho’ capaz de trazer à tona a sua miserável condição.
G.B. Piranesi, “Le Carceri d’Invenzione”, 1745-1750 – Foto: Divulgação
Diferentemente de PIRANESI, WILLIAM BLAKE tinha o espírito mais livre das influências do classicismo, o que o transformou em um crítico voraz, tanto da sua estética, quanto dos seus ideais. Dois artistas contemporâneos de Blake, que também se posicionaram na vanguarda do Romantismo, merecem destaque aqui: são eles os pintores HENRY FUSELI (1741-1825), suíço de nascimento e inglês por adoção, e o espanhol FRANCISCO GOYA (1746-1828). A obra de FUSELI ilustrou algumas cenas do teatro de SHAKESPEARE, da Bíblia e de épicos da humanidade, trazendo o erotismo, o misticismo e o simbolismo à pintura do fim do século. Numa de suas obras mais conhecidas, O pesadelo (1781), uma bela jovem adormecida, provavelmente após se embriagar com a poção contida em um frasco sobre o seu criado-mudo, recebe a visita fantástica de seres do recôndito de sua alma.
Já o espanhol FRANCISCO GOYA, um dos pintores mais consagrados e disputados pela aristocracia madrilena no último quartel do século XVIII, sinceramente interessado e devotado ao folclore e às tradições espanholas, sofreu uma mudança radical: após contrair uma grave doença que paralisou a maior parte dos seus sentidos, esta debilitou-o fisicamente e o isolou do convívio com seus pares por algum tempo, sendo que então ele passou a se interessar pelo sombrio e a mostrar em seus trabalhos ‘o outro lado’ das formas iluminadas e estáveis do mundo burguês neoclássico. Prisões e manicômios também foram retratados pelo pintor e impressionavam por dois motivos: o primeiro, pelo realismo, que em tom de denúncia e de apelo em favor da dignidade dos oprimidos, se dirigia ao espírito ético do homem contemporâneo, rogando sua adesão às causas libertárias; em segundo, pelo simbolismo, que se dirigia à consciência humana dizendo que a loucura, o crime e demais aspectos sombrios não podem ser extirpados da psique.
“O Pesadelo”, Henry Fuseli, 1781 – Foto: Divulgação
Acontece que a partir de agora, graças ao legado e tradição racionalista, a humanidade se viu para pronta, para cingir esses mares revoltos, indóceis e indolentes. Eis o elo que Blake e outros gênios de sua época constataram: os instrumentos da razão existem para a humanidade aprender a surfar a onda – navegar é preciso –, nunca para comandar, subjugar ou subverter as leis naturais que governam o seu comportamento imprevisível, capaz de produzir desde ondas tépidas e tranquilas até tsunamis catastróficos. Desse modo, ao mesmo tempo em que desinflou a razão de sua pretensões megalomaníacas, anunciou ao mundo que seria apenas por intermédio dela, que a exploração do mundo natural seria possível – sem ela, estaríamos fadados a construir bezerros de ouro por toda eternidade. Uma mudança radical da percepção da realidade e da condição humana sem a necessidade de ruptura, mas sim de apropriação, ressignificação e acima de tudo, de maturidade, construída com erudição e despojamento. Pronto, nasceu a contemporaneidade.