Top

Brasileiro está na lista de selecionados para o Cannes Classics

Glauber Rocha – Foto: Reprodução/Vídeo

A produção brasileira “Antena da Raça” integra a lista dos sete documentários da seleção oficial na edição de 2020 da Mostra Cannes Classics. Excepcionalmente, neste ano, por conta da pandemia de coronavírus, os filmes serão apresentados no Festival Lumière, em Lyon, entre 10 e 18 de outubro, e no Réncontres Cinématographiques de Cannes, entre 23 e 26 de novembro.

SIGA O RG NO INSTAGRAM

Com 80 minutos de duração, a obra, que tem como diretores Paloma Rocha e Luís Abramo Campos, retoma a experiência transgressora, o contexto político e cultural em que o programa “Abertura” – exibido por pouco mais de um ano entre 1979 e 1980, quando foi extinta a TV Tupi – e Glauber Rocha estavam inseridos.

Na época, Glauber ousou na linguagem televisiva, quebrando as regras das entrevistas na TV, propondo temas polêmicos em um período que o país passava por um processo de redemocratização.  A linguagem utilizada por Paloma e Abramo dialoga com o estilo glauberiano, provocando uma reflexão crítica sobre o processo democrático, o papel da sociedade e sua relação com os meios de comunicação.

Paloma Rocha – Foto: Divulgação

“Não é um documentário sobre Glauber ou um tributo a ele, até porque a relação com meu pai desmistificou essa coisa de tributo, de ele ser gênio etc. Aliás, a genialidade dele era justamente essa, a de saber se aproximar e falar às pessoas de forma simples e direta. Nesse sentido, quisemos resgatar essa efervescência cultural e o desejo de liberdade do final dos anos 70 para hoje, e a própria obra do Glauber permite isso, pois, nela, o passado transita pelo presente como se todos estivessem no mesmo plano. Utilizamos os personagens das obras dele como um contraplano ao Brasil de hoje”, diz Paloma.

“Fomos às ruas, eu e Abramo, para entender os temas que Glauber prenunciava 40 anos atrás e estabelecemos um diálogo com o que está acontecendo. Os personagens de Glauber são atemporais, permitindo fazer esse paralelo com a atualidade”, complementa.

Paloma destaca, ainda, que“Antena da Raça” resgata a inspiração, o vigor de seu pai e, sobretudo, seu legado de coragem e lucidez, como disse o cineasta e escritor Orlando Senna.

Quanto à inclusão do filme entre os finalistas do Cannes Classics, a diretora identifica motivos de satisfação. “Além de ser um dos mais representativos festivais do mundo e Glauber ter sido premiado nele, a França é um país que se preocupa em preservar e divulgar seu cinema. E permitir a Glauber voltar a esse evento nos dá uma sensação de dupla realização: levar a mensagem dele para esse festival e ter conseguido experimentar uma nova linguagem que lida com essa atemporalidade e não se enquadra em nenhum gênero de cinema. Um filme que mostra Glauber como ele era realmente, todo descabelado e sem camisa. Não é uma obra para inglês ver, como costumamos dizer. É um filme sem paletó, sem smoking, mas com a alma dele sempre presente”, diz.

Complementarmente, a diretora afirma que este reconhecimento também significa a possibilidade de dar continuidade ao trabalho, pois, segundo ela, o filme não se encerra em si. “É uma reflexão aberta e fico muito feliz pelo fato de Cannes compreender essa proposta de fazer algo totalmente sem concessões por meio da nossa percepção de como vemos o mundo pelo olhar do Glauber”.

Luís Abramo – Foto: Divulgação

Uma câmera na mão e o Brasil na cabeça

Ao rever o processo de “Antena da Raça”, Abramo afirma que fazer o filme foi percorrer um caminho inverso. “Paloma me convidou para esse desafio de fazer um filme investigativo sobre o rumo que o país estava tomando 40 anos depois da abertura democrática e saímos na busca desse diálogo tendo o espírito desprendido do programa ‘Abertura’e o comprometimento do Glauber com o seu povo. Também sou filho de um cineasta baiano (Fernando Coni Campos) e também vivi, com minha família, as angústias que essa geração sofreu com a ditadura militar. Na obra, atualizamos o que sempre será contemporâneo e tentamos homenagear essa geração de artistas que corajosamente defendeu suas ideias, no entendimento da força da arte como forma de transformação social. Contrapomos as ideias de Glauber com o momento político atual, a eleição de Bolsonaro [Jair, sem partido] em 2018, levando para a presidência um representante da extrema direita no país. Tínhamos em mente as seguintes questões: O que será de nosso país? O que será de nossa cultura? Quem irá resistir em meio à onda reacionária que aflora o país? Glauber, em seu programa na extinta TV Tupi, sonhava com a liberdade que estava chegando. Nós tentamos entender que País virou depois desse processo democrático”, afirma.

Quanto à produção do filme, Abramo afirma que foi um processo longo, com filmagens intermitentes, intercalando o tempo dentro da ilha de edição com as imagens de Glauber. “Imbuídos dessa herança de cinema, a clássica referência de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, adotamos um formato que acreditamos: uma equipe mínima e a certeza de que o conteúdo devesse se sobrepor à estética. Claro que, como fotógrafo, é sempre difícil abrir mão de certas amarras. Mas abrimos, pois entendemos que esteticamente que este era o diálogo que buscávamos em que o personagem e sua história deveriam estar sempre acima de qualquer estética. Filmamos os contraplanos do Glauber nos seus filmes e nas suas falas e entrevistas do programa ‘Abertura’.  O nosso parceiro, o editor Alexandre Gwaz, tem profundo conhecimento da obra do Glauber e confrontou os personagens dos filmes dele com os personagens que encontramos nas ruas, ampliando este diálogo de uma proposta que desafiasse as heranças e trouxesse a atualidade e força das ideias de Glauber e de sua geração.”

Como resultado dessa imersão no universo glauberiano, “Antena da Raça”, mais do que dialogar com o estilo do programa “Abertura”, permite algumas constatações. Passadas quatro décadas, a frágil democracia do país está novamente em risco e, assim como ontem, ainda hoje as palavras de Glauber, seu comportamento não-conformista e seu desejo de interferir na realidade brasileira seguem atuais.

Mais de Cultura