Cultura

Pandemias: efeitos colaterais da civilização humana

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Arnold Böcklin (1827-1901), “A Peste” (1898) – Foto: Kunstmuseum Basel, Basileia, Suíça

As pandemias são as inimigas naturais da civilização humana. Assim que os primeiros lampejos de consciência começaram a transformar o ambiente natural, por meio empreendimentos cada vez mais complexos e sofisticados, as infecções contagiosas foram se imiscuindo e se misturando às suas pretensões solares, até o ponto de se tornarem parte integrante da argamassa que compõe o arcabouço estrutural de todas as civilizações.

Elas são parte integrante da aventura civilizatória humana. E sua inimiga mais íntima. Ela repousa silenciosamente dentro do concreto mais duro e absoluto das convicções racionais, até serem despertadas pelos infortúnios, tropeços e reveses da trajetória humanas sobre a Terra. Nesse instante, assim como um ninho de cupins se refestela em um compensado barato, úmido e macio de tão apodrecido, a pandemia corrói a civilização partindo de dentro de suas estruturas, deixando transparecer em sua fachada – outrora toda cheia de perfeições e boas intenções –, as injustiças sociais, o racismo, o egoísmo humano em suas formas mais perversas e torpes. Tudo isso vem à tona da maneira mais crua e cruel possível.  Não há nesse instante ação ou demão de tinta capaz de disfarçá-las ou de amenizar os seus efeitos. A pandemia é a civilização desprovida de romance.

As pandemias não são apenas uma ameaça à vida humana, mas ao legado de toda a humanidade sobre a Terra. O medo do contágio, misturado em nossas vísceras e ossos muito antes de se transformar em substância fluída, tem a capacidade de nos “desumanizar”, nos reduzir a animais perseguidos e acuados. A razão perde o sentido, deixando ao encargo dos medos irracionais a concepção de uma nova realidade, na qual a autopreservação figura como primeira lei.

Os “sentimentos humanos” sucumbem perante “o medo de uma morte torturada”, comentou o filósofo e romancista do existencialismo, enquanto escrevia sobre a peste. Sentimentos ancestrais de perda e desamparo refletem a capacidade aniquiladora das pandemias e seus desdobramentos imprevisíveis, ainda que toda a tecnologia do planeta fosse capaz de reduzi-la a fantasias catastróficas e pensamentos de ruína infundados.

As pandemias têm cadeira cativa no psiquismo humano. Incontáveis deuses da peste, de civilizações da mais pura antiguidade, ocupam as primeiras fileiras desse teatro no qual se interpretam as comédias humanas. Ratos roendo a roupa do rei de Roma. O rei está nu e a civilização, permanentemente em xeque por esse símbolo convertido em seu próprio arquétipo – e vice-versa.

“Peste”, William Blake. (1805) – Foto: Divulgação

Mas as pandemias não são apenas sinal de descalabro. Elas são um enigma esfíngico à espera de elucidação. Decifrá-la significaria alçar o empreendimento civilizatório a um novo patamar de excelência e sofisticação. Acontece que não há salvação possível se as propostas de abordagem se resumirem a um banho higienista ou a uma tigela de leite pasteurizado, quentinho. A mais terrível e fascinante das criaturas míticas, ao mesmo tempo selvagem, sábia e perspicazmente alada, traz embaixo de suas unhas todo o tipo de degenescência humana. É preciso se apropriar desse material infecto, reconhecê-lo como um problema nosso, da humanidade, da civilização, para em seguida metabolizá-lo sob a égide de transformações sociais e culturais prementes até o ponto em que possa ser transformado novamente na argamassa aparentemente inerte, suficientemente consistente para estruturar e apoiar novos avanços e mentalidades ainda mais sofisticadas, no interior da qual as ameaças de pestilência dormem calma e silenciosamente outra vez.

A peste pandêmica é, desse modo, a tentativa de apreender de uma só vez, os dois lados da mesma moeda: o flagelo que ameaça nosso senso de humanidade começará a ser vencido no momento em que nos tornarmos capazes de ser genuinamente humanos, lado a lado no mesmo barco – algumas vezes à deriva e exilados de nós mesmos –, apenas com a certeza de que “nunca haverá liberdade enquanto houver flagelos”, e que esses últimos servem essencialmente para que possamos encontrar nossa humanidade perdida. Ela nos impregna, assim como a peste, desde nossas vísceras e ossos, até chegar aos nossos corações e mentes; é por intermédio dos seus desígnios, que nos tornamos capazes de nos transformar em seres humanos admiráveis, ao invés de criaturas desprezíveis. Fiquem bem e em casa.

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