“Horrível situação! Sentir o espírito fervilhar de ideias, e não mais poder atravessar a ponte que separa os campos imaginários do devaneio das colheitas positivas da ação. Se aquele que me lê agora conheceu os imperativos da produção, não tenho necessidade de descrever o desespero do nobre espírito, clarividente, hábil, lutando contra essa danação de gênero tão especial. Abominável enfeitiçamento! [que leva à] diminuição da vontade (…): responder a cartas? Trabalho gigantesco (…); questões de dinheiro? Estafante puerilidade. A economia doméstica é negligenciada (…); [ao final, resta] um espírito, condenado a desejar o que não pode adquirir; um bravo guerreiro, insultado naquilo que ele tem de mais caro e fascinado por uma fatalidade que lhe ordena que fique na cama, onde se consome numa raiva impotente.”
O século XIX poderia muito bem entrar para a história como “o século da dependência química”. No desenrolar de suas décadas, o consumo de substâncias psicoativas começou a ser problematizado do ponto de vista médico e científico, envolvendo estudiosos de diferentes países. As primeiras descrições nosológicas que culminariam na criação de termos como “alcoolismo”, “morfinismo” ou “cocainismo” surgiram nesse período. Médicos como o britânico Norman Kerr (1834-1899) trouxeram o conceito de “inebriedade” para o campo de investigação da saúde mental.
Os cientistas da segunda metade do século anterior já haviam constatado que o consumo de “inebriantes” era capaz de produzir algum tipo de prejuízo ao psiquismo humano. A afirmação do botânico e médico sueco, Carlos Lineu (1707-1778), “pai da classificação científica moderna”, de que as “plantas inebriantes” agiam como “uma poderosa chama que progressivamente agrada, aquece, queima e consome” e do psiquiatra Benjamin Rush (1746 – 1813), “pai da psiquiatria estadunidense”, de que “a embriaguez” começava como uma escolha, se tornava um habito e depois uma necessidade, não deixam dúvida a respeito disso.
Nos primeiros anos do século XIX, o médico britânico Thomas Trotter (1760-1832) colocou pela primeira vez em palavras impressas, em seu “Ensaio médico, filosófico e químico sobre a embriaguez e seus efeitos sobre o corpo humano” (1804), que “o hábito da embriaguez era uma doença da mente”. O tal “século da dependência” estava inaugurado.
O fascínio que o álcool, o ópio e a cocaína causava sobre o funcionamento mental também chamara a atenção dos poetas e artistas plásticos do Romantismo europeu. Sob os auspícios desse movimento artístico-literário, a “lado sombrio” da mente humana foi acessado pela primeira vez como forma de autoconhecimento, livre dos dogmas religiosos ou dos métodos excessivamente regrados e assépticos do racionalismo iluminista. Os preceitos revolucionários, utópicos do Romantismo, afeitos ao escapismo e ao individualismo, estabeleceriam os modos de navegar e se aprofundar nesse “encontro de águas”. Dentro dessa nova visão, o “mundo dos ínferos” da Antiguidade ou o “inferno” da Idade Média, passaria a ser chamado de “inconsciente” a partir de então.
Foram nessas águas revoltas que o poeta inglês T. S. Coleridge (1772-1834), às voltas com o hábito de consumir láudano – uma infusão de grãos de ópio em uma base alcoólica destilada – descreveu em forma de poema, o “domo de prazer” inebriante da intoxicação narcótica, onde um “rio sacro” atravessa “grutas amplas e anciãs” até desaguar em um mar desprovido de nascer ou por do sol. O poeta acabaria sucumbindo “ao hábito do morfinismo”, que o acompanhou até os últimos tempos de sua vida.
Essas ações científicas e artísticas oriundas do século XVIII lançariam luz sobre os problemas decorrentes do uso de drogas de um modo inédito: mais uma vez, os deuses das profundezas e o diabo foram despejados do lado obscuro da mente. Ela passou a ser, a partir de agora, parte do território conhecido como “mente humana”, cuja exploração idiossincrática nos confere a tão almejada “individualidade”. Ninguém nos governa a não a própria de sina de nos tornarmos seres cada vez mais autônomos.
Naquele momento, porém, a visão do inconsciente, com o perdão do pleonasmo, era demasiadamente romântica e as propostas de tratamento, pela ciência, ainda excessivamente contaminadas pelo moralismo e pela religião. Além disso, as descrições clínicas da dependência eram essencialmente orgânicas. Seria necessário o desenrolar da primeira metade do século XIX para que as ideias plantadas por Trotter pudessem germinar, crescer e adquirir viço.
No campo literário, a partir dos relatos do escritor britânico Thomas de Quincey (1785-1839) acerca do seu “vício” pelo ópio, ao lado do livro “Paraísos Artificiais”, de Charles Baudelaire (1821-1867), que os efeitos do uso crônico de substâncias psicoativas sobre o dinamismo da psique seriam descritos pela primeira vez. O livro, Paraísos Artificiais, uma reunião dos textos de Baudelaire sobre o tema, escritos entre 1851 e 1860, é o tema do presente artigo.
O Poema do Haxixe é parte integrante dessa obra. Nele Baudelaire faz uma exposição daquilo que acredita ser os efeitos agudos e crônicos do haxixe na psique humana. Tanto Baudelaire, quanto De Quincey reconheciam a capacidade que as substâncias psicoativas que utilizavam – o vinho, o ópio e o haxixe – tinham para “transformar os homens em deuses antes de lança-los ao inferno”.
Baudelaire considerava que “o gosto pelo infinito”, ou seja, esse desejo de se apropriar cada vez mais da totalidade da mente e extrapolá-la, era parte da natureza humana. Segundo o poeta, o trabalho de ampliação da mente requer acima de tudo disciplina no uso das “faculdades físicas”, da “prece assídua” e dos “ardores espirituais”. Na acepção moderna, requer um esforço intelectual e espiritual metódicos e perenes. Como resultado, “novas claridades” e um senso de “beatitude” vão sendo incorporadas ao psiquismo e dão sentido sempre renovado à existência humana.
No entanto, tal fenômeno cheio de “numinosidade” é observado com pouca frequência: são necessários grandes investimentos psíquicos – tanto afetivos, quanto cognitivos – para se alcançar uma recompensa substancial, quase sempre efêmera e fugidia.
Baudelaire acreditava que “o entusiasmo dos sentidos e do espírito” acompanha os seres humanos desde a origem dos tempos. No entanto, alguns seres, por intermédio “da farmacologia e “das bebidas mais grosseiras”, passaram a buscar a “volúpia imediata” e escapista, violando assim as “leis de sua constituição” humana. Para Baudelaire esse é o momento em que o espírito humano, regurgitado de paixões, “se entrega em bloco”, não se lembrando de estar brincando com alguém mais forte do que ele.
Nessa arquitetura psíquica baudelairiana, o haxixe aparece como um agente capaz de induzir “sonhos hieroglíficos”, ou seja, formações oníricas “sem atinência ou conexão com o caráter, a vida e as paixões do indivíduo”. Além disso, tem o condão de exacerbar o conteúdo natural dos sonhos, próprio dos seres humanos. São reações de extremo relaxamento, alegria e frenesi. Frente a essas alterações benfazejas, alguns passam “a buscar nessa geleia maldita a excitação que é preciso encontrar em si próprio”. No entanto, aquele que se entrega ao haxixe se enfraquece de tal forma, que não encontra mais a energia [psíquica] necessária para se libertar, passando à condição de “prisioneiro evadido”. Em busca de clímax, Baudelaire finalmente conclui: “tomem, se quiserem, essa forma de linguagem por uma metáfora excessiva: confessarei que os venenos excitantes parecem-me não só um dos meios mais terríveis e mais seguros de que dispõe o Espírito das Trevas para recrutar e escravizar a deplorável humanidade, mas inclusive uma de suas encarnações mais perfeitas”.
Nesse contexto, a capacidade do haxixe de levar a consciência humana ao mais esplêndido ‘altar da divindade’, do qual se torna possível apagar todas as contradições, todos os problemas filosóficos tornam-se límpidos – tudo se transforma em matéria de prazer. Eis aí, na opinião do poeta, a receita para a decadência moral.
As colocações acerca do “abominável enfeitiçamento” da consciência pelo ópio, bem como do “cérebro debilitado por uma orgia permanente” são metáforas de inquestionável clareza, acerca das preocupações do poeta com as consequências e com a “escravidão” potencialmente decorrentes da experiência paradisíaca do ópio e do haxixe, um preço caro a ser pago em troca de uma sensação evanescente de eternidade e êxtase, ou do aumento (ilusório) da capacidade criativa.
Assim, diferentemente de escritores românticos anteriores, que honravam as propriedades psíquicas das drogas, celebrando-as como suplementos para ampliar a imaginação e contato com “o misterioso”, Baudelaire escolheu escrever contra os paraísos artificiais produzidos por elas, especialmente o haxixe. Essa postura contrária ao uso de substâncias psicoativas como método de exploração da psique encontraria eco no escritor francês, poeta e teórico do surrealismo, André Breton (1896 – 1966). Em dissonância, o dramaturgo francês Antonin Artaud (1896 – 1948) não apenas via o consumo de drogas como um modo de tornar a mente mais criativa, como o considerava uma forma de combate à opressão social e às agruras do sistema. Um conflito que atravessou toda a contracultura seculovinteana e adentrou pelo terceiro milênio aparentemente insolúvel. Mas essa é outra história.
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