Cultura

Inebriantia (1762) – Circe, Medéia e a nomenclatura científica contemporânea

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Circe e Ulisses – Foto: Divulgação

A transição para o século XVIII assistiu ao surgimento de uma nova mentalidade, estruturada essencialmente pelo individualismo, pelo princípio da universalidade e pela crença inquebrantável nas forças da razão como sendo a única maneira capaz de resolver os problemas da humanidade: o Iluminismo, produto mais bem-acabado do racionalismo surgido embrionariamente no final da Idade Média, com o Renascimento europeu.

Nesse novo contexto, as plantas psicoativas, que ao longo dos séculos XVI e XVII haviam sido amplamente descritas e retratadas a partir de técnicas de coleta e de ilustração cada vez mais fidedignas e refinadas, entraram para o mundo das categorizações científicas, com a chegada do século XVIII.

Entre os tratados escritos sobre o tema, destaca-se Inebriantia (1762), primeira taxonomia de plantas psicoativas, publicada pelo botânico, zoólogo e médico sueco, CARL LINNAEUS (1707-1778) (CARLOS LINEU, em português) o criador da nomenclatura binominal, “pai” da classificação científica.  Nessa obra – na verdade a dissertação de tese de um de seus orientandos da Universidade de Uppsala (Suécia), OLAVUS ALANDER –, LINEU e seu discípulo apresentam à civilização ocidental o conceito de “inebriante”:

“Por inebriantes, queremos geralmente nos referir àqueles componentes que atuam sobre o sistema nervoso de tal maneira que ele é alterado não só na sua função, mas também em relação à consciência. Tal ação é o resultado de diferentes entidades refinadas e delicadas, as quais, como um vapor, emanam de certas plantas ou compostos, que foram refinados através da fermentação química e por isso chamados de espíritos (…). Esses inebriantes agem também como uma poderosa chama que progressivamente agrada, aquece, queima e consome. (…) O abuso dessas drogas, consequentemente, deve ser condenado, (…) [pois leva] à senilidade precoce, de modo que raramente se vê as pessoas que abusam de bebidas destiladas fortes atingirem a idade de cinquenta anos. Pelo contrário, essencialmente os que adotam formas de beber mais brandas passam dessa idade.”

Os autores classificaram as plantas inebriantes conhecidas em dois grandes grupos: “nativa inebriantia”, composta pelos agentes inebriantes de origem natural, como o ópio, a harmala, o cânhamo ou canábis, a datura, a noz da areca, o tabaco, diversas plantas anticolinérgicas, como a beladona, além de outros; e “artificialia inebriantia”, para se referir a cerveja, ao vinho e aos espíritos destilados.

O consumo desmesurado de álcool abatia cada vez a juventude sueca, transformando Lineu em um ativista do beber moderado. Devido a isso, mestre e discípulo procuram esmiuçar, ao máximo, os efeitos e danos causados pelas bebidas alcóolicas, oferecendo ao leitor uma seção inteira sobre os destilados, pois “a ação destas bebidas alcoólicas é tão notável quanto extraordinária, uma vez que elas podem alcançar o que nada mais pode e, de fato, se forem usadas corretamente, nada pode ser igual a elas. Por esta razão, os poetas cercaram-nas com uma aura de mistério”.

A fim de descrever a maneira como o consumo das mesmas era possível em baixas doses, mas absolutamente terrível e brutalizante em altas, LINEU e ALANDER evocaram dois mitos greco-romanos, Medéia e Circe, ambas vigorosas feiticeiras e mestres na arte de dissolução da consciência, ora de maneira “rejuvenecedora” até o ponto de “puerilidade”, ora “bestializante” até tornar a razão uma mera refém das emoções e dos impulsos animais.

Medéia e Jasão – Foto: Divulgação

Medéia

A história de Medéia, a filha do rei da Cólquia e amante da feitiçaria e das artes ocultas, é também a história de Jasão, herdeiro do reino de Iolco, cujo trono lhe fora usurpado por seu tio, Pélias.  Jasão fora criado longe da corte, nas montanhas, pelo centauro Quirão. Quando atingiu a mocidade, apresentou-se ao tio, vestindo apenas uma sandália, e reclamou seu direito ao trono.

Pélias, então, disse a Jasão que lhe concederia o trono caso fosse capaz de um ato extremo de heroísmo: trazer para o reino o velocino de ouro (em grego, “lã de ouro”, do carneiro alado Crisómalo), que ornamentava um bosque sagrado de Ares, na Cólquia (Geórgia atual) e que era guardado por um dragão de altíssima ferocidade.

Ao lado de cinquenta outros heróis, entre eles Héracles, Orfeu e diversos outros filhos de linhagens divinas, Jasão conduziu o seu navio, Argo, da Grécia em direção à Ásia Menor, aonde, para além do estreito de Bósforo, estava o reino da Cólquia.  Ao chegar, Jasão dirigiu-se ao rei, Eetes – irmão de Circe e pai de Medéia – e explicou-lhe romanticamente os propósitos de sua missão juvenil.

Eetes (uma alegoria da Realidade) se mostrou indiferente àquilo que o jovem Jasão entendia como aprioristicamente correto e justo: “ser rei”, “vencer na vida”; muito menos demonstrou compaixão pelo passado de abandono, rejeição e sofrimento que o infante Jasão sofrera, longe do amor de sua família e das terras paternas usurpadas pelo tio.

Pelo contrário: disse a Jasão que o cobiçado prêmio seria meritório, condicionado à realização de quatro trabalhos sobre-humanos, que incluíam subjugar touros com cascos de bronze que expeliam fogo pelas ventas, combater gigantes e matar o dragão que protegia o Velo.

Jasão estava a ponto de desistir, quando Medéia, a filha-feiticeira de Eetes e apaixonada pelo herói, decidiu ajudá-lo, desde que o mesmo a tomasse por esposa.  Ela então lançou mão de poções, bálsamos e feitiços que favoreceram Jasão, que ao final conseguiu recolher o velocino de ouro como prêmio.

Acontece que o rei Eetes se recusou a deixá-los partir com a pele de cordeiro dourada: ela fora conquistada por intermédio de subterfúgios que não desafiaram a capacidade humana de amadurecer perante as necessidades de assimilar ou desafiar seus próprios limites.  Ao invés disso, eles criavam um falso sentido de autonomia e mantinham aqueles que apelavam a tais feitiços aprisionados na puerilidade e pouco assertivos para lidar com as demandas provenientes do “mundo real”.

Frente ao novo desafio – mais uma vez –, Jasão e Medéia decidiram fugir.  A fim de garantir o sucesso da empreitada, sequestraram o caçula do rei.  Durante a fuga, assassinaram o menino e atiram os seus pedaços ao mar, fazendo com que seu pai pesaroso interrompesse a busca para recuperar os pedaços do filho e enterrá-lo dignamente.

De volta a Iolco, de posse do velo de ouro, Jasão reclamou o seu direito ao trono, recebendo, no entanto, uma negativa de Pélias.  Revoltada e contrariada pelo sofrimento do amado, a ira e o ódio se revelaram em Medéia com exuberância e sarcasmo: em primeiro procurou as filhas do soberano de Iolco e preparou uma poção de rejuvenescimento; em seguida, a bruxa destroçou um velho carneiro e mergulhou-o na mistura, tirando dessa um lindo cordeiro, jovem e cheio de vida. As ingênuas filhas de Pélias, desejosas de devolver a juventude ao velho rei, assassinaram o pai, destroçaram-no e jogaram os seus restos mortais no caldeirão; como o pai não ressuscitasse, desesperadas, abandonaram o reino em desespero e fuga.

No entanto, o filho de Pélias, igualmente um argonauta, conseguiu expulsar Jasão e Medéia de Iolco.  Ambos se exilam em Corinto. Lá, mais um infortúnio aguardava Medéia: o rei de Corinto, Creonte, ofereceu a Jasão a mão de sua filha, Creúsa, sendo a oferta prontamente aceita pelo herói.

Ensandecida pela traição funesta do marido, antes de abandoná-lo, enviou um vestido e um diadema como presente de núpcias à futura esposa de Jasão. Ao vesti-los, porém, sua carne foi calcinada em fogo e o pai, que viera a seu socorro, abraçando-a, morreu tragicamente incendiado com a filha. Medéia finalizou sua vingança contra Jasão assassinando os próprios filhos do casal a punhaladas, num mórbido ritual de oferenda destinado à deusa Hera.

Enfraquecido, abandonado e solitário, Jasão retornou a Iolco, onde morreu de forma trágica: enquanto ele descansava sob a sombra de sua nau Argos, retirada do mar para reparos, a mesma tombou fatalmente sobre o herói, esmagando-o.

Circe e as bestas – Foto: Divulgação

Circe

Circe fora uma criança enjeitada pelos pais, o deus-sol Hélio e a ninfa Perseis, e frequentemente destratada e humilhada por seus irmãos gêmeos.  Nunca tivera um lugar especial no amor de seus familiares titânicos – era uma “esquisita”.  Sua aparência “pouco agradável” e sua voz dotada de timbres humanos provocavam aversão e repulsa entre os seres divinos.

Mas se Circe tinha aparência de mortal, também tinha atributos de deusa.  Ela os descobriu com a ajuda do irmão caçula (Eetes) e os desenvolveu paulatinamente, conforme procurava se proteger da rejeição de seus pares e buscava se aproximar e conquistar o amor dos humanos.

Nesse movimento, soube da existência misteriosa das pharmakas, flores que brotavam na Terra, tendo como substrato sangue do deus do tempo, Crônos.  Com elas, aprendeu a evocar nos mortais sua essência mais divinal ou fazer brotar nesses a mais monstruosa e bizarra das bestialidades.  Circe se transformou assim na primeira pharmakis (em grego, bruxa) da mitologia grega, na realidade, uma ponte entre os mistérios universais da totalidade divina e cósmica e as idiossincrasias da natureza humana.  A feitiçaria (pharmakeia) não se restringia apenas a Circe, mas a toda linhagem de Hélio e Perseis.  Sua sobrinha, Medéia, era a prova disso.  Ninguém, no entanto, se tornara tão poderosa quando Circe:  ela descobrira como transformar humanos em deuses e divindades em monstros.

Preocupados com tamanho poder “solto por aí”, um concílio olímpico e titânico resolveu então que Circe deveria viver para sempre em uma ilha deserta, para garantir a segurança tanto dos deuses, quanto dos humanos.  Naquele pequeno contorno de terra, porém, Circe elevou a máxima potência os seus atributos divinos de bruxa, aplacou a fúria dos animais selvagens que habitavam a ilha, sem nunca perder sua capacidade de amar os humanos.

O movimento oposto, da humanidade em direção à divindade que emanava de Circe, quase nunca era seguro:  a feiticeira era capaz de elaborar poções que faziam despertar a “bestialidade” outrora “adormecida” pelo longo processo civilizatório que moldou em parte o psiquismo humano.

Desse modo, se aproximar dessa deusa de forma segura tornava necessária a observância – e obediência – a alguns rituais, bem como familiaridade com seu temperamento instável, traumatizado e avesso a qualquer tipo de previsibilidade.  Para Circe, amar a humanidade não significava necessariamente cuidar bem dela, muito menos libertá-la – pense por um instante no amor que alguns humanos sentem por passarinhos presos em gaiola ou nos relacionamentos afetivos abusivos e sigamos em frente.

Certa vez, Circe ofereceu um banquete à tripulação faminta do rei de Ítaca, Ulisses.  A feiticeira, então, preparou uma poção cujo encantamento bestializador transformou a todos em porcos. Com a ajuda do deus-mensageiro, Hermes, Ulisses aplacou os poderes de Circe.  O deus-mensageiro deu ao herói um ramo de móli, planta rica em harmalina, um alcaloide com propriedades anticolinérgicas e estimulantes que blindou Odisseu da magia de Circe; além disso, advertiu ao herói que apenas adquiriria o respeito da deusa – e o seu amor incondicional – se combinasse previamente com ela a maneira pela qual se relacionariam (“o combinado não é caro”).

Dessa forma, após neutralizar os efeitos bestializadores e conquistar sua confiança e intimidade, sempre pautada por regras e normas que se sobrepunham à vontade de ambos, Circe devolveu a forma humana à tripulação de Ulisses e tornou-se aliada do rei.  Uma alegoria acerca da necessidade das “conexões estruturantes” entre o mundo consciente e o mundo emocional, límbico, inconsciente, automático, indiferenciado e imprevisível, porém repositório de energia psíquica capaz tanto de garantir a ampliação e o funcionamento autônomo da mente, quando de aprisioná-la em sua própria irracionalidade. Assim, graças à sabedoria e aos conselhos de Circe, o general conseguiu enfrentar e atravessar os infortúnios, cantos de sereia e monstros marinhos gigantescos que ainda o aguardavam até o retorno seguro ao lar, em Ítaca.

A vingança de Medéia – Foto: Divulgação

Mitologia e psiquismo

O mito de Jasão e Medéia traduz com clareza as consequências que pairam sobre a consciência quando essa decide se relacionar com o mundo irracional considerando exclusivamente suas demandas pessoais ou aquilo que acha ser “certo” ou “justo”, sem alteridade ou ciência de que as leis naturais desconsideram e se sobrepõem aos códices humanos.  Da mesma maneira, o mergulho inebriante e desavisado dos marinheiros de Ulisses no mundo encantado de Circe trouxe-lhes consequências inusitadas, cuja superação – o retorno à condição humana – escapou para além do seu controle e autonomia, ficando a solução condicionada a intervenção de terceiros (Ulisses).

Tanto Jasão quanto Medéia, assim como Circe e Ulisses são habitantes do psiquismo humano, independentemente do sexo biológico e das questões de gênero.  Ambos descrevem a importância dos arranjos estabelecidos entre o mundo consciente e o outro, instintivo e inexplorado.  Tais histórias foram colocadas no papel e contatas durante a Antiguidade patriarcal, que considerava a razão um atributo do sexo masculino e os mistérios do desconhecido, tais como a volúpia e a irracionalidade, do feminino.  Uma leitura polarizada ainda à espera de sua completa desconstrução.

Dessa forma, o mito, de maneira alguma, descamba para o moralismo: ele informa apenas que a consciência – independentemente do sexo biológico, do gênero e da orientação sexual – está invariavelmente destinada acessar sua contraparte para se apropriar da energia psíquica oriunda do irracional, do límbico-inconsciente.  Isso é um “dever existencial inescapável” com raízes profundamente arraigadas na organicidade, quase um determinismo genético, dentro do processo de construção e amadurecimento mental.  Qualquer infortúnio ou atitude escapista – tanto no sentido da ampliação da consciência, quanto da superação do evento traumático – é capaz de comprometer o processo de aquisição da autonomia e de conquista da individualidade, cuja plenitude é um de seus maiores desígnios.

Luigi Pirandello (1867-1936) descreveu de forma memorável os efeitos do amadurecimento emocional e cognitivo “incompletos”, marcados pela visão autocentrada e desconectada do mundo, dentro de um modo de ser e agir altamente puerilizado: para ele, o ser humano “quando sofre, forma uma ideia toda especial do bem e do mal, isto é, do bem que os outros deveriam fazer-lhe e que ele exige, como se dos seus padecimentos lhe proviesse um direito à compensação, e do mal que pode fazer aos outros, [como se estivesse habilitado pelos próprios sofrimentos].  E, se os outros não lhe fazem o bem, quase que por dever, ele os acusa, e todo o mal que faz, quase que por direito, facilmente se escusa”.  Uma pintura literária precisa acerca da imaturidade psíquica à espera de transformação.

É imprescindível notar que no enredo mítico das histórias de Jasão e Medéia, Ulisses e Circe, ambos os pares são apresentados tanto na condição de filhos ou sobrinhos, quanto de pais ou cuidadores.  Portanto, mais uma vez, não podem ser identificados de maneira rasa, moralista e previsível como partes exclusivas de um dos lados.  Mais uma vez, assim como nas questões de gênero, os quatro personagens habitam a todos os seres humanos de maneira indistinta, conforme bem percebeu Lineu com sua intuição e perspicácia científicas.

Preceitos éticos

Jasão era um herói ainda incompleto – apenas um pé calçado – que resolveu lutar pelo o que o destino lhe reservara “por direito”, considerando apenas as profecias futuras, esquecendo-se, porém, dos deveres que lhe cabiam nessa empreitada.

Os grandes feitos do jovem Jasão foram alcançados por intermédio de forças e recursos alheios ao seu psiquismo, sem qualquer tipo de contrapartida. Em primeiro, a jornada venturosa e bem-sucedida de sua nau Argo foi obra do apoio e valentia dos demais argonautas – alguns pagaram inclusive com suas próprias vidas.  Em segundo, a ligação afetiva e os pactos estabelecidos com Medéia e a maneira omissa que escolheu para lidar com essa personalidade imprevisível, apaixonada, violenta e criminosa – na verdade apenas sua contraparte límbico-inconsciente –, comprometeram totalmente a legitimidade dos seus planos.

Apesar de não ser intencionalmente dissimulado ou inescrupuloso, contou sempre com a ajuda de terceiros para atingir os objetivos, invariavelmente de modo dissociado, sem nunca reconhecer suas fraquezas. Assim, Jasão foi se acomodando em conquistas baseadas no emprego da magia, até essa se tornar a única forma de consecução das suas façanhas.

Diferentemente de Jasão, Ulisses não apenas confrontou assertivamente a feiticeira Circe – ou seja, seu mundo instintivo e primitivo -, como também soube usufruir de sua de sua “energia estruturante” sem se deixar paralisar ou aprisionar por ela.  Nesse sentido, por coerência e ética, mesmo tendo conquistado os carinhos e admiração da feiticeira, atendeu ao apelo de sua tripulação para que retornassem à saudosa Ítaca.  A bruxa, que inicialmente transformara a todos em bestas suínas, convertida em aliada, prestou um inestimável auxílio para que Ulisses e sua tripulação chegassem a salvo as suas casas.

Os preceitos éticos que influenciaram as condutas humanas em ambos os mitos – ou a ausência desses – definiram a qualidade dos desfechos dessas narrativas.  Poções e encantamentos se tornaram prejudiciais a partir do ponto em que provocaram estagnação ou impossibilitaram seus usuários de fazer escolhas, tanto para ampliar o seu campo vivencial, quanto para “recuperar a humanidade perdida”.

Por fim, um aspecto essencial do mito dos argonautas vem à tona: a estagnação psíquica. A natureza de qualquer processo de amadurecimento deve passar, necessariamente, pelo confronto entre aquilo que somos e que desejamos nos transformar; tal processo, quando bem-aventurado, resulta em aumento do campo da consciência, por maiores que sejam as limitações envolvidas. No entanto, nenhuma conquista é eterna: pelo contrário, está sempre sujeita à estagnação, ao esgotamento e à banalização.

Ulisses percebeu isso, quando recebeu e prontamente atendeu ao chamado de seus companheiros para “seguir adiante”.  Jasão, por seu turno, após conseguir vitórias à custa da força e do conhecimento alheio, dissociadas de qualquer tipo de contrapartida ou lastro de gratidão, diferente de Odisseu, procurou acomodar-se em um exílio confortável, durante o qual cometeu o maior dos desvios éticos: a traição. Por fim a nau Argo, símbolo dos anseios da juventude e das lutas heroicas travadas, desabou sobre sua cabeça, quando ele repousava sob “a sombra de sua glória”.

Encantamentos, mitologia, neurociência e  transtornos relacionados ao uso de substâncias

O emprego dos mitos de Medéia e de Circe por Lineu reflete não apenas o gênio sistematizador do botânico sueco, como também sua intuição acerca da complexidade profunda e infinita do dinamismo psíquico relacionado ao hábito do “beber excessivo”, naquele momento passível apenas de aproximações metafóricas de ordem mitológica.  Tal funcionamento seria objeto da investigação de inúmeros pensadores e sistematizadores do século XIX, que se frutificaria em modelos de cuidado e categorias diagnósticas pelas mãos dos teóricos do século seguinte.

Nas últimas décadas, os progressos obtidos pelas neurociências, o surgimento de modelos psicológicos mais pragmáticos, assim como os avanços sociais no sentido da assimilação e superação das diferenças socioculturais trouxeram novas perspectivas para abordar as questões relacionadas ao consumo de substâncias psicoativas.  No entanto, os mistérios acerca da sua capacidade de perturbar o delicado equilíbrio entre o mundo racional e as “emoções mamíferas” mais primitivas ainda não encontrou uma explicação satisfatória.

Desse modo, experimentos científicos altamente sofisticados e modelos psicossociais e neurobiológicos de extrema complexidade – com direito a pitadas de “ciência pura”, “genética molecular”, “algoritmos quase-indecifráveis” e “constructos metafísicos” – continuarão a conviver lado a lado em importância com mitologemas como os de Circe e Medéia, provavelmente até que a exata topografia da totalidade do psiquismo humano e os limites entre razão e emoção – atrelados à natureza de suas relações – estiverem totalmente mapeados e desvendados.  Ainda permaneceríamos “humanos” se atingíssemos esse marco?  Ou se iniciaria nesse exato momento um novo tipo de “jornada existencial”?  Quem viver um bilhão de anos, provavelmente, ainda assim não verá.  Saudações à humanidade que nos habita e que habitamos.     ____________

Esse foi adaptado de Ribeiro M.  Drogas – uma leitura junguiana da história e da clínica das dependências.  Monografia apresentada à Comissão de Ensino da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) como requisito para a obtenção do título de membro-analista. São Paulo, 2012.

A tese “Inebriantia” (1762), de Alander e Lineu, foi traduzida para o inglês e publicada In: BO HOLMSTEDT e  RICHARD E. SCHULTES, Inebriantia: an early interdisciplinary consideration of intoxicants and their effects on man, published in 1989 – Botanical Journal of Linnean Society, volume 101, pages 181-198.

As seções “Medéia” e “Circe” foram escritas a partir da leitura do (1) capítulo “Jasão: o mito dos argonautas”, In: Mitologia Grega, volume III, de Junito de Souza Brandão. São Paulo: Editora Vozes; 1989 e do livro (2) “Circe”, de Madeline Miller; tradução de Isadora Prospero. – São Paulo: Planeta, 2019.

Para o trecho de Luigi Pirandello, vide: “O falecido Mattia Pascal” (1904). Tradução de Mário da Silva, Brutus Pereira, Elvira Rina Malerbi Ricci.  São Paulo: Editora Abril, 1981.  pp. 201 [§13 – A Lanterninha].

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).    

 

 

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