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Recuperação e redução de danos são amigas, não inimigas

“La Morphinimane – The Morphine Addict”, Eugène Grasset (1897) – Foto: Divulgação

A redução de  danos foi uma das influências mais relevantes e contundentes para o campo da dependência química, nos últimos trinta anos.  Nascida formalmente na Holanda, em 1984, durante os primeiros tempos de degelo da Guerra Fria, já tinha raízes e formas embrionárias tanto nesse, quanto em outros países da Europa, como o Reino Unido.

Drogas injetáveis

Naquele instante, além de todo o preconceito em relação ao uso de drogas e do clima polarizadamente autoritário respirado por todos no planeta, o surgimento da Aids e a disseminação da hepatite C entre os usuários de drogas injetáveis (UDI), demandaram dos agentes de saúde decisões radicais e pragmáticas, tais como visitas aos becos, guetos e praças para aconselhar métodos mais seguros de injeção de heroína, troca de seringas, prescrição de metadona e de heroína.  Ações que não apenas salvaram vidas, como contribuíram para humanizar e pavimentar o acesso aos cuidados em saúde para essas pessoas.

Abstinência

A Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA, em inglês), define redução danos como “políticas, programas e práticas cujo objetivo primário é a redução das consequências à saúde, sociais e econômicas relacionadas ao consumo lícito ou ilícito de substâncias psicoativas, sem necessariamente reduzir o consumo dessas”.  De acordo com o Canadian Centre on Substance Abuse (CCSA), “[a redução de danos] apesar de também apoiar aqueles que desejam moderar ou reduzir seu modo de consumo, [não considera que] nenhuma das duas atitudes [a priori] excluem ou presumem o tratamento voltado para a abstinência” – cabe ao usuário definir o seu destino.

Redução de danos

Desse modo, vale ressaltar mais uma vez mais, que o foco da redução de danos se volta para a redução dos riscos relacionados ao uso e a garantia da liberdade de escolha acerca de suas demandas e modos de consumo.

Nas décadas seguintes, redução de danos também se converteu em um movimento em prol da garantia dos direitos civis e individuais dos usuários de substâncias psicoativas: “à vida, à saude, à segurança e à proteção contra agressões da comunidade e do estado” (IHRA).

Humanizar

Não há sombra de dúvida de que as políticas de redução de danos conferiram voz e humanizaram o usuário de substâncias psicoativas, outrora refém de julgamentos morais quando buscava atendimento médico ou acesso à justiça, além de serem considerados criaturas invisíveis pelas políticas de sociais e de saúde.

Políticas

No entanto, o clima beligerante e polarizado dos primeiros tempos ainda repercute no imaginário dos adeptos das três grande políticas que habitualmente regem as políticas de drogas das nações.  Nessas circunstâncias, muitos adeptos da redução de demanda / oferta encaram a redução de danos como uma política inconsequente, meros defensores da legalização das drogas e incapazes de enxergar as reais necessidades dos usuários.  Para esses, a melhor forma de reduzir danos é a abstinência total do uso de drogas.

Redução de demanda

Do ouro lado, parte dos que defendem a redução de danos consideraram as estratégias de redução de demanda – tais como a prevenção e o tratamento dos problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas -, bem como a redução de oferta – cujas estratégias vão desde a regulação de pontos de venda, estabelecimento de idade mínima, até a repressão ao narcotráfico – como medidas menores, desnecessárias, opressoras até.  Para esses, bastaria garantir o acesso a tais substâncias de modo regulamentado e lícito, num ambiente de justiça social e de garantia de direitos individuais que o problema da dependência em grande parte se resolveria.

Na teoria, qualquer uma das três políticas funcionaria muitíssimo bem isoladamente.  Mas apenas enquanto habitam o papel.  O problema é que, na prática, teriam que “combinar com os russos”, aqui no caso denominados “natureza humana e suas vicissitudes”.

Estratégias

Hodiernamente, há medidas de redução de danos consideradas altamente benéficas do ponto de vista científico e de saúde pública. Da mesma forma, há um corpo de evidências científicas suficientemente consistente para demonstrar que a prevenção, as medidas de redução de demanda  (taxação e aumento de preços), o tratamento, ao lado das políticas de controle de acesso – incluindo a repressão ao contrabando e ao tráfico – são igualmente importantes.  Mais do que isso: todas as três estratégias se aprimoraram nas últimas décadas, em parte inclusive, porque absorveram e incorporaram mutuamente seus preceitos.

Dependência química

No campo científico interessado no tratamento da dependência química, as estratégias de redução danos, apesar de fundamentais para a proteção dos usuários em relação a doenças como as infecções sexualmente transmissíveis (IST), têm demonstrado capacidade limitada de funcionar como porta de saída para o uso de substâncias, girando em torno de 7%.

Recovery

Esse é um dos motivos pelos quais os movimentos de recuperação (recovery) –  há algumas décadas considerados como ineficientes e essencialmente “igrejeiros” ou limitados ao modelo médico de doença – voltaram novamente a ganhar força: desta vez formalmente mais afinados com as abordagens de caráter psicossocial, inseridos na idéia da reinserção psicossocial e no trabalho multidisciplinar, sem deixar de considerar e conferir consistência científica para as experiências bem-sucedidas no campo da espiritualidade.    

Tudo isso lhe conferiu um ganho substancial, tanto em pragmatismo, quanto em eficácia.  O “tratamento da dependência química” é hoje mais real e possível do que há trinta anos.

Brasil

Apesar de as políticas em questão serem potencialmente benéficas, considerando as idiossincrasias dos usuários, os embates apaixonados e desprovidos de qualquer embasamento cientifico continuam a vigorar, especialmente entre países em desenvolvimento – como o Brasil.

Século XXI

Nesse sentido, tais disputas inglórias, infelizmente, vêm dominando a condução das políticas de drogas brasileiras há pelo menos um quarto de século: na transição para o século XXI, o governo federal adotou um modelo focado na redução de oferta altamente repressivo.  Na primeira década dos anos 2000, a redução de danos foi transformada quase em política de estado exclusiva, reduzindo o tratamento a uma “utopia ineficaz”, um “anacronismo sem pé e sem cabeça”. Na década seguinte, porém, foi a vez do termo “redução de danos” ser “varrido do mapa” da política de drogas oficial, que passou a privilegiar a redução de demanda e os movimentos de recuperação.

Cracolândias

Redução de danos e recuperação (redução de demanda)  devem caminhar juntas. Ambas devem, ainda, formar um trio com as estratégias de redução de oferta: é importante regulamentar as substâncias licitas e possuir estratégias de repressão ao mercado ilícito, que inclui não apenas as “drogas proibidas”, como também o contrabando de cigarros (tabaco) ou de bebidas alcoólicas falsificadas das baladas.  Boa parte dos artigos e trabalhos sobre as cenas abertas de uso, como as “cracolândias” são categóricas em afirmar:  políticas de segurança para esses locais não visam a acabar com elas – no espírito de “guerra à drogas” -, mas em torná-las “cenas fechadas”, recuperando o espaço público dominado pelo narcotráfico, para os moradores e transeuntes locais.

Recuperação

Dessa forma, assim como aqueles mais afinados com o conceito de “recuperação” (demanda) precisam ter a tranquilidade e segurança de lançar mão de estratégias paliativas ou de baixa exigência (danos), os profissionais mais afinados com a ideia de proteger o usuário dos efeitos deletérios das substâncias, sem no entanto interferir nas escolhas do usuário relacionadas ao seu modo de consumo, precisam ter portas sempre abertas para a possibilidade da recuperação – e estimular o usuário para essa possiblidade, respeitando sempre sua autodeterminação.

Redução de consumo

Tanto a redução de danos, quanto a redução de demanda devem se basear na aceitação e pautar suas práticas em atitudes isentas de julgamentos morais.  O que as difere – mas não as afasta – é que no primeiro caso as regras são estruturadas e geralmente pautadas para viabilizar e garantir o convívio entre usuário e equipe da forma mais previsível, segura e livre de violência possível.  No segundo, há um contrato terapêutico mais estrito, com regras de comparecimento, permanência e comportamento, quase sempre como metas e objetivos. Estar abstinente não é condição para estar em tratamento, mas discutir modos de alcançá-la, sim, ainda que essa meta leve décadas para acontecer – ou resulte apenas em redução do consumo.

Pró-tratamento

De todo o modo, se cada lado conseguisse enxergar o outro como um sincero complemento, ao invés de um aguerrido oponente, o usuário certamente teria opções muito mais interessantes e desafios infinitamente mais possíveis de serem atingidos.  De um lado, os “pró-redução de danos” descobririam que boa parte dos serviços de tratamento não tem como propósito central a abstinência, mas sim a reinserção social por meio da resolução de problemas de moradia ou de busca e apoio à manutenção no emprego.  Do outro, os “pró-tratamento” tomariam consciência do alcance privilegiado e da proximidade que os redutores de danos têm com os usuários e de como a aceitação do seu modo de ser e consumir é importante para que uma série de resgates de ordem pessoal possam se dar em um ambiente livre de julgamento e violência.

Canábis

Há questões que ainda separam os campos de maneira mais contundente:  a legalização da canábis é uma delas.  Ainda assim, essa, ao final, é uma decisão de toda a sociedade, não apenas de médicos, sociólogos, juristas e demais cientistas interessados na área.  Há um corpo teórico – com prós e contras – sendo construído.  Não haverá soluções mágicas, mas enquanto o espírito democrático prevalecer, os avanços ora propiciados por um lado, ora pelo ouro, serão sempre bem-vindos e possíveis.

Sociedade livre de drogas

Dada a impossibilidade momentânea de consensos amplos e relevantes entre ambos, vale apontar que os objetivos derradeiros tanto de um, quanto do outro são utópicos: da mesma maneira que seria impossível imaginar uma sociedade livre de drogas – por melhores que fossem os métodos de controle, prevenção e tratamento -, do mesmo modo não seria factível uma sociedade onde o consumo fosse absolutamente autocontrolado, saudável e isento de riscos – por melhor que fosse o acesso à informação, o exercício do livre-arbítrio e as estratégias de redução de danos.

Saídas

Nesse sentido, parece haver duas saídas possíveis:  ou se assume que as duas políticas são essenciais e precisam andar juntas – ao invés de se degladiarem -, ou se cria uma terceira via partindo da somatória das duas; só não é mais possível continuar a pensar que a redução demanda ‘eficaz’ eliminaria a necessidade da redução de danos, tampouco que a redução de danos ‘eficiente’ neutralizaria os vaticínios indesejáveis do consumo. A verdade é que há pessoas que a redução de demanda não alcança, nem dá conta, da mesma forma que há outras para as quais a redução de danos não traz contribuição ou benefício algum.  E basta de contos da carochinha.

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