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Afinal, de quem é a culpa?

Hunt Charles, “Guilty as Charged” (1867) – Foto: Divulgação

O herói de Guimarães Rosa, Riobaldo, em suas andanças pelas veredas do grande sertão, contou a história de um menino de dez anos que desde pequenino gostava de matar: “babejava vendo sangrarem galinha ou esfaquear porco”. E arrematou: “abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto!”.  E prosseguiu proseando em forma de dissertação: “essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, deixou externar uma ruindade “de dentro do fundo das espécies de sua natureza”.  E conclui apresentando provas incontestes daquela sordidez-mirim: “judia de todo o bicho ou criaçãozinha; certa vez, se aproveitou do sono de uma “crioula-benta bêbada” e “lanhou em três pontos a popa da perna dela”.

Miséria e mastro

Os pais dele eram gente de bem, benquista e respeitada no lugar.  “A modo de corrigir isso” deram nele “de miséria e mastro”, ou seja trataram-no a ferro-e-fogo, laçando mão de todo o tipo de maltrato, para além dos limites da tortura, pra mode dele distinguir o certo do errado nessa vida: e “botam o menino sem comer, amarram em árvores [nu, em junho frio], (…) limpam a pele do sangue com cuia de salmoura”.

Exemplo bom

Acontece que com o passar do tempo, de tanto bater no miúdo, o marido e mulher, “de pouquinho em pouquim, foram criando nisso um prazer feio de diversão” – davam sovas em horas certas e “até chamam a gente para ver o exemplo bom”.

Em balanço

Aquele menino cresceu e se transformou num homem.  “Em balanço”, nas palavras do escritor-maior, o menino crescido “devia terríveis perversidades”, por tudo o que fez ao mundo e às pessoas.  Mas em decorrência da maneira com que fora tratado todos aqueles anos – um mero condenado a saldar dívidas morais insolúveis que obscureceram para sempre os seus anseios de futuro –, “a alma dele estava no breu”.

Limites

“– Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que fosse um menino bonzinho”, conclui atordoado por um mar de dúvidas e ambiguidades, como se quisesse desvendar e compreender – no derradeiro instante em que um abismo se abre –  os limites entre a bondade, o sofrimento, a doença e a maldade.  Em vão.  A única coisa que lhe restava de certeza é que todos os quatro eram habitantes do grande sertão.

Drogado

Mas se o leitor até aqui não conseguiu se desvencilhar de associar o menino malvado por natureza com o “drogado”, ou se até no momento ainda nutre um sentimento de apoio incondicional e justiceiro em relação aos pais, ou ao contrário, um ódio mortal pelo casal-funerário da alma do próprio filho, é sinal que perdeu a oportunidade de trilhar as veredas do Grande Sertão, palco da eterna peleja entre o Bem e o Mal, que habitam a psique da humanidade, desde o momento em que o Homo se fez sapiens.

Psiquiatria

É difícil meter a colher da Psiquiatria nessa briga titânica, incomensuravelmente maior do que suspeita a vã filosofia-de-banca-de-revista-ali-da-esquina, que quase nenhum médico sequer pensou em parar para folhear.  Se faltaram tapas ou se faltaram beijos, se algum tipo de debruçar da ninhada trouxe insegurança, temor ou sentimentos inomináveis aos pais, ou se ao contrário, a imperícia, a negligência ou a imprudência dos genitores ou responsáveis, ainda que apenas como puro ato de inexperiência ou “vontade de acertar e fazer o bem”, tenha atingido a segurança do ninho, levado a quedas, traumas, ferimentos e sequelas, só não cabe à Psiquiatria meter a colher com julgamentos de ordem moral.

Culpados

“Julgamento é sempre defeituoso, porque a gente julga é o passado”.  Diferente de tudo isso, é preciso se enveredar.  Não ter medo do que vem pela frente.  Repactuar. Tentar mais uma vez, diferente. Perdoar seria a atitude mais sublime e libertadora.  Difícil nos primeiros tempos de certezas despóticas e sede de justiça.  Ainda assim, é preciso seguir adiante. E outra coisa, insiste Riobaldo: “o real não está na saída, nem na chegada: ele se dispõe para a gente no meio da travessia”, “o diabo vem à brutas, mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! Deus vem vindo: ninguém não vê.  Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre” – e “a cada milágrimas sai um milagre”, como outro mestre já dizia.  Desse modo, independentemente se crédulos ou ateus, melhor que procurar culpados – por maior o mal que tenha sido impetrado – é encontrar caminhos que se distanciem, se desviem ou suplantem tais ocorridos, suas influências vingativas e suas afeições por soluções prontas e imediatistas.  Só assim, a mudança vem à tona.

Reescrever sua história de vida

“Se creio? Acho proseável.”  E essa é a deixa, por onde a psiquiatria e a psicologia têm a possiblidade de fazer a diferença: não como instâncias julgadoras e moralizantes; do contrário, ambas oferecem ao paciente e a família a oportunidade para que cada um possa reescrever sua história de vida, partindo de uma nova narrativa.  Elas enxergam a doença e oferecem ferramentas para que tanto o paciente, quanto seus familiares – juntos – possam trabalhar e minimizar sua interferência.  Abrir mão dos segredos, do receio de sentir medo: tudo vale a pena nessa jornada, desde que “não se perca a vontade de coragem”. Não adianta entrar em busca de provas incontestes de verdades concebidas previamente: “o senhor querendo procurar, nunca não encontra; de repente por si, quando a gente não espera, o sertão vem”.

Amor

Desse modo, a jornada bem-sucedida de Guimarães Rosa consiste acima de tudo na capacidade humana de voltar a se aproximar do outro, viver perto do outro e conhecer a outra pessoa sem perigo de ódio, graças aos desígnios do amor – “qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

Reconstrução

Nesse sentido, a recuperação é a eterna retomada ou reconstrução de vínculos de apego e de confiança, mais fortes e vigorosos do que qualquer argumento acusatório ou atribuição de culpa.  É a consolidação de uma nova postura ética entre o indivíduo e o mundo, na qual tanto os seus anseios e modos de ser e existir estejam incluídos, quanto suas limitações, assumidas.  Esse é o aguardado momento do nascimento do “homem soberano”, “circunspecto”, ciente de suas dores, dos seus potenciais e de seus limites.  E arremata: “O diabo não existe, o diabo não há!”, o que existe na verdade e em seu lugar é “homem humano. Travessia”.

Barco

Mais importante que encontrar culpados e demônios é conseguir permanecer juntos no mesmo barco, nunca perder a vontade de ter coragem, jamais desistir da travessia, humanizar-se a partir do reconhecimento dos erros e acertos, remar com determinação e em harmonia mais possível com os demais, respeitando o ritmo das águas.  O resto, quem viver, verá – e alcançará.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).    

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