Mount Desert Island, Maine, by Jervis McEntee, 1864, oil on canvas – Foto: National Gallery of Art, Washington
Qualquer mudança, por menor que seja, implica em algum tipo de renúncia. Abrir mão de um jeito de ser e existir, com o intuito de chegar outro no lugar. Esse processo, no entanto, tem uma fase dificilmente delicada: aquela em que a pessoa se vê desprovida do estilo de vida anterior, sem ter ainda a garantia de que conseguirá consolidar os objetivos almejados – “estou malhando na academia, comendo chuchu com abobrinha há semanas, com fissura por chocolate, mas ainda me sinto gordinho”.
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Deserto do sal
É quando as pessoas percebem que no percurso para a mudança, quase invariavelmente, há um “deserto do sal” a ser atravessado. Aquele momento em que se abriu mão do “bom da outra vida” – por piores que fossem as consequências associadas – sem garantias de que a mudança almejada realmente existe ou será atingida.
Maná
O paralelo com a vontade que muitos israelitas tiveram de desistir da travessia pelo deserto em direção à Terra Prometida – comendo apenas o insosso maná – e retornar ao Egito é inevitável: “Nós nos lembramos dos peixes que comíamos de graça no Egito, e também dos pepinos, das melancias, dos alhos porós, das cebolas e dos alhos” (Números 11:5). Acontece que o preço de verem atendidas suas necessidades mais imediatas – no caso aqui, a fome – era o retorno à escravidão.
Liberdade
Obviamente, alcançada a Terra Prometida, se fosse possível encontrar e entrevistar os mesmos israelitas, nenhum deles desejaria mais voltar ao Egito, por mais que a oferta de peixes e cebolas fosse dobrada. Em primeiro, porque o sacrifício da travessia valeu a pena: uma mudança na condição de vida e na existência daquelas pessoas finalmente se consolidou. Em segundo, porque esse novo modo de vida, além de satisfazer suas necessidades mais imediatas e cotidianas, passou a oferecer algo muito mais valioso: a liberdade.
Dependência
Ainda que histórias e mensagens dessa natureza possam ecoar positivamente e alentar as mentes daqueles que desejam a abstinência estável, os momentos iniciais de reconstrução da vida, de reinserção social e da conquista e reconquista de novos vínculos efetivos fundamentais – marcados por altos níveis de insegurança e estresse e atormentadas por lancinantes fissuras – produzem muitas vezes um ambiente inóspito demais. Nessas situações não é incomum o usuário não apenas “chorar pelas cebolas do Egito”, como literalmente retornar ao consumo – e à escravidão das rotinas impostas pela dependência.
Recompensa
Como já foi dito anteriormente, o sistema de recompensa, mapeia o mundo do usuário em função da próxima dose. Nesse sentido, a vontade de usar drogas não difere muito da fome. Isso se torna ainda mais premente na vigência do estresse crônico, algo esperado nessa fase inicial de incertezas em relação ao futuro e de insegurança quanto à moradia, emprego e muitas vezes alimentar; sem falar nas cobranças – muitas vezes desproporcionais e insensíveis – por parte dos seus grupos de apoio e convívio.
Manejo de contingências
Para amenizar os efeitos dessa fase, há algumas décadas, o modelo de “manejo de contingências” ou “incentivos motivacionais” vem sendo utilizado com bastante sucesso nas nações desenvolvidas. Essencialmente, ele parte do princípio de que o esforço em direção à mudança deve ser permanentemente reforçado e premiado, ao invés de ser visto como um “pedágio que o paciente deve pagar”, um “sacrifício necessário”, um momento de “expiações e provas” para quem deseja os louros da abstinência.
Pontos
Nesse sentido, propõe uma série de ganhos relacionados à adesão do usuário às rotinas de tratamento. Se um paralelo fosse possível, seria o mesmo que propor à pessoa com sobrepeso um sistema de pontuação baseado na frequência à academia e a perda de peso observada: para cada dia exercitado um ponto, para cada 100 gramas perdidas, outro. Pontuações extras são possíveis: para cada semana sem faltas, cinco pontos extras, para cada mês, vinte. Cada quilo perdido vale 20 pontos. Ao final de cada período previamente combinado – semanal, mensal, bimestral – a pessoa pode “sacar” aquele valor e gastá-los com produtos geralmente estabelecidos com antecedência: roupas, cestas-básicas, ou mesmo objetos de desejo, como videogames, telefones e viagens. A falha em cumprir uma das metas estabelecidas, em geral, bloqueia a possiblidade de saque dos pontos, mas não os elimina, podendo voltar a ser acessados tão logo a pessoa volte pontuar.
Travessia
No caso da dependência química, a premiação pelo comparecimento às consultas, pelo o cumprimento de acordos firmados em contrato, ao mesmo em função do tempo de abstinência por meio de testagem de sangue ou urina, são fatores que motivam o paciente a permanecer em sua travessia, mesmo durante as situações mais estressantes, difíceis e vulneráveis à fissuras tentadoras.
Patrimônio de recuperação
E o que acontece quando cessam esses subsídios motivacionais? Basta pensar em alguém satisfeito com seu novo – e cobiçado – corpo, livre dos problemas de saúde que o levavam a tomar medicamentos para doenças decorrentes da obesidade e que potencialmente encurtariam suas chances de sobrevida. Além disso, habituou-se a um novo tipo de dieta, se enturmou com amigos com as mesmas afinidades, encontrou novas formas de sentir prazer, passou a se exercitar com regularidade e conta com novos relacionamentos afetivos que corroboram seu novo estilo de vida. Além disso, procurou ajuda psicológica, que o ajudou a se conhecer em profundidade e se posicionar perante o mundo de modo mais assertivo. Feliz com suas conquistas. A essa altura, o seu patrimônio de recuperação vale muito mais e lhe rende muito mais frutos do que um punhado de pontos. E, mais certo ainda, quem alcançou esse novo mundo, decerto não o troca mais por um mero prato de “cebolas psicoativas, seguido de escravidão.
PS: “incentivos motivacionais” não são nenhum método milagroso, tampouco aplicável a qualquer pessoa; muitos acabam não compreendendo o “espírito dela técnica” ou abertamente fazem mau uso dela. No entanto colocam em xeque o paradigmas anacrônico como o papel da “dor e sofrimento” como ferramenta de ‘salvação’, ao mesmo tempo em que demonstram que a recuperação pode ter um percurso menos sacrificante e por vezes alentador.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).